Carmem é atriz bissexta, tendo brilhado no longa-metragem Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé, além de exibir sua veia artística no modo despojado com que conta histórias. Preta é cantora, e prepara o lançamento de um álbum, com produção de Maria Gadú.
Ambas já eram bastante famosas entre os movimentos sociais e os coletivos de periferia, com reputação consolidada. Mas a chegada delas à grande mídia comercial aconteceu em julho, por conta de uma acusação sem provas de que, à frente do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), praticariam extorsão. Preta passou 100 dias na prisão, na capital paulista.
Carmem, contra quem a justiça paulista expediu mandado de prisão preventiva, optou por um “exílio”, como ela mesma diz. Após árdua batalha jurídica e muitos atos públicos em favor delas, obtiveram habeas corpus e voltaram à ativa – não tanto como queriam, pois medida cautelar as proíbe de frequentar ocupações e assentamentos enquanto o processo continuar correndo. Viveram drama igual, no mesmo período, Sidney Ferreira Silva (também filho de Carmem), Angelica dos Santos Lima e Edinalva Franco – a última do grupo a obter habeas corpus e ser libertada.
Créditos: Sérgio Silva
Camem e Preta Ferreira
Nesta entrevista, Carmem e Preta falam de futuro, delas e do Brasil. Afirmam que todo o pobre preso é um preso político. E que a liberdade da elite corrupta é o outro lado dessa moeda: é uma liberdade política. A justiça, como valor, pouco tem a ver com isso, graças, em grande parte, ao sistema judiciário que garante a “escravidão contemporânea”. Depois de sua experiência na prisão, Preta pretende organizar um movimento, uma frente, em prol da população carcerária.
Durante a conversa, que aconteceu dois dias antes do massacre de Paraisópolis, elas atacam duramente o pacote anticrime apresentado por Sergio Moro. Para elas, trata-se de um salvo-conduto para o genocídio da população negra. “Esse pacote desse juiz só deu carta branca para o que esses governadores já vêm fazendo nos estados do Brasil com a polícia assassina. Isso aí é o fascismo que está revelado. É o genocídio. Esse pacote é isso”, afirma Preta.
Embora pessimistas quanto à possibilidade de ocorrer um movimento de massas contra a escalada autoritária e a retirada de direitos que ocorrem no país, as duas acreditam que a educação – não essa tradicional, mas outra, inclusiva – e participar de lutas coletivas são dois fatores que nem o medo e o fascismo podem vencer.
Acompanhe:
Preta, como foram os dias na penitenciária? O que mais te doeu? No meio da dor, descobriu algo novo? Fale um pouco também de sua relação com as outras detentas.
Preta: Estar presa é difícil, ainda mais quando você está sendo acusada de um crime que você não fez, uma acusação sem provas. Isso me causou revolta, mas o que mais me doeu foi ficar longe da minha família, foi ter minha mãe e meus irmãos foragidos, meu irmão preso, e eu não poder estar junto para ajudar a provar que nós éramos, que nós somos inocentes. Dentro do presídio, a gente acha que vai encontrar um mundo de pessoas cruéis, mas não é. As pessoas são humanas, as pessoas se acolhem, as pessoas se ajudam. Quando eu fui presa, todo mundo lá já sabia quem era eu. Então eu fui muito bem tratada – pelas presas, pelos funcionários dos primeiros lugares que eu passei, não. Eu perdi o direito a ter direitos, foi isso que aconteceu.
Carmem, você já teve experiência parecida, como foram os dias em que seus filhos estiveram presos?
Carmem: Olha, os dias em que meus filhos estiveram presos, eu, embora não estivesse em cárcere do poder público, eu também estive em cárcere, porque eu estava exilada, eu também tinha pedido de prisão. Foi muito angustiante porque eu não tive nenhum direito de ir ver meus filhos, se eu fosse até lá eu também seria presa. É uma angústia se sentir impotente, não poder ajudar, e acima de tudo, injustiçada. Não tem pior momento do que você acreditar que cria sua família para ser cidadão de bem, respeitando a Constituição, na luta que eu propago, que é uma luta por direitos, aquilo que você procura fazer certo, ser dilacerado. Eu me senti muito angustiada. Parecia que eu tinha entrado num coma induzido.
