Em entrevista, coordenadora de força-tarefa do Greenpeace classifica como extremamente preocupante ritmo de liberação de pesticidas no Brasil. “O que a gente está vendo é o pacote do veneno em pílulas”, afirma.
Numa espécie de “observatório do agrotóxico”, a rotina de uma equipe do Greenpeace acompanhar, todo os dias, as atualizações publicadas no Diário Oficial da União. A força-tarefa verifica quais novos produtos são liberados para consumo nas lavouras do Brasil: já foram 239 só neste ano.
Segundo o levantamento feito pela ONG, apenas um ingrediente ativo seria novo: Florpirauxifen-benzil, sobre o qual ainda não há informações disponíveis no site da Anvisa. Os demais são genéricos que já apareciam em outros produtos existentes no mercado.
Da lista total de novos produtos liberados neste ano, quase metade, ou 43%, é altamente tóxica. Dos 239 produtos, 31% são de agrotóxicos proibidos na União Europeia (UE).
Em entrevista à DW Brasil, Marina Lacôrte, coordenadora da campanha de Alimentação e Agricultura do Greenpeace, diz que há falta de transparência quanto ao processo de liberação de agrotóxicos e denuncia que o ritmo acelerado é uma ameaça à saúde da população, à própria produção agrícola e ao meio ambiente.
A entrevista é de Nádia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 25-06-2019.
Mídia Ninja
O agronegócio é muito mais negócio, e muito menos agricultura.
Eis a entrevista.
Nádia Pontes: Como é a rotina de checagem do Greenpeace sobre as novas liberações de agrotóxicos?
Marina Lacôrte: A gente tem feito uma compilação dos dados a partir das informações que saem no Diário Oficial. São publicados dados sobre o ingrediente ativo, tipo de produto, marca, a toxicidade do produto.
Quando esses ingredientes ativos são liberados, a primeira coisa é ter uma monografia da Anvisa. A gente complementa com informações dessas monografias e também compara principalmente com a legislação da União Europeia, porque ela é mais restritiva. Neste ano, são 239 produtos novos liberados, ou seja, que já podem estar na prateleira.
Segundo a análise de vocês, as liberações ocorrem num ritmo padrão?
Vemos um ritmo totalmente acelerado. Ouvimos que estão sendo priorizadas moléculas novas, menos tóxicas, que a ministra da Agricultura [Tereza Cristina] está dando mais celeridade para priorizar esses tipos de molécula e que colocou mais gente para trabalhar. Mas não é verdade.
O que vemos mesmo é que foi uma decisão política. Fica muito claro quando comparamos os números desse mesmo período, de janeiro à última semana de junho, com os últimos dez anos. Vemos um recorde em relação a esse período nos últimos dez anos que já ultrapassa o número de produtos aprovados em alguns anos inteiros: 239 é mais do que foi aprovado em todo o ano de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015. Vemos um ritmo muito acelerado mesmo a partir de 2016 e agora mais acelerada do que nunca.
É extremamente preocupante. A sociedade civil, entidades de pesquisa e de saúde falaram muito do pacote do veneno no ano passado. Foi uma grande mobilização contra um projeto de lei que quer enfraquecer a legislação. E agora o que está acontecendo é exatamente o que as pessoas que defenderam essa nova lei dentro do Congresso queriam, principalmente a Tereza Cristina quando ainda era deputada e hoje é ministra. O que a gente está vendo é o pacote do veneno em “pílulas”.
Nesse trabalho de acompanhamento, vocês notaram alguma mudança de procedimento quanto à liberação ou há ainda transparência por parte de quem libera as informações?
Em relação aos agrotóxicos, há o sistema do Ministério da Agricultura, onde ficam disponíveis os produtos novos. Isso não mudou. Mas há uma demora na atualização das informações, então pode ser que um produto já tenha sido liberado e não pode ser encontrado lá.
No site da Anvisa ficam as monografias. O sistema para poder fazer essa busca nunca foi muito bom, muito didático ou acessível para as pessoas. Mas ele tem uma certa transparência. Nesse sentido, permanece. O que não está transparente é como exatamente esses processos têm sido feitos.
Nada mudou na legislação. Também não houve uma mudança na estrutura da Anvisa, por exemplo, e não teve concurso público. A ministra disse que colocou duas pessoas a mais para avaliar os pedidos de novos agrotóxicos.
