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O tempo que compartilhamos e a vigência do pensamento de José Martí em nossa América

Para abordar este problema é útil recordar os debates que se deram em torno do legado de Marx no começo do século XX
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul Global
Alto Boquete

Tradução:

“Pense sempre em mim:
quando lhe venha a fantasia
ou o arrebate a indignação.
Pense no que eu em cada caso lhe diria
se estivesse a seu lado”.
José Martí, 1895.[1]

O problema da vigência de Martí como um elemento ativo no desenvolvimento desta vasta família de povos que chamamos de nossa América tem uma extraordinária importância em nosso tempo. Atender a este problema passa por encarar três riscos maiores na leitura contemporânea de sua obra. Um é o do anacronismo, que nos leve a assumir como se fossem contemporâneos pensamentos e situações correspondentes ao último quarto do século XIX; outro, o da fragmentação, que nos leve a recordar frases isoladas de sua obra ao calor da atração estética e moral de sua palavra escrita; e o terceiro está em esquecer que o sentimos como um contemporâneo porque se forjou como um homem de seu tempo, como tentamos nós ser do nosso, que tomou forma com ele.

Este último é menos difícil do que poderia parecer. De fato, com Martí não compartilhamos uma mera soma de anos, e sim a longa duração que vai do ascenso à bancarrota do imperialismo como força organizadora do moderno sistema mundial. Daí que nos pareça contemporâneo, tanto no sentido da era que compartilhamos – ele, em suas origens; nós, em sua crise contemporânea –, como no da aspiração de transcender esta era para abrir passagem a outra, de melhoramento humano, sustentado na utilidade da virtude, e no trabalho com a natureza e não contra ela.

Visto assim, o problema da vigência do pensar martiano é o de sua necessidade em nosso tempo, em nossa América, e a partir dela. Para abordar este problema é útil recordar os debates que se deram em torno do legado de Marx no começo do século XX, quando a socialdemocracia europeia iniciava a tarefa de tornar-se a ala esquerda da democracia liberal de seu tempo e de sua região.

Parte daquela tarefa incluía dar por esgotada a dimensão transformadora do pensar marxista, para aceitar como inevitável a colaboração com os estados noratlânticos nos quais se alentava já o trânsito para a Grande Guerra de 1914-1945. Frente àquela situação, Rosa Luxemburgo propôs em 1903 que o legado de Marx ia além do “diretamente essencial para a realização prática da luta de classes”, e que, nesse sentido, era falso afirmar que “Marx já não satisfaz nossas necessidades” e que, pelo contrário, “nossas necessidades ainda não se adequam à utilização das ideias de Marx.”[2]

Como Jose Martí oferece luz à reconstrução da América diante dos novos tempos

Vinte anos depois, já em pleno auge do fascismo na Europa liberal, Antonio Gramsci abordaria o problema da vigência da obra de Marx e Engels de uma perspectiva ao mesmo tempo próxima e mais complexa: a da mudança cultural inerente a toda transição civilizatória verdadeira. A esse respeito, dizia que a utilidade daquele legado se expressava antes de tudo no conceito de que este “se basta a si mesmo, contém em si todos os elementos fundamentais, não só para construir una concepção total do mundo, uma filosofia total, mas sim para vivificar uma organização prática total da sociedade, ou seja para tornar-se uma civilização integral, total.”[3]

A partir daí, e depois de afirmar que uma teoria é revolucionária “enquanto for precisamente elemento de separação completa em dois campos, enquanto vértice inacessível para os adversários”, Gramsci destacava que o legado de Marx pressupunha todo o passado cultural precedente –“o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo que se encontra na base de toda a concepção moderna da vida”. Com isso, acrescentava, esse legado coroava “todo este movimento de reforma intelectual e moral, cuja dialética é o contraste entre cultura popular e alta cultura”, da qual resultava “uma filosofia que é também política e uma política que é também filosofia”, a partir do que, ao ingressar na luta pela hegemonia, cabia desenvolver uma ciência da política.[4]

Neste sentido, uma visão do mundo – e a ética correspondente a sua estrutura –, enquanto filosofia de uma época, não podiam ser reduzidas a nenhum “sistema individual e de tendência”, pois “ela é o conjunto de todas as filosofias individuais e de tendência, mais as opiniões científicas, mais a religião, mais o senso comum”. Neste plano, ao contrário, a atividade crítica vinha a ser “a única possível”, especialmente “no sentido de propor e resolver criticamente os problemas que se apresentam como expressão do desenvolvimento histórico.”.[5]

Para abordar este problema é útil recordar os debates que se deram em torno do legado de Marx no começo do século XX

Bit Boy – Flickr

"Sei desaparecer. Mas não desapareceria meu pensamento nem me amarguraria minha obscuridade"

Nesta perspectiva, não cabe reduzir a discussão sobre a vigência do pensar martiano – cuja plena maturidade já é evidente no final da década de 1880 -, à mera expressão de uma circunstância inédita em que confluíam a história de Cuba e a da América espanhola na voragem da transição do sistema mundial a uma nova etapa em seu desenvolvimento. Ao contrário, esta vigência se fundamenta no fato de que o pensar martiano expressa criticamente um processo de formação e de transformações que transcende o liberalismo de seu tempo – cuja vertente democrática constitui uma de suas raízes –, ao referi-lo a objetivos de um tipo inteiramente novo, a luta pelos quais ainda está em curso.

