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Enzo Nico: grande companheiro de lutas, do combate à ditadura ao Brasil “democrático”

Combatente contra opressões, lutador incansável pela democracia, pela liberdade — bem mais precioso do ser humano — Enzo morreu aos 72 anos
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Este final de semana foi incrível na sucessão de eventos que merecem profunda reflexão e, já iniciada outra semana, seguem novos eventos a abalar esse velho coração.

Dia 21: a morte de um amigo, um combatente da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Enzo Nico, a quem devo homenagear; na véspera, a morte de Elza Soares — a voz do milênio, a mais incrível das mulheres, e tinha que ser brasileira. Recomendo a todos a leitura do depoimento de Elza sobre como ela e seu companheiro Mané Garrincha, sobreviveram à ditadura.

Assista na TV Diálogos do Sul

Dia 22: centenário se vivo fosse de Leonel de Moura Brizola, o grande estadista que o Brasil não soube aproveitar; no dia anterior, em convenção, o PDT lançou Ciro Gomes candidato à presidência. Mas… não é esse o PDT de Brizola. Brizola foi, segundo João Pedro Stedile, o único estadista realmente de esquerda da história do Brasil, nos conhecemos pessoalmente no exílio, mereci sua confiança e carinho.

Dia 23: como se ainda pudesse haver maior insanidade dos militares que ocupam o Planalto, o ministério da Saúde emite portaria promovendo o kit cloroquina e desvalorizando a vacina contra Covid ao que se junta campanha contra vacinação infantil. Gente, isso é assassinato doloso. Cadê a Justiça?

Dia 24: Não bastasse, na segunda (24), morreu, em Cochabamba, na Bolívia, o poeta, jornalista, radialista e diplomata Jorge Mancilla Torres, que como poeta, premiado, assinava Coco Manto. Hermano del alma. Amigo de toda uma vida. Que tristeza! Estávamos juntos quando eclodiu a revolução comandada pelo general Juan José Torrez, estivemos juntos no exílio do Peru, estive com ele no México, mas não consegui visitá-lo na Bolívia.

Dia 25: morreu, nos Estados Unidos, o agente estadunidense Olavo de Carvalho, aquele que dizia que Só Trump pode salvar o mundo. Guru de imbecis e oportunistas, negava que o vírus causasse algum dano maior que uma gripezinha, morreu de Covid. Sua morte, há sim que lamentar. Morreu sem ter sido indiciado, julgado e condenado no Brasil. A história é implacável, as verdades afloram e personagens como ele, Sérgio Moro e outros facínoras que tantos males causaram e estão causando à Nação, irão para o lixo.

Stedile: Brizola fez o único governo realmente de esquerda em toda a história do Brasil

Será que um dia a terra voltará a ser redonda e haverá justiça neste país para condenar e por na cadeia esses criminosos? São tantos os crimes: genocídio e traição à pátria já são mais do que suficiente para que apodreçam em ergástulo.

Gente… como se não bastasse, 25 de janeiro, quando são comemorados os 568 anos da fundação da cidade de São Paulo. Dia nacional de luto para os povos originários pelo grande genocídio iniciado com a ocupação do território. Genocídio que atravessou todos os séculos, particularmente o século 20 com a expansão da fronteira agrícola.

Combatente contra opressões, lutador incansável pela democracia, pela liberdade — bem mais precioso do ser humano — Enzo morreu aos 72 anos

ALESP
O combatente da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Enzo Nico

Enzo Nico, uma breve biografia do meu amigo

Enzo Luís Nico Júnior nasceu em 30 de junho de 1949; em 1969 entrou no curso de Geologia da USP. Lá, conheceu a estudante de Biologia Cassiana Passos Claro, com quem participou do movimento estudantil, casou e teve duas filhas, Yara Claro Nico e Mayra Claro Nico. Em segunda núpcias com Claudia Helena Leite, nasceram Enzo Luiz Nico Neto e Luiza Helena Nico Leite.

Seus filhos e amigos organizaram uma singela homenagem durante o velório no Cemitério do Araçá, em São Paulo. O ex-deputado pelo PT Adriano Diogo, que também militou na ALN, está fazendo um filme e me mandou um trecho em que cantam a música de Carlos Puebla em homenagem a Che Guevara. Era o que Enzo queria. Amava Cuba como uma segunda pátria. Esteve lá exilado, fugindo das ditaduras. Uma de suas filhas nasceu lá.

Combatente contra ditaduras, lutador incansável pela democracia, pela liberdade, bem mais precioso do ser humano. No movimento estudantil, iniciou o bom combate pelas ideias que conduzem a um mundo melhor, ao socialismo.

