Conteúdo da página
ToggleHá cem anos, no dia 15 de janeiro, o governo peruano estabeleceu a jornada de 8 horas, depois de uma greve geral que havia começado dias antes.
Lima e Callao despertavam então ao capitalismo industrial.
As empresas têxteis, de eletricidade, fundição, comerciais e bancárias e as oficinas artesanais se reproduziam.
Nesse momento, Lima tinha uns 176.000 habitantes e compreendia o Cercado, os Barrios Altos e Bajo el Puente, um espaço no qual oito linhas de bondes elétricos asseguravam a circulação urbana, às quais se acrescentavam uma linha a Chorrillos e outra ao Callao.
Para fazer funcionar essas empresas, seus proprietários recrutavam trabalhadores, em sua maior parte mestiços, que viviam em pequenos quartos de velhas casas e vielas, muitos deles imigrantes provincianos. Os postos de escritório foram cobertos por filhos das famílias brancas de poucos recursos.
Era um capitalismo emergente que, como um de seus efeitos, turbava a quietude majestática, monástica e estéril de Lima, herdada do vice-reinado.
Os operários entravam nos seus centros de trabalho muito cedo e saiam umas doze horas depois; e parecia que não se importavam em ser tão explorados. Estavam contentes; tinham o que comer, eles e suas famílias, e seus filhos iam para as escolas primárias. Alguns liam os jornais, revistas e livros que eram distribuídos em Lima. Em suma, se assimilavam à vida urbana, tão diferente e paupérrima para eles, mas melhor e alentadora de esperanças do que a existência feudal, bucólica dos povoados que haviam deixado para trás.
Wikimedia Commons
a jornada de 8 horas e a semana de 48 persistem pela imposição de uma norma que, embora tenha sido uma inovação necessária há cem anos, hoje
O promotor intelectual da jornada de oito horas
Manuel González Prada havia retornado da Europa em maio de 1898. Seis anos antes, sua esposa e ele haviam partido para a França depois de intuir que seus discursos iconoclastas haviam chegado ao fundo e seriam lidos daí em diante, talvez, só como peças literárias. Voltava carregado com a matéria mais explosiva e perigosa para o establishment: a ideologia anarquista, que se enquadrava bem com seu rechaço às arbitrariedades e abusos do Estado oligárquico e mostrava a realidade da exploração dos trabalhadores.
Seus discursos se orientaram, portanto, a ilustrar aqueles que poderiam ser os atores de uma mudança fundamental no Peru.
Em 1906 publicou seu primeiro artigo sobre a jornada de 8 horas e continuou essa campanha com outros que deu a conhecer nos anos seguintes na celebração do 1º de maio. Vários dos trabalhadores mais instruídos de Lima se aproximaram, e ele os recebeu em sua casa, afável e familiarmente. Expôs a eles o que pensava e promoveu suas intervenções para levá-los ao convencimento de que não eram apenas escravos assalariados, mas, sobretudo, pessoas cujo intelecto devia ser cultivado para compreender que formavam uma classe social diferente, e aspirar a liberdade que os direitos sociais lhes poderiam dar. Dessas lições entre estantes cheias de livros saiu, como tarefa concreta para eles, a proposta da jornada de 8 horas e a convicção de que poderiam conquistá-la. O jornal La protesta, publicado pelo trabalhador anarquista Manuel Caracciolo Lévano dedicou-se a difundir a proposta.
Manuel González Prada não pode ver a culminação de seus ensinamentos. Faleceu repentinamente em 18 de julho de 1918.
A grande greve pela jornada de 8 horas
Em dezembro deste ano, o grupo de trabalhadores anarquistas, discípulos de Manuel González Prada, mobilizou seus companheiros de Lima e exigiu do governo o estabelecimento da jornada de 8 horas. Invocaram como causa imediata que a Lei 2851, de proteção às mulheres aos menores, que acabava de ser aprovada, tinha disposto para eles essa jornada, e reclamavam sua extensão para os demais trabalhadores. O governo de José Pardo rechaçou totalmente essa petição e reprimiu as manifestações operárias. Mas a agitação se estendeu.