Preta, você afirmou em entrevistas que essa experiência despertou em você uma nova frente de luta, a luta pela população carcerária. E que as mulheres sofrem diferentemente dos homens, também nessa condição. Quais são seus planos futuros nesse sentido?
Preta: Minha mãe deixou sempre bem claro que pessoas são pessoas, independente de qualquer situação em que esteja. Nunca fui uma pessoa racista, sempre convivi com todo o tipo de pessoa. No presídio descobri isso: que elas sofrem sim, com o descaso, elas são jogadas, só jogadas. Ninguém pergunta como vivem essas mulheres. Elas são dopadas para viver à mercê.
Dopadas literalmente?
Literalmente dopadas. Isso quando tem remédio, porque normalmente o que tem, para qualquer coisa, é dipirona e paracetamol. Não tem atendimento nenhum. Essas mulheres não têm ninguém para com elas. Então, eu quero montar uma frente com advogados e outras pessoas que deem chances para essas mulheres. Não só para mulheres, mas para homens também que queiram se ressocializar. Essas pessoas são chamadas de reeducandas, mas lá não tem nada. Ficam lá o dia inteiro, uma vida toda sem fazer nada. E você sabe que mente vazia é oficina do diabo, né? Então eu quero montar um projeto para trazer de volta essas pessoas para a sociedade. Por que quando elas saem, que liberdade é essa que vão ter? Elas deixam de pertencer a esse mundo aqui fora. Quero criar um projeto para ressocializar de verdade. Até por que se elas estão presas, foi por falta de oportunidade. Ninguém vai preso por que quer. O que sobra é isso: traficar, roubar, matar. E dessa forma o Brasil vai caminhando. Quando um governo diminui a verba para educação para construir presídio, já dá pra imaginar o futuro da nação. Tudo isso que está acontecendo, essa política de encarceramento, é a escravidão contemporânea. Por que o presídio é um navio negreiro.
O projeto também terá objetivo de tentar provar a inocência dessas pessoas?
Sim. Até por que a maioria dessas pessoas é, sim, inocente. São pessoas que estão ali de maneira forjada.
Os direitos humanos, conceitualmente e também na prática, sempre foram atacados. Porém, na conjuntura atual, isso é feito de maneira aberta. Pessoas eleitas batem no peito, orgulhosamente, para se declararem contra os direitos humanos e dão ordens, à luz do dia, para que esses direitos sejam desrespeitados. As milícias fazem parte do Estado. As balas perdidas continuam zunindo e matando. Movimentos sociais sendo perseguidos. O vocês acham que devemos ou podemos fazer para enfrentar essa escalada autoritária? Como não sucumbir ao medo?
Carmem: Eu até queria fazer uma ratificação sobre o projeto da Preta: não é um projeto pra provar inocência, é pra fazer justiça. Porque até mesmo quem fez algo errado merece a oportunidade de ser ressocializado, de uma forma educativa, não de assistencialismo.
Agora, o que a gente tem de fazer é um projeto de educação, mas não a (educação) restrita. E também não é pra dentro da prisão, mas antes disso, para prevenir. E antes disso (a prisão) é esclarecer. Que os governantes deixem de fazer programas de governo, mas programas para o Estado. Por que a gente tem tantas leis, temos uma Constituição que todo o dia é prostituída. Sim, porque tem tanto juiz que foi indicado – e deveria ter eleição para juiz, a gente não sabe qual a forma que um juiz ou desembargador está lá, deveria ter uma eleição com participação popular. E que não se influencia o governo a criar tantas cadeias, e sim a investir em escolas e faculdades. É melhor educar que castigar.
Preta: Nas escolas, a gente sempre aprendia matemática, hipotenusa, essas coisas que a gente não usa, quando adulto. Por que não se dá aulas sobre direitos, dentro das escolas? Por que se o preto tivesse aula sobre direito constitucional, direito penal numa escola, quando a polícia parasse, ele já ia saber se o policial está errado. Ele mesmo ia dizer ao policial que ele estava errada. Ia dizer: “Em qual parágrafo?”. Mas por que que eles não fazem isso? Por que pobre não tem de saber de lei. Se o pobre soubesse que seu direito está sendo tomado, aí a coisa muda de figura. É a educação mesmo, é a educação que vai mudar. Não se pode ficar oprimindo as pessoas, as pessoas precisam de educação.