Então é claramente uma diretriz política de priorizar esse tipo de atividade. A Anvisa nunca nos respondeu essa pergunta. O Congresso também já fez ofício perguntando o que havia mudado nesse processo para acelerar tanto. Não houve resposta. Pode ter havido algumas simplificações burocráticas, isso é possível sem precisar de uma mudança na lei.
Nenhuma dessas moléculas é mais moderna ou nova. Há apenas uma molécula nova no meio disso tudo, o resto são as mesmas moléculas velhas e tóxicas de sempre. Inclusive quase metade é extremamente tóxica: 43% exatamente.
Existe um programa de monitoramento que acompanhe o uso dos agrotóxicos, os efeitos na saúde das pessoas e no meio ambiente?
O que é mais preocupante ainda é que não há um monitoramento no Brasil. Nós temos mais de 500 moléculas aprovadas e você não tem laboratório no país que faça uma análise de todas essas moléculas.
A gente não tem um monitoramento da água, por exemplo. Há um monitoramento muito precário que analisa menos de 30 substâncias e não acontece em todos os municípios.
Em vez de priorizar a colocação de um novo produto no mercado, deveriam ser priorizadas outras medidas que trazem benefícios para a saúde da população. Porque a liberação de novos agrotóxicos só traz benefícios para as empresas requerentes. Não vai baixar o preço, porque já existem milhares desses produtos no mercado. E não se deveria colocar o lucro na frente da saúde das pessoas.
É possível saber quanto exatamente de agrotóxico é usado nas plantações brasileiras?
Existe um programa de monitoramento de resíduos em alimentos e existe uma portaria que determina que esse monitoramento seja feito na água, o que não é cumprido.
O monitoramento dos alimentos está completamente parado. A gente não tem resultado desde 2016, e esse último resultado que saiu demorou mais de dois anos.
Essa informação é a mais difícil de se conseguir, a do consumo de agrotóxicos. Existem dados da indústria em termos de volume comercial e quantidade, mas são dados da indústria – e costumavam ser mais transparentes. Agora é necessário requisitar os dados, e são fornecidos dados do uso comercial e da quantidade, e não o uso por área.
Não conseguimos saber às vezes se aquele produto foi comercializado, se foi de fato utilizado, se não ficou apenas na prateleira da loja. A gente sabe que Brasil e Estados Unidos estão nas primeiras posições na questão de volume comercial. Por serem países muito grandes e pela agricultura baseada nesse modelo convencional que faz uso de agrotóxico, é muito seguro dizer que são os maiores consumidores.
Não existe nenhum órgão que forneça esse dado no Brasil. Houve um estudo encomendado no país, mas que não incluiu, por exemplo, eucalipto ou pastagem.
Na visão de vocês, qual é o clima para discussão e debate público sobre as questões em torno do agrotóxicos?
Diálogo é uma coisa que não faz muito parte do dia a dia desse governo. Outro ponto é o meio ambiente ser uma pauta inimiga. Bolsonaro disse isso ainda quando era candidato, e outros ministros também. E agora eles estão no Executivo.
Antes, a gente tinha um debate muito valioso, apesar de a correlação de forças nunca ter sido equilibrada. Havia um debate dentro do Congresso. As coisas agora acontecem dentro do Executivo. Eles não precisam mais debater o pacote do veneno no Congresso, pois estão com a caneta na mão.
Bolsonaro declarou que achava mesmo que a avaliação de agrotóxico tinha que ficar só com a Agricultura, e que a Anvisa, órgão de saúde, e o Ibama, de meio ambiente, deveriam ficar de fora do processo.
É um ataque declarado. Buscamos alternativas para dialogar no Legislativo. A mobilização social mostra que ninguém quer mais veneno, que a gente não precisa de veneno para produzir, que esse discurso da rentabilidade econômica não é verdade. Simplesmente porque essa produtividade não é sustentável no longo prazo. Ela vai cair porque é uma agricultura que detona o seus recursos, esgota seus recursos, contamina os seus recursos, que degrada.
O consumo exacerbado de água e a contaminação não estão nessa conta. Vai faltar lá na frente. O desmatamento e as emissões também vão causar problemas para a própria agricultura. As mudanças climáticas vão gerar um aumento do preço das próprias commodities, segundo mostrou um estudo do Greenpeace.
O agronegócio e a bancada ruralista falam que precisam produzir alimentos como se tivesse saindo um caminhão de soja daqui direto para alimentar famintos. Mas não é isso que acontece. O agronegócio é muito mais negócio, e muito menos agricultura.
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