Orgulhava-se de pertencer à geração 68, uma geração que explodiu o mundo com sua rebeldia.

Sobreviveu às perseguições dos militares no Brasil e no Chile, sobreviveu a uma intervenção que lhe colocou uma válvula nova no coração e estava pronto para iniciar novas batalhas, pois a luta contra o fascismo, contra a servidão é contínua. Contudo, na sexta-feira, 21 de janeiro, nos deixou vítima de uma fratura no crânio frontal provocada por uma queda.

Maçom da mais alta hierarquia, estava também revolucionando a maçonaria, entidade que no Brasil tem sido, em grande parte, apropriada por agentes da repressão policial e por altos oficiais no comando das forças armadas e das forças militares. Os generais que hoje usurpam o poder são também maçons. Usam tanto a irmandade como o poder do Estado em benefício próprio. Coisa mais feia.

Por que bolsonarismo é incompatível com a ética maçônica?

Maçonaria tem história de muitas rebeldias e lutas pela independência e fraternidade entre os povos. Enzo trabalhava para estreitar os vínculos entre a maçonaria democrática e progressista brasileira com a maçonaria cubana. Queremos ver de novo os maçons na construção da dignidade humana, contra o arbítrio, contra a tortura, objetivos pelos quais foi criada. 

Montoneros e a tarefa quase impossível

Me ocorre uma história que demonstra a importância e valor de Enzo Nico.

No início dos anos 1980, em São Paulo, estávamos empenhados com a solidariedade com os povos uruguaio, argentino e nicaraguense. Foram realizadas muitas atividades envolvendo a esquerda que começava a submergir, a reorganizar-se. Atividades de todo tipo eram realizadas em apoio aos comunistas e os tupamaros uruguaios, aos peronistas revolucionários argentinos e aos sandinistas nicaraguenses. Houve até brigadas de juventude que se deslocaram para a Nicarágua para fazer trabalho voluntário.

Com os montoneros eu tinha um bom relacionamento, iniciado nos anos 1970, e que se mantinha em vários países pelos quais fomos forçados a estar. Encontrei-os na Nicarágua logo após o triunfo da Revolução Sandinista. Tendo derrotado a ditadura a serviços dos Estados Unidos, iniciava-se o processo de libertação nacional, construção da Pátria Socialista e do Estado independente e soberano.

Estavam lá Mário Firmenich, secretário-geral dos Montoneros, Roberto Perdia e Fernando Vaca Narvaja, o próprio alto comando da organização. Eram procurados pelas polícias do mundo inteiro. Ficaram famosos com o sequestro dos irmãos João e Jorge Born, que rendeu algo como 60 milhões de dólares. Eles estavam clandestinos e exilados desde 1976.

Lembro que tive um desentendimento com alguns dos membros da direção dos montoneros. Sem ter participado dos combates, estavam dando muitos palpites considerados inoportunos. Eles permaneceram um pouco na Nicarágua e Firmenich, Perdia e Vaca Narvaja vieram para o Brasil.

Por Marighella, e pelo povo brasileiro temos que seguir travando a luta pela soberania nacional

Firmenich estava aqui clandestino e com a mulher grávida que queria dar à luz na Argentina. Era o casal mais procurado do mundo naquele momento. Eu disse: 

“Ela eu coloco no território argentino, mas você fica aqui. A segurança dela já é um baita problema, com os dois, nem pensar.”

Feito isso, me reuni com um companheiro muito querido, da mesma nova geração da ALN e disse que eu precisava de um quadro qualificado para a tarefa revolucionária de levar para o outro lado da fronteira uma companheira, em segurança. Queria saber se não podia ser ele mesmo a cumprir a tarefa. Não podia. Quem poderia então? 

Foi então que conheci Enzo Nico, indicado para essa tarefa. Recebeu as instruções, dinheiro e, claro, cumpriu com louvor a tarefa. Maria Martinez Aguero deu à luz sua filha na Argentina, como queria. Essa mulher sofreu muito. Logo foi presa, encarcerada e torturada.

Em 1984, Firmenich foi preso no Brasil e deportado. Cumpriu uma longa pena nos anos 1990. O casal e os filhos vive hoje em Barcelona.

Penso que essa anedota ilustra a grandeza desse companheiro. Durante todo o tempo apoiou e contribuiu com a criação e manutenção da revista Diálogos do Sul.

Enzo Nico, presente! Agora e sempre!

Paulo Cannabrava Filho é jornalista e editor da Diálogos do Sul


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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