Pesquisar
Pesquisar

Desarranjo partidário: a elite brasileira terceirizou o serviço sujo

Uma década de conspiração produziu efeitos irreparáveis no quadro político-partidário do país.
Maria Inês Nassif
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Ironicamente, os efeitos mais devastadores foram sentidos nas estruturas políticas de centro e de direita que, envolvidas na trama para desqualificar a política – que teve como centro a Operação Lava Jato – não entenderam que renunciavam à própria organicidade e terceirizavam poder (e hegemonia) a políticos de ocasião, levados à ribalta pela onda extremista de direita ceivada desde as manifestações de 2013.

Não sobrou pedra sobre pedra das organizações político-partidárias nas quais as classes dominantes “modernas” operavam antes.

E os partidos de aluguel e de extrema-direita, estimulados por elas para aumentar a onda antipetista, fogem totalmente ao seu controle: essas legendas são mais facilmente manipuláveis por lideranças militares e extremistas e mais facilmente corrompíveis por governos do momento. Não são cooptáveis por ideologia.

Assista na TV Diálogos do Sul

Nada melhor para entender o resultado da ação suicida dos grupos políticos de centro – e mesmo os de direita não extremada – do que a composição atual da Câmara.

Ela reflete on line, a cada votação, caras e pensamentos de uma massa de políticos despolitizada, sem vínculos de classe e com claros interesses comerciais de ocasião, e uma absoluta incapacidade desse amontoado de parlamentares de articular qualquer projeto político que não seja o de se vender no varejo para cumprir a função delegada pela elite do país: desestabilizar as instituições, assaltar as classes sociais menos favorecidas e apoiar projetos autoritários de poder.

Por entender a política como algo menor, desprezível, um estorvo que simplesmente deveria ser colocado abaixo para que se completasse a conspiração contra os governos de esquerda, a elite brasileira terceirizou o serviço sujo.

Baú do Pimentas / Conflitos de interesse e as eleições de 2022

Sua mão de obra é o lumpesinato que ascendeu à burguesia sem, contudo, obter aceitação de sua nova classe; parlamentares levados à política pela via da manipulação religiosa de pessoas humildes; uma nova classe política moldada à imagem e semelhança da antiga política de coronéis (“donos” da política local), mas com caráter mais nacional, interligação facilitada pela informatização dos meios de pagamento, pelo uso das mídias sociais e pela ação indiscriminada de fake news; grupos de interesse (como agronegócio e indústria armamentista) que são, entre a burguesia, os mais radicais e os mais cruéis quando se trata de formulação de políticas de proteção social, do trabalho, de políticas de segurança e de proteção à propriedade privada; e milicianos e militares que, na política, ampliaram espaços de poder antes circunscritos a populações submetidas pelo medo ou nos quartéis.

Uma década de conspiração produziu efeitos irreparáveis no quadro político-partidário do país.

Marcelo Camargo / Agência Brasil
Nada melhor para entender o resultado da ação suicida dos grupos políticos de centro

No pós-ditadura militar, o embate de forças que produziu, em 1988, a Constituinte da democracia e sedimentou também um quadro partidário que, embora majoritariamente conservador, foi capaz de formular projetos políticos – ao centro e à esquerda – que mantiveram o país em águas relativamente tranquilas até 2013.

É curioso, mas depois de 21 anos de ditadura (e 13 anos de bipartidarismo), o novo quadro partidário que começou a se organizar em 1979 (com o fim do bipartidarismo) retomou o perfil do sistema partidário pré-golpe.

No atacado, algumas grandes agremiações: um partido das elites intelectuais com afinidade na área militar e acesso às elites econômicas, formulador de projetos de desnacionalização da economia e fortemente vinculado aos Estados Unidos (UDN no pré-golpe, PSDB no pós); uma legenda com crescente vinculação orgânica com a classe trabalhadora, com vocação para partido de massas mas capaz de se adequar à disputa institucional pela hegemonia (PTB antes, PT depois); partidos de centro constituídos como uma espécie de conglomerado de lideranças locais (antes PSD, depois PMDB e PFL).

O sistema anterior a 1966 e reeditado em 1979 também abria espaço para pequenos partidos regionais que funcionavam como feudos de lideranças desalojadas do condomínio partidário maior, ou como legendas de aluguel (como o PSC e o PSP, hoje muitos deles), e eram apêndices dos partidos no poder; pequenas legendas de esquerda sem vocação para organização de massa, ou impedidos de funcionar legalmente, que passavam a orbitar em torno do grande partido trabalhista (PCB , PCdo B e PSB antes, PCB logo depois, e até agora PCdo B, PSB, PDT e PSOL); ou pequenas organizações de direita.

