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Estes são alguns versos escritos pelo bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, que foram considerados “subversivos” pela ditadura militar brasileira, de acordo com relatório elaborado por militares em novembro de 1973.
A menção ao bispo, conhecido pela sua luta ao lado de camponeses que resistiam aos grandes latifúndios patrocinados pela ditadura, é uma das mais de mil citações a Casaldáliga em relatórios do Serviço Nacional de Informações (SNI), abertos para consulta em 2005, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Os arquivos colhidos pela reportagem do De Olho Nos Ruralistas mostram uma verdadeira obsessão dos militares pelo bispo, falecido no dia 08 em decorrência de problemas respiratórios causados pelo Mal de Parkinson.
Outros documentos mostram que eles interceptaram cartas enviadas para Casaldáliga do Chile, poucos meses antes do golpe que derrubou Salvador Allende e levou Augusto Pinochet ao poder.
E mais: a embaixada brasileira tentou derrubar a indicação do religioso para um prêmio literário bancado pelo trono espanhol, sob a alegação de que ele não promovia a “concórdia”. Durante a ditadura? Não. Em 1989, em pleno governo José Sarney, um ano após a Constituição de 1988.
O poema que incomodou a ditadura foi publicado apenas na Espanha, terra natal de Casaldáliga. A obra faz parte do livro “Clamor Elemental”, publicado pelas Ediciones Sigueme em 1971. No prefácio do livro, Casaldáliga contava aos leitores espanhóis que vivia no norte de Mato Grosso, em uma região marcada pela exploração “do homem pelo homem”.
No relatório de informações, os militares transcreveram uma versão traduzida do poema escrito originalmente em espanhol. O texto cita nominalmente Ernesto Che Guevara, líder da Revolução Cubana, razão pela qual os militares se incomodaram. O poema foi usado pelo SNI como uma das “provas” a serem anexadas no processo de expulsão de Pedro Casaldáliga, nunca levado a cabo.
“Dispõe este centro apenas de um único exemplar do livro Clamor Elemental”, diz a conclusão do relatório. “Caso o ministério da Justiça ou o DPF necessite desse exemplar para fazer prova no processo de expulsão definitiva deste indesejável espanhol comunista poderemos cedê-lo”, conclui o relatório do dia 23 de novembro de 1973.
Agência Brasil
O bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga
Militares trabalharam para minar apoio dentro da Igreja
Os militares utilizaram versos de Casaldáliga para que ele perdesse apoio dentro da Igreja Católica. Neste mesmo relatório, há um trecho em que os agentes do SNI solicitam a elaboração de cópias do poema e que elas sejam espalhadas “clandestinamente” entre cardeais e bispos. Em outro trecho, mais adiante, solicita-se que o poema seja enviado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) “mantendo-se o sigilo quanto ao remetente”.
O poema e o livro de Casaldáliga continuaram como assunto para o SNI em outro relatório, de dezembro de 1973. Neste documento, os militares se incomodam com a repercussão da publicação do livro e citam artigo de uma revista panamenha que fez referência a obra, na qual Casaldáliga diz, em um dos versos, que morrerá “de pé, como as árvores”.
Os agentes do SNI afirmam, neste outro documento, que a obra comprova o espírito subversivo e contestatório porque revela para o exterior “problemas particulares e de ordem interna de regiões do nosso país em fase de desenvolvimento”.
Os problemas “particulares” citados no relatório são casos de corrupção, assassinato, escravidão e outros crimes, e mazelas contra os quais o padre, adepto da Teologia da Libertação, lutou desde que chegou ao Brasil, em 1969.
Empreendimentos patrocinados pela ditadura, como a Fazenda Codeara e a Fazenda Suiá-Missu, levaram desordem para a região, já habitada por posseiros. A fome e a escravidão de trabalhadores pobres tornou-se uma constante, problemas que foram reconhecidos pela própria ditadura. (A Suiá-Missu foi objeto de desintrusão durante o governo Dilma Rousseff, já que incidia sobre à Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.)
“Estas palavras, como guerrilheiro e revolução, eram palavras que faziam a qualquer um ser perseguido”, comenta Fernanda Queiroz de Menezes, mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e autora da dissertação “Pedro Casaldáliga e sua prática social no período da ditadura civil-militar: 1968 a 1980”.
