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ToggleGeorge Floyd, um homem negro, foi morto por um policial branco em Minnesota. O policial se ajoelhou sobre o pescoço do homem, e suas últimas palavras foram: “Eu não consigo respirar”.
Em reação, protestos disparam em diversas partes dos Estados Unidos, e três dias depois da violência racista, Minnesota amanheceu em chamas. Protestos por todas as ruas do centro da cidade, carros sendo incendiados, lojas, bancos e restaurantes tendo suas fachadas destruídas, supermercados saqueados.
Pressões populares para que as empresas, onde pessoas negras compram, se posicionem sobre o assassinato de George Floyd.
As imagens chegam e logo são compartilhadas como se pudesse ser uma cartilha de luta instigando uma reação das negras e negros brasileiros.
Foto: SMK2
Manifestantes atearam fogo na delegacia em Minneapolis, nos Estados Unidos, na terceira noite de protestos após a morte de George Floyd
Racismo e as reações a crimes no Brasil
No Brasil, recentemente o racismo matou João Pedro, assassinado dentro de casa por um policial; João Vitor, assassinado durante a entrega de cestas básicas, e a cada 23 minutos outros jovens negros que não chegaram aos portais da internet, mas foram igualmente mortos pelo racismo.
Quando as imagens dos protestos em Minnesota chegaram, compartilhamos orgulhosamente a cidade em chamas e diversos questionamentos começaram a surgir nas redes sociais: porque os negros brasileiros não reagem da mesma forma às violências raciais que sofrem no Brasil? Assim que o questionamento surge, logo aparece uma resposta automática concluindo que: não há reação porque negros brasileiros são pacíficos, medrosos e preferem apenas chorar nas redes sociais, e que por isso a violência racial é tão comum no Brasil.
Vítimas históricas de assassinatos, negros brasileiros em sua maioria se revoltam a cada notícia de violência racista.
A lei 10.639: verdades históricas e mudança na narrativa
Até o ano de 2003 quando foi promulgada a lei 10.639/2003 e o Brasil iniciou um grande debate sobre as populações negras brasileiras, a “história” ensinada nos livros escolares, narrada na grande mídia e reproduzida em nossos meios sociais, era uma “história” de versão única, fortalecendo uma narrativa em que os negros eram apontados como omissos e sofredores.
Enquanto o Brasil era apresentado como um país da maior democracia racial do mundo, um paradisíaco lugar onde os todos os povos se misturam e são felizes, pacíficos e cordiais uns com os outros. Neste contexto, até esse recente momento de ruptura, existia uma verdadeira pedagogia educacional e política estruturada para garantir uma falsa narrativa objetivando fortalecer a imagem do brasileiro cordial e pacífico. Porém, contrariando esta narrativa “oficial”, a realidade sempre foi outra, pois as negras e negros brasileiros, em nenhum momento deixaram de protestar das mais variadas maneiras.
Invisibilidade proposital
Exemplo desta realidade oculta, verifica-se na influência de diversos movimentos negros brasileiros nas lutas políticas contra o racismo nos Estados Unidos. A Frente Negra Brasileira, por exemplo, foi fonte de inspiração para o surgimento para o grupo dos Panteras Negras que teve papel fundamental para a libertação do povo negro estadunidense.
Já as mulheres negras da Irmandade da Boa Morte são conhecidas mundialmente como as fundadoras do primeiro movimento feminista no Brasil. Lembro-me de quando ouvi pela primeira vez falarem de Zacimba Gaba, numa reunião do Movimento negro, em São Paulo.
Zacimba, no Espírito Santo, para onde foi levada, foi exposta a uma série de castigos e violentada pelo dono da fazenda. A partir disso ela passou a planejar um envenenamento com o chamado “pó de amansar sinhô”, utilizado em pequenas doses, até matar quem a violentou. Zacimba fugiu e liderou um quilombo na região.