Ditadura do proletariado? Para sair do atoleiro no Brasil só com retomada da luta de classe

O enfraquecimento eleitoral dos tucanos, o desprezo da classe social que representava pela política e o ataque às instituições democráticas promovido por essas elites políticas e econômicas corroeram internamente os partidos da coalizão de FHC.

No quadro pós-impeachment do primeiro presidente eleito, Fernando Collor (PRN), em 1991, a polarização eleitoral foi construída em torno do PSDB e do PT. O sistema partidário reeditado fez do PMDB o antigo PSD: mantinha grandes bancadas parlamentares que apoiavam majoritariamente o governo do momento, mas com enorme habilidade para pular do barco quando os ventos sopravam contra o aliado.

Dispunha de uma reserva de dissidentes capaz de acenar dubiamente para a opinião pública quando assumia apoio a medidas impopulares, ou para garantir os interesses inconfessáveis das suas lideranças.

Ao PFL (hoje DEM, que sofreu a dissidência do agora PSD) coube o papel de uma UDN mais à direita, ideológica e perfeitamente ajustada ao governo tucano.

Na prática, não existiram diferenças ideológicas entre ambos nos dois períodos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002).

Apenas a aglomeração de lideranças mais tradicionais e familiares no PFL, e de intelectuais originários da esquerda no PSDB, davam a imagem de “atraso” a um e a de “modernidade” a outro. Nada além disso.

Assista na TV Diálogos do Sul

Não foi nada moderna, todavia, a estratégia de desestabilização do governo Dilma em que o PSDB, a menina dos olhos da elite brasileira, e o PFL, o amigo que a elite mantinha envergonhada, se meteram.

O comportamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na condução do chamado mensalão, e a sua tolerância com a condução criminosa da Operação Lava Jato pelo juiz de primeira instância, Sérgio Moro, e pelo procurador paranaense Deltan Dallagnol, não existiriam sem o vínculo orgânico do sistema judiciário com o PSDB, que funcionou como uma verdadeira máquina de propaganda política antipetista.

Supunha-se, então, que o PSDB seria o maior beneficiário do desgaste do partido de Lula e Dilma. A radicalização judicial e partidária, todavia, feriu de morte o partido de FHC.

A onda de comoção pública artificialmente criada contra o PT fugiu ao controle sem que essas forças políticas “modernas” tivessem a expertise desenvolvida internacionalmente pela extrema-direita não apenas de golpear as instituições, mas transformar o golpe em votos.

O enfraquecimento eleitoral dos tucanos, o desprezo da classe social que representava pela política e o ataque às instituições democráticas promovido por essas elites políticas e econômicas corroeram internamente os partidos da coalizão de FHC.

Eles simplesmente deixaram de polarizar com o PT. Ascenderam à direção partidária tucana quadros com mais verniz e roupa de grife, mas política e socialmente muito semelhantes ao lumpesinato que ocupou os microfones da Câmara para dizer impropérios contra a presidente Dilma Rousseff na votação da abertura do processo de impeachment que a vitimaria.

Hoje o PSDB não tem quadros para liderar e não tem lideranças para disputar uma Presidência. Nessa articulação burra, preguiçosa e golpista para tirar o PT do poder, a burguesia brasileira abriu um espaço inédito para que generais extremistas de direita e milicianos emergissem no cenário político com estratégia de ocupação de todos os espaços de poder. A democracia brasileira está pagando o preço.

Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política.

Edição: Leandro Melito


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na TV Diálogos do Sul

 

Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:

  • PIX CNPJ: 58.726.829/0001-56 

  • Cartão de crédito no Catarse: acesse aqui
  • Boletoacesse aqui
  • Assinatura pelo Paypalacesse aqui
  • Transferência bancária
    Nova Sociedade
    Banco Itaú
    Agência – 0713
    Conta Corrente – 24192-5
    CNPJ: 58726829/0001-56

       Por favor, enviar o comprovante para o e-mail: assinaturas@websul.org.br 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Maria Inês Nassif

LEIA tAMBÉM

Diretor de “Operação Condor” vai solicitar reabertura de investigação sobre morte de João Goulart
Diretor de “Operação Condor” vai solicitar reabertura de investigação sobre morte de João Goulart
Comida cara “mercado” ameaça governo, mídia golpista mente e bolsonarismo surfa na onda
Comida cara: “mercado” ameaça governo, mídia golpista mente e bolsonarismo surfa na onda
Privatização da Sabesp
“Imperialismo total”: como economia brasileira foi moldada para suprir o capital internacional
Acordo de Bolsonaro permite humilhação a brasileiros deportados dos EUA; cabe a Lula anular
Acordo de Bolsonaro permite humilhação a brasileiros deportados dos EUA; cabe a Lula anular