Segundo a pesquisadora, o regime militar era um tanto quanto “psicótico” em relação a alguns verbetes. Somava-se a isso o fato de que Dom Pedro não deixava de usar a poesia como forma de mostrar seu engajamento político, uma ferramenta para “enriquecer a razão intelectual com a razão sensível”.
“Sempre achei que Dom Pedro possuía uma coerência intelectual muito grande”, comenta Fernanda. “Ele sempre marcou posição definida sobre estas questões, sobre as questões da terra, nunca teve dúvida sobre o apoio aos posseiros e aos indígenas e a defesa da natureza”.
Governo Sarney tentou derrubar indicação a prêmio literário
Um relatório mais recente do SNI também chama atenção. Em 1989, quando a ditadura já havia acabado, Casaldáliga foi indicado para o prêmio espanhol Príncipe das Astúrias, instituído por um herdeiro do trono espanhol. Na ocasião, a embaixada brasileira em Madri foi informada da indicação. Em trecho do documento a embaixada brasileira reclama aos espanhóis de forma “oficiosa”, que sentiu estranheza por conta do perfil do candidato. Na avaliação do governo, Casaldáliga não seria merecedor do prêmio, por não promover a “concórdia”.
No mesmo documento, há menção ao livro “Em Rebelde Fidelidade”, publicado em 1986 por Dom Pedro na Espanha. Os investigadores enviam uma cópia do livro, que também fala sobre problemas do Brasil. Os arquivos mostram que, mesmo depois da ditadura, a preocupação em relação a Casaldáliga continuava porque o bispo ainda denunciava a desigualdade no país.
Durante a ditadura, a preocupação era mais ostensiva. Em um relatório de julho de 1973 os militares chegaram a interceptar uma carta entre o bispo de Propriá, em Sergipe, e o bispo de São Félix, em Mato Grosso. Na carta, o clérigo do nordeste elogia o colega na atuação em defesa do padre Francisco Jentel, preso e condenado pelos militares por liderar uma revolta de posseiros contra a Fazenda Codeara.
O frei agostiniano Gabriel López Blanco, que chegou na prelazia em 1980 e conviveu por décadas com Pedro Casaldáliga, conta que os militares representavam uma ameaça constante, e que eram capazes de descobrir cada passo que o bispo dava, em uma situação de vigilância que sempre o deixou surpreso.
“Era uma ameaça constante, lá de cima do governo e lá de baixo também, dos grandes fazendeiros”, conta. “Dizíamos, em tom de brincadeira, que todos nós da prelazia deveríamos fazer fotos bonitas para quando virássemos mártires, era uma angústia que se vivia o tempo todo na equipe pastoral”.
Entre outros motivos, isso aconteceu porque a ditadura associava o trabalho realizado na prelazia com a guerrilha do Araguaia, segundo Paulo Gabriel. Na época, os militares suspeitavam que muitos guerrilheiros fugiam para o sul do Pará e norte de Mato Grosso, ligação nunca comprovada.
“Todo trabalho que a prelazia começou a fazer em defesa dos peões e na luta pela terra despertou na ditadura e, mesmo dentro da igreja, muitas desconfianças”, conta. “E é impressionante verificarmos, agora que temos acesso a alguns documentos do SNI, o quanto se sabia sobre nós, o quanto éramos vigiados”.
Outro relatório mostra que os militares interceptaram carta destinada a Dom Pedro Casaldáliga, desta vez sem remetente, mas com origem no Chile, ainda governado por Salvador Allende. O relatório do SNI de setembro de 1973 — a ditadura comandada por Augusto Pinochet começou no dia 11 daquele mês — identifica cartas enviadas ao bispo em setembro de 1972 e fevereiro de 1973.
O autor da carta comunica-se de forma generalista, sem se identificar, já ciente da perseguição do regime. O remetente utiliza-se do pseudônimo “Bolinha na neve”, dirigindo-se ao destinatário com referência a uma personagem das histórias em quadrinhos muito popular na época: “Querida Luluzinha”.
Confira abaixo:
Lázaro Thor Borges é jornalista
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