A gente não falou sobre o medo. O medo é uma coisa absolutamente natural, especialmente quando um governo quer que você sinta medo.
Carmem: A gente tem hoje uma conjuntura de ódio. Uma conjuntura de implantação do medo, mesmo. É uma casta superior que se incrusta no poder através do medo. Por exemplo: o governador usa a polícia militar para impor o medo. Principalmente na população negra, nas mulheres negras, população LGBT, a população minorizada. Que não é minoria, é minorizada. Essa incrustação do medo só vai deixar de existir quando nós tivermos a educação. É através do conhecimento que a gente vai vencer o medo. Por isso não se investe tanto em educação neste país. Por que o conhecimento vence os preceitos, os preconceitos, vence também o medo. Quando a gente tem o conhecimento da causa, àquilo que nos é imposto, nós temos a palavra da defesa: ‘olha, isso aqui está errado, é assim, assim, assim’.
Preta: Estamos num Estado escravagista, é uma escravidão contemporânea. O povo preto ainda é escravizado, e isso é nítido. O medo será vencido quando todos entenderem que se faz luta junto. Eu não brigo individualmente, eu brigo pelo de todos. Não digo brigar. Acho que a gente tem de trocar esse nome: eu não estou brigando, eu estou…
Carmem: Reivindicando…
Preta: … reivindicando, por que estou querendo o que é meu, eu nasci nesta pátria. Saúde, educação, a minha moradia, é minha herança, eu não estou pedindo. Então, quando todo mundo entender que essa luta tem de ser feita junto, aí a figura muda de linguagem. Por que existem grupos que lutam individualmente. E é esse individual que está sendo amedrontado. Se essa massa entender que é a união que vai mudar, aí sim.
Carmem, você já viu tempos tão sombrios como os atuais?
Carmem: (risos) Na minha adolescência, nos anos 1970, eu vi o AI-5. Eu não entendia muito, mas não era tão revelado. Era velado, mesmo com aquela coisa da ditadura. Eu vi passarem épocas em que a inflação dominou o Brasil, eu vi empresários se suicidando por que tiveram seus bens sequestrados na era Collor, eu vivi uma época em que pra comprar uma lata de leite Ninho a gente tinha de pegar fila e só podia comprar uma, eu vi faltar gás no Brasil, eu vi a gente não ter carne pra comprar, antes do Plano Real, mas hoje a gente vive uma época que não é velada, é revelada, do ódio acima de tudo, e também já chegando a essa proporção que a gente não vai ter mais os serviços públicos a nosso dispor. É assim uma ditadura que é revelada, sobretudo pela imposição do medo. E também vamos ficar sem serviços: estamos vendo aí que estão acabando com a saúde, não temos habitação, os direitos hoje são mercadorias… E quem governa o Brasil hoje praticamente diz: olha, aqui é para meia dúzia, é para quem pode. Vocês que não têm, literalmente, foda-se.
Eu queria que vocês falassem um pouco sobre o chamado pacote anticrime do Sergio Moro.
Carmem: Hehehehe…
Preta: Eu posso falar, eu posso falar? Esse pacote aí não é anticrime. Esse pacote aí é a revogação da carta da princesa Isabel. Rasga-se a Constituição, rasga-se essa carta, porque quem está morrendo é a população preta, periférica. E esse pacote desse juiz só deu carta branca para o que esses governadores já vêm fazendo nos estados do Brasil com a polícia assassina. Isso aí é o fascismo que está revelado. É o genocídio. Esse pacote é isso.
Vocês acham que o exemplo da resistência popular no Chile, na Bolívia, no Haiti, e também a dura repressão que estão sofrendo, podem nos ensinar algo, pode repercutir por aqui?
