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De Salvador Allende a Pablo Neruda: as perdas memoráveis de setembro no Chile

Para o povo do Chile já acabou a vigência da Constituição da ditadura. E uma nova Carta Magna se torna indispensável
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

José Carlos Mariátegui nos recordava que a realidade nacional estava menos desconectada do cenário internacional, do que acreditavam nossos analistas locais. E é assim.

O que acontece em outros confins do planeta nos reflete nitidamente nossa própria realidade e nos ajuda a compreender lucidamente o que sucede em nosso próprio solo. Por isso, hoje há que olhar para o sul. 

Chile, 11 de setembro de 1973: recordações de uma jovem que queria mudar o mundo

Setembro implica, em diversos marcos, a batalha do Chile. No dia 4 se recorda a histórica eleição de Salvador Allende em 1970, que marcou a irrupção da Unidade Popular na Pátria Araucana, e que pintou a região com o rosto do Socialismo.

Em contrapartida, no dia 11 o país foi afogado em sangue pela insurgência do fascismo que, após a bota militar, apagou temporariamente a causa desse povo, que hoje renasce vitorioso.

Milhares caíram naquela circunstância. Uns mortos, outros desaparecidos, os demais, detidos e torturados.

Para o povo do Chile já acabou a vigência da Constituição da ditadura. E uma nova Carta Magna se torna indispensável

licti.org
Tudo deverá ser conquistado graças ao sacrifício, ao valor e à luta de cada combatente

Setembro no Chile

Hoje se recorda esse setembro como o mais duro da história, mas também como uma lição e um desafio. Ensinou ao mundo a capacidade da barbárie e o incitou a combatê-la sempre. 

No dia 15 foi assassinado no Estádio Chileno Víctor Jara, símbolo da Canção de Protesto que chegara um mês antes aos escritórios da CGTP, na Praça Dois de Maio, para despedir-se após uma breve visita ao Peru. Recordamos sempre o que nos disse antes de ir embora: “o dever me obriga a estar na Pátria”. 

Assassinato de Víctor Jara, um crime pelo qual ainda o Chile ainda chora

O 18 é o Dia Nacional do Chile. E nele se evocam diversos episódios entre os que se misturam etapas que se iniciam em 1810 e culminam 8 anos mais tarde. 

Neles desfilam as aguerridas montoneras de Manuel Rodríguez, as batalhas vitoriosas – Maipú e Chacabuco – nas quais flameara muito alto a bandeira da Independência do nosso continente e o exemplo de personalidades da medida de José Miguel Carrera, Bernardo O’Higgins e até José de San Martin, há 200 anos.

Em 23 de setembro foi vítima do ódio Pablo Neruda, o poeta universal que havia sido premiado dois anos antes com o Nobel de Literatura, e que escreveu a epopeia dos povos na luta contra o fascismo.

Embora a sua morte ainda não tenha sido suficientemente esclarecida, cresce sempre a ideia de que lhe tiraram a vida por desígnio de La Moneda de então.

O assassinato de Pablo Neruda

Há dois anos, em setembro de 2019, surgiu esse movimento de jovens que assomou um pouco mais tarde, em outubro, com a tomada de alguns vagões do metrô, protestando pelo aumento das tarifas de transporte. Em uníssono as pessoas disseram: não se trata de 30 pesos, mas sim de 30 anos de pavor e sofrimento. E foi verdade. 

Hoje o Chile vive novas circunstâncias, e se rege por um cenário em que a marca dos trabalhadores e das populações marginalizadas encontra seu lugar no alto da história. 

Como no Peru e outros confins da América, ali – onde aninhou o Neoliberalismo – se perfila sua tumba. E a marca das multidões não se mostra menor. Não lhe basta aos povos lutar hoje por um salário ou por um conjunto de elementares condições de trabalho. 

A tarefa é construir um país melhor, mais humano e mais justo. E por isso, como augurava Allende, se abrem as grandes alamedas, pelos quais transita o homem livre. 

“Precisamos construir um Chile coletivo, com direitos e rebeldia alegre de Allende”, diz atriz

O exemplo valoroso do mandatário caído, transcende e alenta as novas gerações de chilenos. Rapazes e moças que não tiveram a possibilidade de viver a história, a leem hoje nos olhos de seus pais e de seus avós. E o sangue dos mártires daquelas aziagas jornadas corre hoje pelas veias de milhões. 

Para o povo do Chile já acabou a vigência da Constituição da ditadura. E uma nova Carta Magna se torna indispensável. Por isso começaram um processo novo, com Assembleia Constituinte inclusive, e com as populações originárias à frente. A luz ilumina outra vez o cenário do sul. 

Em novembro haverá novas eleições, com uma direita dividida e derrotada. Nos episódios que marcarão essa contenda, os trabalhadores farão uma nova experiência de vida e de trabalho.   

Sabem que nada está escrito debaixo da terra, e que nada haverá de cair do céu. Tudo deverá ser conquistado graças ao sacrifício, ao valor e à luta de cada combatente. 

Análise | No Chile, Constituinte ganha impulso e deverá dar o tom das eleições no país

E os que se levantam hoje, cantam com Neruda:

“Eu quero meu país para os meus, quero/ a luz igual sobre a cabeleira/da minha pátria encendida / quero o amor do dia e do arado/quero borrar a linha que com ódio/fazem para apartar o pão do povo/ e ao que desviou a linha da pátria/até entregá-la como carcereiro/atada, até os que pagam por feri-la/eu não vou contar nem calar/vou deixar seu número e seu nome/cravado na parede da desonra”.

Gustavo Espinoza M., Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima, Peru.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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