C. S. Lewis disse que as pessoas se tornam amigas porque “vêem a mesma verdade”. Em um episódio recente da Squawk Box, da CNBC, Tom Friedman e Steve Bannon pareciam francos ao defender a recente decisão do presidente Trump de aumentar em 200 bilhões de dólares as as tarifas das importações da China. Talvez este seja o começo de uma linda amizade entre eles.
Friedman pode até mesmo ser convidado para a nova academia da direita instalada por Bannon em um antigo mosteiro italiano. Os dois podiam usar roupas combinando e ensinar num seminário sobre Como Trump Salvou a Civilização Ocidental. Os dois parecem pensar que o destino do mundo livre, ou pelo menos do “capitalismo democrático de livre mercado”, está em jogo na guerra comercial EUA-China.
A história de Friedman/Bannon é mais ou menos assim: durante décadas a China violou as regras do comércio internacional, praticou subsídios ilegais, roubou propriedade intelectual, fez espionagem industrial, com transferências forçadas de tecnologia, praticou, trabalho escravo, etc. Mas por um longo tempo, ninguém realmente se importou porque a China lidava principalmente com brinquedos e camisetas.
Hoje, no entanto, Friedman e Bannon dizem que o campo do jogo mudou. As empresas chinesas competem frente a frente com as dos EUA em setores avançados e sua visão para o futuro – China 2025 – é na verdade um plano para dominar o mundo.
Para eles, o plano comercial de Bob Lighthizer vai além de equilibrar soja e televisões – trata-se de impedir que a China domine o campo da inteligência artificial, supercomputação e aeroespacial, e ganhe o controle militar do Mar do Sul da China. Trump, nos é dito, é o único com coragem para tomar uma posição contra a ascensão da China, o único político disposto a “peitar o jogo”.
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As empresas chinesas competem frente a frente com as dos EUA em setores avançados e sua visão para o futuro
O diagnóstico de Friedman/Bannon inclui uma solução: nossa relação comercial “desalinhada” com a China pode ser consertada forçando-a a cumprir as regras já acordadas há vinte anos, quando se juntou à OMC. Os EUA podem usar a alavancagem do acesso contínuo aos mercados e capitais estadunidenses como incentivo e forçar o fim da espionagem industrial, transferência forçada de tecnologia e subsídios ilegais.
No momento, “o modelo de negócios da China é uma ameaça existencial para as democracias industriais”, diz Bannon. Mas forçar a China a cumprir as regras será um “ganha-ganha”, especialmente para os trabalhadores dos EUA: com Trump eles “finalmente tem uma voz na sala que olha por eles e para seus filhos e netos”. Agricultores e trabalhadores industriais podem ter que suportar uma “dor de curto prazo”, mas entendem o que está em jogo.
Nós já ouvimos essa história antes. No final dos anos 1980 e início dos 1990, o Japão era a ameaça global ao capitalismo.
Romances como “Sol Nascente”, de Michael Crichton, e “Dívida de Honra”, de Tom Clancy, capturaram o sentimento de raiva nos EUA pelo “comércio injusto” e um profundo temor de que as empresas japonesas representassem uma ameaça “existencial” às manufaturas e ao domínio tecnológico dos EUA, particularmente no setor de alta tecnologia. Empresas dos EUA reclamaram que o capitalismo global estava contra elas, que sem um rebalanceamento entrariam em colapso.
Ao mesmo tempo, foi prometido aos trabalhadores, especialmente aos sindicalizados, que se ficassem do lado de seus patrões (e por extensão, de seu país) e estivessem dispostos a suportar uma dor de curto prazo – colocando os interesses nacionais acima dos interesses pessoais – todos se beneficiariam a longo prazo. Enfrentando ameaças constantes de fechamento de fábricas e declínio do poder de barganha, muitos trabalhadores optaram por se alinhar a seus patrões. Um adesivo popular dos anos 80 dizia: “Toyota, Datsun, Honda – Pearl Harbor!”
Sem dúvida, muitas empresas, especialmente em setores como o automobilístico, lutaram legitimamente durante esse período. Mas em retrospectiva, é claro que o “perigo amarelo” foi usado como uma cortina de fumaça para facilitar uma reorganização muito mais ampla em favor do capital. A retórica nacionalista e o pânico geopolítico permitiram que as empresas e as elites reescrevessem as regras do comércio global em benefício próprio, facilitando o caminho para a terceirização e o offshoring, a reestruturação, a financeirização e a redução dos custos trabalhistas.
A nova arquitetura do comércio global, cristalizada na fundação da OMC em 1995, foi extremamente lucrativa para as empresas e as elites dos EUA. E os trabalhadores que colocaram “o interesse nacional” acima dos seus tiveram cortes salariais e de benefícios, desemprego e deterioração permanente de seu padrão de vida.
Assim como o problema para os trabalhadores nos anos 80 não era o Japão, o problema agora não é o Partido Comunista Chinês. Desigualdade vertiginosa, ausência de caminhos para uma vida decente para pessoas comuns e a alienação e desconfiança generalizadas não podem ser atribuídas à “guerra econômica à democracia industrial” feita pela China. A guerra contra as famílias trabalhadoras está sendo travada pelas empresas e as elites dos EUA.
Com o projeto da Terceira Via deslegitimado e as eleições que ocorrem no mundo, jogam a carta da China, contando aos eleitores fábulas sobre como forçar a China a “seguir as regras” do capitalismo global; esta é a chave para a criação decente de meios de subsistência para os estadunidenses comuns. Chuck Schumer twittou: “Aguente firme a China, Presidente @realDonaldTrump. Não recue. A força é a única maneira de vencer a China. ”
Apesar da recém-descoberta camaradagem entre Friedman e Bannon, Trump e Schumer, os apelos de elite para fazer a China seguir as regras não são para tornar o capitalismo global justo ou para criar bons empregos nos Estados Unidos. Trata-se de ressuscitar a hegemonia política e militar dos EUA e ajudar suas empresas a capturar novos setores e mercados.
Uma alternativa é a chamada Green New Deal (New Deal Verde): uma política industrial verde – que desfaça o complexo industrial militar – atenderia às necessidades dos trabalhadores, tanto dentro quanto fora dos EUA, desenvolvendo modelos de produção e consumo ecologicamente sustentáveis.
A China não é o problema. O capitalismo é.
*Nicole M. Aschoff faz parte do conselho editorial de Jacobin e é autora de “The New Prophets of Capital” (“Os novos profetas do capital”).
Fonte: Jacobin; tradução: José Carlos Ruy
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