Carmem: Eu não acredito que por aqui vai irradiar aquela resistência. Por que o povo brasileiro ainda tem… pior que o fascismo é a hipocrisia. A gente tem uma parte da população que não tem uma causa única. Cada um está lutando pelo seu. O que foi 2013, foi uma emboscada, por causa de vinte centavos. Se falava em anticorrupção e a direita tomou conta daquela manifestação. Eu nem gosto de falar em direita, foi uma parcela que tomou conta e dali se originou o impeachment, ali começa essa separação bem clara… os que falam em nome da família, de deus, da moral, anticorrupção. E aqui a gente ainda lida com o fator mídia oficial, que presta um desserviço muito grande. Então, aqui as pessoas ainda vivem um sonho, eu não sei que sonho é esse, que não acordam. Quando se deixa passar o pacote da Previdência, quando se deixa passar a reforma trabalhista, quando se vê o desmonte da saúde, a venda de nossas riquezas como o pré-sal, a gente está vendo Minas Gerais sendo totalmente destruída pelas mineradoras… É muita coisa acontecendo e as pessoas não acordam. Nossa história sempre foi uma história contada erroneamente. Nossas riquezas sempre foram levadas para fora para pagar a conta dos outros. Então eu posso ser pessimista. Aqui as pessoas estão vendo o golpe e ainda aplaudem. Como pode votar num presidente que a primeira medida é dar porte de arma, se aqui tem gente que não tem nem o que comer? O Brasil ainda é o país do futebol, do samba, tudo está bem…
Preta: Essas mineradoras, essas empresas que se instalam num lugar, destroem uma cidade, destroem tudo, roubando as pessoas pobres, e depois vão embora, elas sempre terão para aonde ir. Mas e a população pobre? E as pessoas ficam quietas, não fazem nada, enquanto essas empresas, essas pessoas, continuam roubando.
Carmem: Eu não concordo que são elas que roubam. Quem rouba é quem entrega.
Preta: Tanto quem entrega quanto quem está roubando, pra mim, são as mesmas pessoas. Essas pessoas sempre vão ter pra aonde ir, e vão deixar o resto pros pobres. Como vão sobreviver, se tudo já foi extraído, roubado?
Tirando a questão da mídia e da educação, que vocês falaram, tem mais alguma coisa faltando para que as pessoas se apercebam?
Carmem: Ah, tem. As igrejas, né? Por que as igrejas evangélicas têm tanto poder? Por que tem bancada da Bíblia, bancada do boi, bancada da bala? Por que essa congruência com milícia, polícia, agronegócio? Por que são os poderes vigentes. As igrejas são as maiores deturpadoras, alienadoras. Embora a gente tenha muitos pastores que têm o conceito do bem, realmente. Mas, infelizmente, temos as cúpulas.
Preta: Eles deturpam quem é Jesus. Eles deturpam o que é a Bíblia. A Bíblia é um livro que tem tudo para todos. Mas tem uma Bíblia preta e outra branca. Por que que quando a gente tem religião de matriz africana eles dizem que é coisa do mal? Só existe um Deus para as pessoas brancas? Os pretos não têm direito a adorar o Deus que a gente quer? Existe seletividade na religião sim. E é uma religião política. As pessoas têm de começar a se atentar para isso também. A nossa religião, de matriz africana, foi negada. Não tivemos o direito de escolher. A religião de matriz africana foi jogada para escanteio e existe uma perseguição. Milicianos entram nos terreiros para matar os pais de santo e as mães de santo. Deus não é isso.
Carmem: Tem todo um aparato para dizer que reivindicar seus direitos é crime, é errado. A Justiça, a mídia, as cúpulas das igrejas. É isso.
A cultura, a arte, seminários e encontros, têm sido um elemento de aglutinação de pessoas de diferentes grupos sociais em torno da luta pela moradia. Um exemplo disso é a Ocupação Nove de Julho. A esquerda como um todo tem algo a aprender com isso?
Carmem: Tem. Não só a esquerda. Quando nós do MSTC resolvemos abrir nossas portas para a sociedade, fazer isso aqui horizontalmente, é justamente para promover essa convivência entre a arte, a cultura, o esporte, o lazer, a moradia, caminharem juntos. Por que a moradia é vista como algo em que a pessoa chega e se fecha. Não, a moradia é uma porta para vários outros direitos. E a arte é uma aproximação desses direitos, porque o que vivemos é uma disputa de classes, e a gente diz que a diversidade nos une. O que acontece na Nove de Julho é que, quando ocupamos lá em 2016, uma das decisões que tomamos é que a gente ia ter as portas abertas. Às vezes a gente ocupa um lugar que está abandonado e se tranca lá dentro, sem ter a compreensão de quem está ao nosso redor. Então fizemos um reverso: que todos tenhamos compreensão do outro.