A plena maturidade deste pensar se expressa, no que se refere a seu entorno maior, na publicação do ensaio Nuestra América – que é como a ata de nascimento de nossa contemporaneidade – em Nova York e no México, em janeiro de 1891.  E, quanto ao papel de Cuba na transformação deste entorno, torna-se evidente em seu texto “A alma da revolução e o dever de Cuba na América”, dedicado ao terceiro ano de atividade do Partido Revolucionário Cubano.

É ali, com efeito, que expressa de maneira admirável a transcendência de uma visão que já lhe permitia afirmar que a tarefa a resolver era a de equilibrar um mundo, e não somente a de libertar duas ilhas. Encerrando a ideia com um corte moral e político irreversível:

Quão pequeno tudo, quão pequenas as fofocas de aldeia, as alfinetadas da vaidade feminina, e a nula intriga de acusar de demagogia, e de lisonja a multidão, esta obra de previsão continental, ante a verdadeira grandeza de assegurar, com a dita dos homens laboriosos na independência de seu povo, a amizade entre as seções adversas de um continente, e evitar, com a vida livre das Antilhas prósperas, o conflito desnecessário entre um povo que tiraniza a América e o mundo coligado contra sua ambição![6]

José Martí é mais do que o pai de Cuba, é o herói da libertação de toda América Latina

Este chamado a transformar o mundo culmina com uma advertência que não pode ter vigência maior em nosso tempo: “Um erro em Cuba, é um erro na América, é um erro na humanidade moderna. Quem se levanta hoje com Cuba se levanta para todos os tempos.”

Assim estavam as coisas, quando em sua última carta a Manuel Mercado se vê renovado o valor do parágrafo em que diz a seu amigo de juventude que, se bem entende “que não se pode guiar um povo contra a alma que o move, ou sem ela,” compreende também que “quanto a formas, cabem muitas ideias, as coisas de homens, homens são os que as fazem”, para acrescentar em seguida

Me conhece. Em mim só defenderei o que tenho por garantia ou serviço da revolução. Sei desaparecer. Mas não desapareceria meu pensamento nem me amarguraria minha obscuridade. E enquanto tivermos forma, trabalharemos, cumpra-me isto a mim, ou a outros.” [7]

E a carta, aberta mais do que inacabada, se encerra com uma frase carregada de futuros: “Há afetos de tão delicada honestidade…”, como a que nos une a ele na culminação do tempo que compartilhamos.

Alto Boquete, Panamá, 14 de setembro de 2022

[1] Carta a Enrique Loynaz del Castillo. Montecristi, Abril de 1895. XX, 481.
[2] Rosa Luxemburgo, 1903: “Estancamento e progresso do marxismo”. https://www.marxistsfr.org/espanol/luxem/03Estancamientoyprogresodelmarxismo_0.pdf
[3] Gramsci, Antonio, 1999: “Notas de filosofía. Materialismo e idealismo”. Cadernos do Cárcere. Edição crítica do Instituto Gramsci. Edições ERA, México, II, 147-148.
[4] Gramsci, Antonio: Introdução à filosofia da praxis. Seleção e tradução de J. Solé Tura. Nova Coleção Ibérica. Ed. Península, Barcelona. 1967: 48. A esse respeito, também, Gramsci, Antonio, 1999: IV, 11/Notas para uma introdução e uma iniciação no estudo da filosofa e da história da cultura/ 1932-33, p. 337-338.
5] Gramsci, Antonio, 1999: “Questões de nomenclatura e de conteúdo”, em “Observações e notas críticas sobre uma tentativa de “Ensaio popular de sociologia”. Cadernos do Cárcere. Edição crítica do Instituto Gramsci. Edições ERA, México. IV, Caderno 11 (1932-1933): 269-273.
[6] “O terceiro ano do Partido Revolucionário Cubano. A alma da revolução e o dever de Cuba na América”. Pátria, 17 de abril de 1894. III, 142-143.
[7] Carta a Manuel Mercado. Acampamento de Dois Rios, 18 de maio de 1895. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales. Havana, 1975. XX, 161-163.

Guillermo Castro H., colaborador da Diálogos do Sul. Visite meu blog martianodigital.com
Tradução: Ana Corbisier.


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