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Em bicentenário, autoritarismo extremo de Bukele traz à memória a ditadura em El Salvador

Desde que Nayib Bukele entrou na disputa eleitoral pela Presidência, suas intenções ficaram claras: sua forma de fazer política começava e culminava em sua figura
Nery Chaves García
Celag
San José

Tradução:

Em meio à comemoração do Bicentenário da Independência da América Central, uma multidão de pessoas denunciou e chamou de ditador o presidente do menor país  da América Central: Nayib Bukele, que governa a partir da centralização do poder em suas mãos. Com Bukele na cabeça do Executivo há mais razões para preocupação do que para celebração: hoje, Bukele controla a totalidade dos poderes do Estado, viabilizou sua reeleição e conta com uma máquina publicitária imponente que o situa como um dos presidentes mais populares da América Latina, com 84,7 % de aprovação.

Assim, o Bicentenário encontra um país mergulhado na polarização social, sem mudanças profundas em relação à violência que caracteriza a cultura política salvadorenha e sem alterações na desigualdade, na pobreza e na militarização da vida cotidiana.

Da ânsia de poder à concentração total: a reeleição presidencial

Os juízes impostos não são juízes, e sim operadores políticos da Casa Presidencial

Manifestantes na marcha de 15 de setembro de 2021

Desde que Nayib Bukele entrou na disputa eleitoral pela Presidência, suas intenções ficaram claras: sua forma de fazer política começava e culminava em sua figura. Ele e Deus eram – e são – os que levariam El Salvador pelo caminho do progresso e, para isso, não necessitaria da ajuda de ninguém; muito menos dos “mesmos de sempre” – a saber, ARENA (i) e o FMLN (ii).

Já à frente do Executivo, o autoritarismo de Bukele alcançaria um nível mais profundo e extremado; o que traz à memória o El Salvador ditatorial. Em 9 de fevereiro de 2020, Nayib Bukele militarizou a Assembleia Legislativa como medida de pressão para que o Congresso opositor aprovasse um empréstimo de $109 milhões, junto ao Banco Centro-americano de Integração Econômica (BCIE), que financiaria a Fase III do Plano Controle Territorial –projeto emblema da gestão. O 9F, como é conhecida popularmente a intervenção militar de Bukele no Poder Legislativo, foi amplamente repudiado por organizações políticas, movimentos sociais, assim como por missões diplomáticas de distintos Estados e Organizações Internacionais.

Meses depois da intervenção, o Tribunal Constitucional declararia as ações de Bukele inconstitucionais e além disso, emitiria uma série de apelos a Mauricio Arriaza Chicas – chefe da Polícia Nacional Civil (PNC) – e ao Exército lembrando seus deveres definidos pela Constituição e não pelo mandatário de turno. O Tribunal também alertou sobre o perigo do hiperpresidencialismo e o regresso do autoritarismo a El Salvador. Isso e uma série de sentenças contra as ações de Bukele no marco da emergência sanitária provocada pelo surto pandêmico da COVID-19, fez com que o presidente tuiteiro passasse a considerar o Tribunal Constitucional como um de seus inimigos mais importantes.

Destituição da Suprema Corte e plenos poderes a Nayib Bukele: o que está por trás do golpe em El Salvador?

Estando assim as coisas, para Nayib Bukele tornou-se fundamental cooptar os poderes que faziam oposição a suas medidas autoritárias pois o braço repressor estatal já estava do seu lado. Depois de uma grande e custosa campanha eleitoral focada em sua figura, Novas Ideias – o Partido fundado por Bukele – arrasou nas eleições legislativas e de prefeituras. O rolo compressor foi impressionante, Novas Ideias conseguiu amealhar 1.271.372 votos. Com isso, o Congresso e boa parte das prefeituras tingiram-se de azul, cor que caracteriza Nayib Bukele; a tal ponto, que a bancada de Novas Ideias não necessitaria negociar com outras bancadas, a menos que necessite da maioria qualificada para modificações sensíveis da legislação.

Em 1º de maio, a nova Assembleia Legislativa assumiu suas funções e suas primeiras ações foram contundentes: no El Salvador dirigido por Nayib Bukele não há espaço para a dissidência. Em horas, a bancada azul, passando por cima de todas as normas de procedimento internas assim como da Constituição, destituiu os cinco magistrados do Tribunal Constitucional e o Procurador Geral. Posteriormente, violando as normas novamente, colocou pessoas da confiança de Bukele e do Partido Novas Ideias. Assim, o 1ª de maio seria conhecido como o segundo golpe de Estado levado a cabo por Bukele; o primeiro deles foi o 9F.

A aprovação de leis de forma rápida e sem discussão alguma tem sido a norma da Assembleia Legislativa atual. Entre as reformas mais controvertidas estão: a entrada em vigor do bitcoin como moeda de circulação nacional e uma reforma do Poder Judiciário que aposenta de forma automática um terço dos juízes e procuradores com mais de 60 anos e/ou que tenham mais de 30 anos de serviço. Ambas as reformas foram aplaudidas por Bukele, para quem constituem um caminho para a melhoria econômica e o combate à corrupção existente no Poder Judiciário.

Além de analistas, ONU, União Europeia e EUA também expressam preocupação com destituição da Suprema Corte de El Salvador

Como se fosse pouco, os magistrados eleitos pela bancada azul em 1º de maio viabilizaram a reeleição imediata para Bukele. A única coisa que ele tem que fazer é renunciar a seu cargo cinco meses antes das eleições e candidatar-se novamente. Este fato foi amplamente denunciado por distintos setores. Bukele responde às críticas com brincadeiras e cinismo: em sua conta no Twitter oficial chama a si mesmo do “ Ditador mais cool do mundo inteiro”.