Preta: até por que esses espaços, não só o Nove de Julho, mas outros do MSTC são para todos. Existe uma área de lazer e convivência no centro da cidade de São Paulo que todos podem usufruir, a Nove de Julho acaba proporcionando isso. E mostra, sim, que perante a Constituição todos são iguais e podem conviver, independentemente de valor monetário que a pessoa tenha. As pessoas têm de se conhecer, as pessoas têm de conhecer o outro lado. A cultura, a arte, a música acabam rompendo esses muros, essa coisa de dizer ‘eu sou de esquerda, eu sou de direita, eu sou isso, aquilo’, não, somos seres humanos. Temos de lutar pela mesma coisa, que é patrocinar o bem para todos.
Por fim, eu queria pergunta sobre algumas palavras muito em uso hoje em dia. Lutar. Enfrentar. Perdoar. Dialogar. São palavras aparentemente contraditórias entre si. O povo tem inimigos impiedosos. Vocês foram duramente atacadas. Ao mesmo tempo, há uma grande massa de pessoas que parece caminhar às cegas. O que fazer diante de quadro tão complexo?
Carmem: Olha, eu queria fazer um esclarecimento sobre a palavra “lutar”. Eu já ouvi que a gente estava incitando ao ódio, à briga. Quando a gente está falando em lutar, a gente está falando em ação. Porque o direito sem ação, não vale nada. É como dizem, a fé sem ação é morta. A gente não pode parar. Se a gente não gritar, teremos sempre nossos direitos roubados.
E como fazer o diálogo com essas pessoas que, me parece, não sabem bem para aonde ir?
Preta: Acho também que a gente tem de parar de falar só com nós mesmos. Temos de falar com as outras pessoas. Porque é muito fácil falar só entre nós. Por que de uma certa forma, é uma bolha, e a gente tem de começar a furar essa bolha para poder falar com essas outras pessoas que não conhecem os seus direitos, que estão sendo roubadas. Temos de começar a trazer as pessoas para o nosso lado. Que não é o nosso lado, o meu lado, é o lado de todo mundo. É o lado do povo. A arte faz muito isso. A comida faz muito isso. Então, quando for cear, chame outras pessoas para cear. Se for cantar, chame outras pessoas para cantar, para dançar junto. Aí começam a proliferar outras ideias. Por que essas pessoas podem estar tão iludidas, e pela falta de conhecimento, começam a pregar o ódio.
Querem acrescentar algo?
Preta: Eu queria falar para as pessoas conhecerem um pouco mais sobre o mundo carcerário, sobre as prisões políticas. Porque todos os presos deste país são presos políticos. Quando não se dá oportunidade para uma pessoa, quando se tira a oportunidade, não há o que fazer, a não ser cometer algum tipo de crime. Então, peço para olhar com outros olhos para essas pessoas que estão sendo encarceradas e escravizadas mais uma vez. O que sobra para o povo preto é morar na periferia, no barro, no esgoto. Não vamos julgar, vamos nos atentar mais. Onde estão jogando nossos corpos? Quando uma mulher ganha voz neste país recebe catorze tiros, como aconteceu com Marielle. Ou vai presa injustamente, como eu fui presa, ou exilada, como minha mãe foi exilada. Por quê? Enquanto isso, os poderosos, que estão aí roubando há anos, com provas nítidas, e ninguém faz nada.
E se esses poderosos que estão roubando há anos fossem presos, seriam presos políticos?
Preta: Não, porque sempre tiveram oportunidades. Preso político é quem não teve oportunidade na vida, é quem batalhou, que lutou,e que foi obrigado a ir para uma cadeia. As pessoas brancas da elite nunca serão presos políticos, serão ladrões, sim.
Carmem: Eu acho que a democracia nossa é uma democracia hipócrita. Os julgamentos são sempre para uma parte, e não para todos. Então, se o sistema é falho, e aquele que rouba por que tem um cargo superior e a justiça não vai alcancer ele…
A liberdade dele é política.
Carmem: Isso.