Quantas Zacimbas não conhecemos? Não estão nos jornais, mas nós conhecemos, hoje, muitos exemplos parecidos de mulheres negras que dominam a arte das ervas para a cura, mulheres que se livram das amarras da violência e se tornam líderes comunitárias, líderes de grupos de mulheres, advogadas, ativistas.
Por exemplo, a luta das Mães de Maio que há treze anos incansavelmente protestam denunciando a morte ou o desaparecimento de seus filhos pelo Estado brasileiro? Talvez a Marcha de Mulheres Contra o Racismo, à Violência e Pelo Bem Viver, que juntou um monte de mulher preta e seguiu até Brasília para denunciar o encarceramento e morte das pessoas negras e o abandono do Estado?
As movimentações nas ruas do Rio de Janeiro em busca de Amarildo, Cláudia e Marielle? Os meninos da Candelária, o Movimento Reaja ou será morto, reaja ou será morta! As denúncias emocionadas sobre a Chacina do Cabula, ocorrida em Salvador, em 2019?
Estas são as movimentações que foram documentadas, mas há infinitos protestos todos os dias em diversos cantos do Brasil, de brasileiros que não querem morrer porque são negros.
Cada país que pratica o racismo tem suas características. As características do racismo brasileiro são diferentes. Frente às manifestações, o presidente dos EUA afirmou no Twitter que aumentaria a violência contra os manifestantes, em seguida foi noticiado que a polícia prendeu um jornalista negro que noticiava os protestos decorrentes do assassinato pela polícia de George Floyd.
A violência racial continuará sem a cobertura das redes, isso porque como aqui, lá o racismo também é estrutural. A diferença é que aqui, o quadro reveste-se de complexidade ímpar e, há fatores por vezes contraditórios, porque nós herdamos e aprimoramos um racismo estrutural, um racismo institucional.
O genocídio racial brasileiro se desenvolve em várias frentes, sendo que uma das principais está no mito da democracia racial que, apesar de desmistificado pela ciência é comum na sociedade e interfere diretamente nas relações sociais. Assim, ao ser apontada uma atitude racista, a pessoa denunciada reage dizendo que o problema está na cabeça da vítima que é complexada, e não em sua visão racista.
O movimento recente do Brasil em reconhecer a existência do racismo tem sido acompanhado por algumas características históricas que o nosso racismo assumiu, um racismo que se constrói pela negação do próprio racismo.
A branquitude é resistente em se questionar e se colocar ativamente na luta antirracista. Insistem em dizer que a luta antirracista não é só do negro. De fato, nos EUA podemos ver pessoas brancas, latinas e asiáticas formando um cordão humano para proteger os negros que protestam, pois, sabem que os corpos negros são o alvo. No Brasil, as pessoas que cobram uma reação dos negros brasileiros a ataques racistas “por que não reagem?”, são as mesmas que quando reagimos, nos acusam de vitimistas.
Estão te matando preto, por que não reage? Ouvimos tanto isso que passamos a repetir: estão nos matando negros, por que não fazemos nada? Esse questionamento é mais uma mentira fantasiosa da branquitude que desconhece a trajetória das lutas negras.
A branquitude nos tira a paz, coloca em nós a responsabilidade de sozinhos reagir à violência, e depois utiliza nossa reação como justificativa para nos impor mais violência. Não se engane, qualquer onda negra causará um medo branco. Questionam a população negra brasileira sobre uma reação nas ruas, no meio de uma pandemia e dentro de um governo fascista, mas nós não podemos esquecer que não se sangra em água com tubarão.
O racismo não está aumentando, está sendo filmado e mostrado. Ainda sim, as lutas diária dos negros brasileiros são constantemente abafadas, deslegitimadas, apagadas e deturpadas.
Os movimentos de likes e compartilhamentos nas redes sociais revelam que o mito da democracia racial ainda funciona para sufocar o crescimento das manifestações populares negras no Brasil e nos impedir de caminhar rumo aos nossos próprios interesses, que em todo lugar do mundo é o desejo de respirar.