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Foto: Ricardo Stuckert / PR

Esperança de libertação à América Latina, Celac desafia OEA e impulsiona mundo multipolar

Reunião realizada nesta quarta-feira (9), em Honduras, tem potencial para ir além da diplomacia, fortalecendo uma integração civilizatória e de resistência ao imperialismo
Verbena Córdula
Diálogos do Sul Global
Ilhéus

Tradução:

Há quase dois séculos, Simón Bolívar nos lançou um desafio que ainda ressoa como uma ferida aberta: “Unir-nos é o único meio de sermos fortes e, consequentemente, livres.” Bolívar, o Libertador, não sonhava apenas com a independência formal das nações latino-americanas — vislumbrava um corpo político comum, uma América unida não apenas pela geografia, mas por um pacto histórico de soberania e dignidade. Seu Congresso Anfictiônico ocorrido no Panamá, em 1826, já antecipava, com uma lucidez impressionante, o que hoje tentamos construir com instituições como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Nascida em 2010 como uma tentativa de resgatar esse sonho bolivariano — não como saudosismo, mas estratégia de sobrevivência frente à voracidade de um sistema internacional que insiste em relegar nossa região ao papel de quintal —, a Celac propõe uma integração que não seja apenas comercial, mas civilizatória. Essa comunidade nasceu de uma necessidade urgente: construir um espaço de diálogo e, sobretudo, de cooperação entre os países latino-americanos, sem a sombra paternalista dos Estados Unidos. Era (e ainda é), uma tentativa de devolver à América Latina o direito de falar por si, de se reconhecer em seus próprios espelhos, sem precisar da “moldura” alheia.

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Satélites que orbitam interessem externos

Formada por 33 países, a Celac representa uma articulação entre povos que compartilham cicatrizes coloniais e desafios contemporâneos, e que ainda ousam sonhar com um destino comum. Mas o século 21 não está sendo gentil com os projetos de unidade. Ao contrário: vivemos tempos de fragmentação, no qual o individualismo político, disfarçado de soberania nacional, tem enfraquecido qualquer tentativa de cooperação regional profunda. A ascensão de líderes como Javier Milei, na Argentina, Daniel Noboa, no Equador, e Nayib Bukele, em El Salvador, por exemplo, representa mais que divergência: significa o retorno de um latino-americanismo de conveniência, que rejeita o regionalismo solidário em nome de um alinhamento cego com os interesses do Norte global. De fato, o nome mais adequado para isso é subserviência.

Tais Presidentes, cada um à sua maneira, têm se colocado como dissidentes do projeto Celac, não por discordância pontual, mas por negação do próprio princípio que sustenta a comunidade: a ideia de que os países da região latino-americana devem caminhar juntos, sem aceitar o papel de “satélites” orbitando interesses externos, sobretudo dos EUA e da União Europeia (UE). Ao romper com a Celac, eles não apenas viram as costas para um projeto de integração, mas também acenam para Washington e para Bruxelas com a promessa de alinhamento — econômico, militar, ideológico.

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E o que isso significa para os “poderosos do Norte”? Significa, a priori, a manutenção de uma estrutura de poder que sempre lhes foi confortável: uma América Latina dividida, vulnerabilizada e incapaz de construir uma frente comum. Quanto mais vozes dissonantes dentro da Celac, menor o risco de que ela se torne uma alternativa real à Organização dos Estados Americanos (OEA). Menor o risco de que a região se olhe nos olhos e decida, finalmente, que pode viver sem tutela.

Essa rejeição à Celac revela uma lógica de subordinação que já foi duramente denunciada por inúmeros pensadores, inclusive intelectuais oriundos do Norte Global, como Noam Chomsky, por exemplo, que há décadas expõe, com rigor acadêmico e coragem política, os mecanismos de dominação exercidos pelos Estados Unidos sobre a América Latina. Para Chomsky, os EUA nunca aceitaram uma América Latina autônoma — tampouco democrática, se a democracia contrariar seus interesses econômicos e estratégicos. As intervenções diretas (e também indiretas), os bloqueios, os golpes silenciosos: tudo isso compõe as características de uma política externa que opera sob o “manto da liberdade”, mas que carrega, na essência, uma forte investida autoritária.

Líderes dos países-membros da Celec durante reunião em Honduras em 9 de março de 2025 (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Nesse sentido, as dissidências dentro da Celac não são apenas “escolhas políticas” internas: são respostas programadas a uma engrenagem geopolítica que tenta minar qualquer sinal de resistência regional. Elas ecoam um imperialismo que se reinventa sob o manto do neoliberalismo, mas que continua pautando o que pode ou não florescer no Sul global.

Reagir ao “America first

Mas a integração regional, quando não compreendida como um compromisso com a soberania dos povos, pode se tornar apenas mais uma vitrine de boas intenções. A Celac se ergueu como uma resposta política à OEA, marcada por décadas de silêncio conveniente diante de golpes e intervenções patrocinadas por Washington. Contrariando esse silêncio, a Celac propõe um pacto entre iguais, assentado sobre os princípios de autodeterminação, de respeito mútuo e de cooperação solidária.

Por isso, a reunião ocorrida nesta quarta-feira, 9 de abril, em Honduras, da qual o Presidente Lula fez questão de participar, carrega um peso que vai além da diplomacia protocolar. Se houver coragem política, ela pode significar um marco decisivo rumo à construção de um mundo multipolar — no qual os países do Sul não sejam apenas expectadores das decisões tomadas nos grandes centros, mas atores com voz e vontade próprias. Porque a multipolaridade é mais do que uma reorganização de poderes globais: trata-se da possibilidade de pluralidade cultural, econômica e política, real, através de projetos que não sigam o “roteiro” dos grupos hegemônicos do Norte.

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A América Latina não precisa ser uniforme para ser unida. Suas diferenças devem ser enxergadas como riquezas, e não obstáculos. O que falta é compromisso — não apenas com a retórica da integração, mas com a prática política que deveria sustentá-la. Defender a Celac, hoje, é, portanto, mais do que uma necessidade, sobretudo em consequência da promessa de “America First”, que tem significado, na prática, o aprofundamento de uma lógica protecionista que afetou diretamente parceiros comerciais históricos, inclusive os países latino-americanos. Assim, faz-se necessário, como nunca, um ato de insurgência firme, contra os grilhões invisíveis da dependência.

Logicamente, a Celac é um projeto em construção. Seus limites são evidentes e suas contradições múltiplas. Entretanto, é também uma “trincheira política” onde se disputa o direito de pensar a região para além das fronteiras impostas e das alianças ditadas pelo capital estrangeiro. Portanto, defendê-la é afirmar que a integração latino-americana continua sendo um ato de resistência. E, sobretudo, de esperança.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Verbena Córdula Graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.

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