Os alertas sobre o hiperpresidencialismo oriundos do Tribunal Constitucional dissolvido tornaram-se realidade. Alertas que se aprofundam cada vez mais: em 15 de setembro último, o vice-presidente Félix Ulloa entregou ao presidente uma série de propostas de reformas à Constituição. Em teoria, estas reformas foram propostas por um comitê eleito a dedo pelo Executivo e que conta, supostamente, com 4.000 contribuições dos cidadãos que as encaminharam por um canal digital. O detalhe sobre as reformas não está claro, e o pouco que se sabe é diferente. Por exemplo, uma das reformas proporia a liberação do aborto terapêutico e o matrimônio igualitário, reformas que já foram rejeitadas por Nayib Bukele.

O especialista constitucionalista José Marinero, e presidente da Fundação Democracia, Transparência e Justiça (DTJ), identifica uma série de reformas que poderiam ser interessantes na medida em que ampliam uma série de direitos, mas, ao não especificar a operatividade delas e a julgar pelo clima autoritário existente em El Salvador, uma reforma constitucional alerta mais do que alenta. Segundo Marinero, a reforma constitucional será a bandeira de Bukele para as próximas eleições presidenciais e legislativas. Hoje o Executivo está fazendo uma série de consultas sobre as reformas constitucionais, em meio a uma grande falta de transparência sobre seu verdadeiro alcance.

Desde que Nayib Bukele entrou na disputa eleitoral pela Presidência, suas intenções ficaram claras: sua forma de fazer política começava e culminava em sua figura

Celag
A concentração de poderes e o autoritarismo continuam sendo as marcas do governo do partido Novas Ideias.

Descontentamento crescente e guerra jurídica

A comemoração do Bicentenário da Independência foi marcada por uma multitudinária marcha contra Nayib Bukele. A manifestação de 15 de setembro passado foi a maior até este momento e aglutinou distintos setores: feministas, estudantes, jovens, ex combatentes da Guerra Civil, funcionários(as) do Poder Judiciário e simpatizantes do FMLN. A esta manifestação Bukele respondeu com zombarias e criminalização em uma cadeia nacional.

Nessa mesma linha, depois do reordenamento forçado do Poder Judiciário, o Executivo salvadorenho conseguiu um novo capítulo de lawfare na região: há ordem de captura para o ex presidente Salvador Sanchéz Cerén e outros oito funcionários da última gestão do FMLN (2014-2019) também são perseguidos. Todos acusados por corrupção, acompanhados de uma forte campanha de comunicação por meio dos meios do oficialismo e das redes sociais do presidente. Chama a atenção o fato do procurador geral, que encabeça a perseguição contra o FMLN, seja Roberto Delgado, que foi o advogado da petroleira venezuelana PDVSA e que esteve ligado ao desfalque de milhões de dólares realizado com a oposição antichavista. A perseguição contra o FMLN adquiriu aspectos geopolíticos contra a Venezuela, questão que já estava presente desde que se deu a conhecer a existência de um supra gabinete formado por pessoas da oposição venezuelana. O supra gabinete, na prática, funciona como um segundo anel de poder em torno de Bukele – o primeiro são os irmãos do presidente –, que dirigiram a crise sanitária e mais recentemente a estratégia econômica por trás do bitcoin.

Tensões diplomáticas com os EUA

As tensões diplomáticas têm estado na ordem do dia na administração Bukele. A maior provém dos Estados Unidos (EUA) desde que Biden ocupou a Casa Branca. Em várias ocasiões, o Governo estadunidense repudiou diferentes ações de Bukele e de Novas Ideias. Repúdio que aumentou o tom depois da destituição dos magistrados, do procurador geral e da posterior aprovação da reeleição imediata pelo Poder Judiciário azul.

Jean Manes, encarregada de negócios dos EUA em El Salvador, denunciou o declive da democracia naquele país, comparando a situação com Venezuela, Cuba e Nicarágua. Posteriormente, em 20 de setembro, o Departamento de Estado anunciou que os cinco magistrados do Tribunal Constitucional de Novas Ideias estão incluídos na Lista Engel. Isto quer dizer que o Governo estadunidense reconhece estes magistrados como corruptos e que, portanto, não poderão contar com visas e tampouco poderão entrar em território estadunidense. A Lista Engel já incluía altos funcionários do Governo de Bukele –como Carolina Recinos, chefe de gabinete do presidente. Por sua vez, Bukele tuitou: “Não somos o “quintal de ninguém”; “é ingerência pura e política da mais baixa”.

Centenas protestam em El Salvador contra golpe; “Intenção de controle dos poderes”, diz Frente Farabundo Martí

Anteriormente, em 4 de maio, a USAID anunciou a retirada de ajuda para a Procuradoria, a Polícia e a Corte Suprema de El Salvador. Três dias depois da destituição dos magistrados ficaria evidente a relevância política – e geopolítica – da USAID em El Salvador e região.

Tudo parece indicar que El Salvador volta a ser um clivagem geopolítico, desta vez com um Executivo incômodo para a Casa Branca e que além disso amedronta sua população. As preocupações e as tensões estão na ordem do dia em El Salvador; o desenlace positivo dependerá da oposição que possam realizar as organizações policiais de base assim como os partidos políticos. Resistência que não será simples ante um presidente que conseguiu consolidar-se como um dos mais populares da região – com 84 % segundo LPG Dados – por meio de uma retórica cínica que pretende ser simpática e encobrir o autoritarismo vigente.


i Partido Aliança Republicana Nacionalista (ARENA).

ii Partido Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN).

* Tradução de Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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