O comando de luta dos trabalhadores, cujo núcleo estava constituído por Nicolás Gutarra, Adalberto Fonkén e Carlos Barba, chamou à greve geral, e essa ordem foi acatada pela maior parte dos trabalhadores. Na segunda-feira, 14 de janeiro, a paralisação em Lima, Callao e Vitarte era quase total, e a repressão às manifestações operárias pela Polícia e pelo Exército se tornou mais violenta, medida complementada com o fechamento do diário El Tiempo, em cujas páginas José Carlos Mariátegui informava dia a dia a evolução do conflito e estimulava os trabalhadores com seus artigos de opinião.
Mas o governo teve que ceder, e no dia seguinte expediu o decreto supremo, assinado pelo presidente José Pardo e seu ministro de Fomento, M. A. Vinelli, estabelecendo a jornada de oito horas em todas as atividades.
Este foi o único direito social de grande importância alcançado pelos trabalhadores do Peru graças à adoção por seus dirigentes mais destacados de uma ideologia que o postulava, à difusão por eles de sua necessidade e sua firme e perseverante mobilização. Foi também a primeira grande conquista social dos mestiços contra o poder branco.
Em direção à semana de 40 horas
Cem anos depois, o Peru é outro.
Lima tem mais de 10 milhões de habitantes e suas urbanizações imediatas avançam até Lurín, Chosica e Ancón. No grande mercado que é o Peru de agora, as empresas capitalistas se multiplicaram, e ano após ano chegam mais investimentos. Grandes cargueiros repletos de contêineres com mercadorias do mundo todo chegam ao Callao e a outros portos do país, e voltam lotados de produtos peruanos; em numerosas empresas a produção se potencializou com a introdução de máquinas e processos mais eficientes e com o concurso de trabalhadores mais bem formados; o transporte de pessoas e bens por terra e pelo ar continua se expandindo a passos agigantados; grande parte das operações bancárias foi delegada aos caixas eletrônicos; em mais residências são de uso comum objetos de procedência industrial; os veículos automotores se tornaram mais acessíveis a muitos e congestionam as cidades; e todo mundo se comunica e trabalha com computadores e celulares.
No entanto, a jornada de 8 horas e a semana de 48 persistem pela imposição de uma norma que, embora tenha sido uma inovação necessária há cem anos, hoje é arcaica.
Diferentemente dela, a maior parte das normas em outros campos foi renovada, e em certos casos, mudada totalmente.
Por que esta adoração a uma jornada conservada como uma norma sacra, quando já foi abandonada em muitos países do mundo?
Evidentemente, porque a maior parte dos trabalhadores peruanos desconhece as ideologias criadas para sua libertação, ou porque aquelas em que acreditavam vão perdendo o sentido, e ficam à espera de um milagre que nunca chegará. Esqueceram ou ignoram que constituem uma classe social que unida poderia ser a força de contenção mais potente do poder empresarial.
A espoliação do trabalho assalariado em uma jornada e uma semana agora excessivas, desgastantes e estressantes, é uma fonte suplementar de enriquecimento dos empresários e um subsídio aos consumidores dos bens e serviços que esse trabalho fornece. Os trabalhadores têm direito a um maior tempo livre.
Uma posição racional neste campo e neste momento é, por conseguinte, a adoção da semana de quarenta horas, um novo limite que a lei poderia estabelecer e se encontraria abaixo do máximo assinalado pela Constituição, enquanto não se dá a esta um novo texto neste aspecto.
Há cem anos, os advogados empresariais prognosticavam que muitas empresas quebrariam se fosse adotada a jornada de oito horas. Nada disso aconteceu. Demonstrando que seguiam gozando de boa saúde, as empresas continuaram tendo lucro, depois de se adaptarem à nova jornada de trabalho.
Se for estabelecida a semana de 40 horas aconteceria a mesma coisa. O tempo de trabalho global se redistribuiria entre os trabalhadores aptos a trabalhar, sem suscitar problemas que não pudessem ser solucionados pelos aparatos produtivo e estatal.
*Colaborador de Diálogos do Sul, desde Lima, Peru
Tradução: Beatriz Cannabrava