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Dina Boluarte brinca com fogo ao transformar soldados em assassinos do próprio povo

A sujeição tem limites e todas as pessoas – inclusive “as de baixo” – as conhecem
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Deslocar 500 soldados, protegidos por carros de combate e munidos de armas de guerra para o sul do país para neutralizar os protestos das populações de Juliaca, Puno e arredores é, por dizer pouco, brincar com fogo. E a expressão tem dupla conotação. 

Primeiro, porque coloca os homens de uniforme ante uma disjuntiva não desejada. Ninguém ingressa em uma instituição castrense com a ideia de que deverá voltar suas armas contra o povo e assassinar seus compatriotas.

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Obscuros personagens, como Thelmo Hurtado ou Álvaro Artaza, o “Comandante Caminhão”, incubaram esse pesadelo; mas ainda eles não tiveram outra alternativa senão fugir da realidade – e deles mesmos – para não enfrentar horrendas culpas.

Porém, também porque aqueles que assumem a disposição de ditar tal ordenança, não podem estar completamente seguros de que suas ordens serão cumpridas “sem dúvidas nem murmurações”. A sujeição tem limites e todas as pessoas – inclusive “as de baixo” – as conhecem. 

É que a cultura política se estendeu, e hoje chega até os quartéis. Ali se sabe também que ninguém deve obediência a uma ordem indevida. Em outras palavras: ninguém pode ordenar a um soldado que se converta em verdugo de seu povo simplesmente porque ele é o último elo na Cadeia de Mando.

Levante no Peru mostra que povo compreende protagonismo e identidade social

Simón Bolívar, o Libertador de cinco Nações, lançou em seu momento uma frase lapidar que hoje parece emblemática; “Maldito o soldado que volta suas armas e dispara contra seu povo!”. E premonitoriamente a disse no Peru, e quase nas vésperas da batalha de Ayacucho, cujo centenário celebraremos em dezembro do próximo ano. 

Agora, 100 anos mais tarde, aos nossos soldados – “o povo em armas” – é dito: marchem pelos agrestes territórios do altiplano batendo na porta de aldeias e povoados. Juliaca, Ilave, Juli, Yunguyo, Desaguadero e outras localidades, registrem sua passagem numa estranha mistura no qual se confunde o temor com a esperança. As populações haverão de recebê-los com fundada reserva, mas também com um hálito de ilusões e esperanças.

A sujeição tem limites e todas as pessoas – inclusive “as de baixo” – as conhecem

Wayka – Reprodução Twitter
Classe Dominante sonha em amestrar os soldados para convertê-los em assassinos de seu povo




Anos de violência

Nos anos da violência, quando o sangue corria pelos Andes e a morte dominava em Ayacucho, Huancavelica, Apurimac e outras regiões, os puneños souberam mantar à raia as duas expressões em voga: o senderismo em ação e o terrorismo de Estado. 

Ambos se expressaram eventualmente, mas de maneira isolada, e não comprometeram os núcleos básicos da sociedade local. Por isso, os puñenos costumam dizer com orgulho que eles mantiveram à raia os senderistas, mas também os uniformizados. Valioso antecedente, sem dúvida, que as autoridades de hoje parecem simplesmente não conhecer. 

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Há algumas semanas, nos primeiros dias de janeiro, em Puno, se produziram dramáticas cenas de horror. Sob o pretexto de “restabelecer a ordem” e “enfrentar o caos”, a Polícia Nacional atacou a sangue e fogo multidões que portavam uma profunda ira acumulada. O desenlace foi uma estela dolorosa que deixou o país atônito: 19 mortos, que hoje são apenas um terço dos ocorridos no cenário peruano. 

O mundo viu com estupor o que está acontecendo. Na Dinamarca, Suécia, França, Alemanha, nos Estados Unidos mesmo e por certo na recente assembleia da Celac, falaram povo e governos. E todos não tiveram senão palavras de condenação à barbárie instaurada em nosso solo.


Sangue derramado

Mas se nos atemos às disposições recentes, pareceria que o sangue derramado não terminou de satisfazer os “de cima”: querem mais. Então enviam a base da instituição armada – os soldados – para que completem a quota que esperam, instalados em suas residências de verão. 

Não há que esquecer que na instituição castrense perdura um legado inapagável. Em 18 de dezembro de 2014, na Escola Militar de Chorrillos, teve lugar a cerimônia de graduação da CXXI Promoção, que na circunstância, levou o nome de Juan Velasco Alvarado.

Aqueles que pensaram que a lembrança do homem que escreveu em pedra aquilo do binômio “Povo e Força Armada” se havia extinguido, podem ter uma grata surpresa, ou um susto maiúsculo, segundo sua opção de consciência. 

Ali descobrirão que campesinos e soldados enfrentam um desafio comum: abrir passo a um entendimento histórico que faça luz sobre nossas tristes trevas.


Herança de Velasco

Velasco foi quem disse que a Força Armada tinha que mudar seu papel no país. Tradicionalmente usada como cães do inferno de interesses oligárquicos, agora seria uma ferramenta de libertação nacional. Isto ocorrerá inevitavelmente agora? Talvez ainda não tenha amadurecido, mas haverá de suceder. Ninguém duvide. 

Por ora, as “medidas complementares” adotadas para dobrar a resistência do povo de Puno foram brutais; o privaram de água, luz e serviços de comunicação elementares. Querem que se sinta isolado. E essa mensagem assomou brutalmente nas próprias palavras de Dina Boluarte: “Puno não é o Peru”.

No Peru, autoridades massacram manifestantes e depois desfilam em “marcha pela paz

A expressão reflete a vontade da Classe Dominante. Ela não quer o legado de Micaela Bastidas. Sente-se parte de uma aristocracia mestiça embriagada de Poder e Riqueza. Sonha em amestrar os soldados para convertê-los em assassinos de seu povo. 

Para fazê-lo melhor, renega nossas próprias tradições solidárias e busca assim afastar-nos de nossos irmãos da América: México, Honduras, Colômbia, Bolívia e Chile. 

Nos abomina a todos. Objetivamente, está brincando com fogo.

Gustavo Espinoza M. | Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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