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Fragmentos de um testemunho carcerário na ditadura militar do Paraguai

"Na minha experiência carcerária tive que suportar experiências dolorosas, todas elas formam um conjunto de lembranças amargas difíceis de esquecer"
Martín Almada
Diálogos do Sul
Assunção

Tradução:

Estando eu preso na Primeira Delegacia, em janeiro de 1975, recém-criada sede da Interpol, a cujo cargo estava o Delegado Domingo Galeano, de triste lembrança, fui testemunha de um fato incrível que ainda recordo com surpreendente estupor.

Na minha experiência carcerária tive que suportar desde dolorosas torturas, a morte da minha esposa Celestina Pérez, situações de isolamento etc.  Todas elas formam um conjunto de lembranças amargas difíceis de esquecer. Mas entre todos esses fatos destaco um episódio que parece haver saído de uma obra tragicômica, se não fosse pelo terrível que era a situação e pelo grau de ignorância, incultura e ódio que representa a ditadura militar paraguaia.

É preciso voltar a 1969, quando em San Isidro de Jejui, Paraguai, se iniciou a experiência utópica de viver como irmãos em uma comunidade camponesa. Os sacerdotes partidários da ditadura de Stroessner – José Venancio Ortellano, Chang Rodriguez Sidney (de Trinidad Tobago e pároco de Lima), Celestino Mastrocola (italiano) – denunciaram este “original projeto cristão” às autoridades acusando-a de ser uma organização de extremistas marxista-comunista. (*). A denúncia foi apresentada ao então Ministro do Interior, Sabino Augusto Montanaro.

"Na minha experiência carcerária tive que suportar experiências dolorosas, todas elas formam um conjunto de lembranças amargas difíceis de esquecer"

Pixabay
"Na minha experiência carcerária tive que suportar desde dolorosas torturas"

O governo de Stroessner reprimiu a sangue e fogo a linda experiência da citada comunidade por meio de um esquadrão policial e militar sob o mando do coronel José Félix Grau, conhecido como o “carniceiro da morte”. Muitos dos protagonistas da comunidade foram parar em centros de tortura, em Assunção e no interior do país. Esta brutal repressão ocasionou um forte enfrentamento da Igreja Católica com o governo ditatorial de Stroessner, coisa que não evitou o fim da Comunidade, nem a detenção de muitos dos participantes na experiência.

Estando preso, como já disse, na Primeira Delegacia, tive ocasião de escutar o surpreendente e incrível relato sobre a experiência da Comunidade cristã, do qual creio necessário que haja constância por ser demonstrativo do nível cultural dos repressores da ditadura e também indicativo da falsidade intelectual da maioria das acusações que sustenta contra muitos dos opositores detidos. O relato foi feito, diante da nossa cela, pelo delegado Francisco Ramírez, também chamado de Ramírez “Tatá”, ou seja, Ramírez “fogo”, por sua conhecida ferocidade. Era escutado por um pelotão atemorizado de jovens oficiais recentemente graduados.

Francisco Ramírez se dirigiu aos seus subordinados nestes termos: 

“Jesus era uma boa pessoa, mas frouxo, porque foi embaucado pelo comunista nº 1, Carlos Marx, sócio de Fidel Castro. Quando Jesus percebeu que Marx sabia ler e escrever em alemão e em inglês, o convidou para dar um passeio pela Índia e para isso alugou dois burros. Por que a Índia? Para conversar com Ulisses a fim de conhecer sua Odisseia. A viagem foi muito longa e Marx não parava de falar da reforma agrária e de viver juntinhos, como irmãos, sem exclusões. 

Segundo Marx, a religião era um aipo (!) que não se pode comer porque intoxica tanto o corpo como a mente, e para isso existe a polícia. 

Jesus percebeu a grande capacidade intelectual de Marx e, por isso, lastimosamente lhe pediu que escrevesse a Bíblia com a condição de fazer aparecer como autores aos doze apóstolos analfabetos e vagos. 

Destacou que os bispos, sacerdotes e monjas hoje presos por culpa da Bíblia castro/comunista se tornaram subversivos. Mas Stroessner deu-se conta rapidamente e impôs a ordem, com democracia sem comunismo.”

Conste que o delegado Francisco Ramírez cursou até o terceiro ano do curso primário sem ser aprovado, embora soubesse ler e escrever. Foi cooptado logo cedo pelo aparelho repressivo e obteve uma bolsa de especialização anti-subversiva na Escola das Américas, na zona do Canal do Panamá, da qual regressou com notas excelentes.  

(*) Fonte:  “Ligas Agrarias Cristãs. Departamento de Concepción. Testemunho do Paí Nemesio Cantero. Edição de SERVILIBRO, 2012.” 

*Martín Almada é colaborador de Diálogos do Sul desde Assunção, Paraguai.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Martín Almada

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