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Estallido social no Chile: 3 anos depois, persistem carências que levaram povo às ruas

"Esse mal-estar, que o povo do Chile expressou a propósito da explosão, é algo que continua vigente", afirmou Gabriel Boric nesta segunda (17)
Aldo Anfossi
La Jornada
Santiago

Tradução:

Chile chega ao terceiro aniversário da explosão social de 18 de outubro de 2019, com idênticas carências às que deram origem à mais grave crise social e política do país desde o retorno da democracia há 30 anos, todas pendentes de solução e inclusive agravadas pelas sequelas econômicas da pandemia da covid-19.

Pior ainda, a isso se somam o auge da delinquência, severos déficits em segurança pública nas grandes cidades e na “macrozona sul”, onde se verifica o conflito entre os mapuche e o Estado chileno, com inacabáveis casos de violência. Enquanto isso, na “macrozona norte”, limítrofe com o Peru e a Bolívia, sucede uma incontrolável crise migratória pelo ingresso ilegal de dezenas e centenas de pessoas a cada dia, principalmente provenientes da Venezuela.

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Todo esse panorama, mais o assédio incessante da oposição direitista, a inexperiência e erros não forçados do novo governo, desgastaram aceleradamente a presidência de Gabriel Boric, cuja aprovação caiu de 56% a 30% desde que assumiu em março passado.

“Diante da arremetida de setores conservadores que pretendem fazer-nos crer que nada passou, quero dizer-lhes que as demandas e esse mal-estar, que o povo do Chile expressou a propósito da explosão, é algo que continua vigente e do qual seguimos tendo que nos responsabilizar”, disse na última segunda (17) o presidente na cidade de Quillota, a 120 quilômetros ao noroeste de Santiago, onde inaugurava um hospital.

“Essas urgências nas pensões, essas urgências na saúde. Temos que ser capazes de tomá-las e fazer melhores políticas públicas, não bastam discursos grandiloquentes, necessitamos exemplos como este, como o novo hospital de Quillota. Creio que essa é a linha na qual temos que trabalhar”, ressaltou.

"Esse mal-estar, que o povo do Chile expressou a propósito da explosão, é algo que continua vigente", afirmou Gabriel Boric nesta segunda (17)

Fotomontagem | Reprodução
Aprovação de Gabriel Boric caiu de 56% a 30% desde que assumiu em março passado




Demandas continuam latentes

Claudio Fuentes, doutor em ciência política, diz que na sociedade chilena continuam latentes as demandas sociais, “particularmente em alguns temas críticos como a reforma dos sistemas de pensões de saúde, melhorar as condições de vida e reduzir o abuso dos grupos empresariais”.

A respeito de se é provável outra explosão social, Fuentes responde: “eu o vejo difícil, porque os estudos mostram um certo cansaço a respeito do protesto, estamos em outro momento, com maior crise econômica, desemprego, pobreza e isso gera uma prioridade social mais centrada na busca de trabalho, de resolver o dia a dia”.

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Além disso, ele observa: “as opções que se deram, como a constituinte e outras, frustraram as expectativas cidadãs, não houve uma solução política ao problema e causou cansaço pela intensidade dos ciclos eleitorais e sociais, portanto acho difícil que exista uma nova explosão”.

Haverá protestos, aponta, mas estima que não será o mesmo ciclo de 2019, que teve por vários meses as pessoas protestando, mas sim com uma menor intensidade.

Mesmo com “recuso” à nova Constituição, maré da mudança continuará trajetória no Chile

Uma enquete conhecida nesta segunda, da consultoria Criteria e do Laboratório Constitucional da Universidade Diego Portales, assinala que 79% dos participantes favorece a ideia de trocar a Constituição e só 21% se inclina por não a mudar. Além disso, 41% se inclina por uma Convenção mista, metade eleita pela cidadania e metade de especialistas propostos pelo Congresso; 34% prefere uma Convenção inteiramente eleita pela cidadania e 25% se inclina por uma entidade que só envolva especialistas selecionados pelo Congresso.


Analistas preveem que será uma convenção “tutelada”

A centro esquerda oficialista e a oposição direitista reunida no Chile Vamos adiantaram 12 “princípios” que fixam um marco dentro do qual, se prosperar um acordo, seria escrita a nova Constituição chilena. Porém, imediatamente surgem questionamentos sobre como esse condicionamento restringirá a soberania do órgão a cargo da redação do texto. 

Em contrapartida, não se conhecem definições sobre o órgão constituinte: como se integraria – se 100% eleito ou, como idealizam alguns ultraconservadores, também por “especialistas” designados pelos partidos e em que proporção – tampouco o prazo para funcionar, etc. Tudo em torno ao “mecanismo”, como é chamado, é nebuloso. 

O rascunho é suscetível a mudanças mas subjaz o objetivo opositor de impedir que se repitam articulações consideradas “maximalistas” que incluíam a proposta recusada em setembro. Por exemplo, declarar o país plurinacional, reconhecer nações originárias e criar uma justiça básica indígena. 

“A Constituição reconhece os povos indígenas que habitam seu território como parte da nação chilena, que é una e indivisível. O Estado respeitará e promoverá seus direitos e culturas”, reza um dos lineamentos. Ao dizer “una e indivisível”, se fecha a porta ao reconhecimento de autonomias territoriais – uma das principais reivindicações mapuche – da mesma forma desconhece as diferentes etnias como nações preexistentes. 

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Simultaneamente, se busca assentar que a propriedade privada e o empreendimento de negócio estejam a idêntico nível de legitimidade que os direitos sociais a cargo do Estado, hoje quase inexistentes. 

“Chile é um Estado social e democrático de direitos cuja finalidade é promover o bem comum, que reconhece direitos e liberdades fundamentais e que promove o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais com sujeição ao princípio de responsabilidade fiscal e através de instituição públicas e privadas”, diz. 

Outra definição: “o Chile protege e garante direitos e liberdades fundamentais como o direito à vida, a igualdade ante a lei, o direito à propriedade em suas diversas manifestações, a liberdade de consciência e de culto, a liberdade de ensino e o dever de preferência das famílias de escolher a educação de seus filhos e o direito de os não nascidos, entre outros”.

Aqui subjaz que não haverá aborto universal e que se protege a educação privada entendida como negócio.


Uma Convenção tutelada

Mauricio Morales, catedrático da Universidade de Talca, diz que se avança para uma Convenção “tutelada”.

“O acordo que estão alcançando inclui os conteúdos centrais da nova Constituição. Não são princípios constitucionais como se disse, mas conteúdo. Portanto, para o bem ou para o mal, estão atando as mãos da nova Convenção, restringindo seu campo de ação. Isso rebaixa os níveis de incerteza institucional, mas traz como consequência escolher um órgão de escasso poder e influência”, explica.

Morales acrescenta que “se a essa Convenção se agrega um grupo de especialistas nomeados pelos partidos e, adicionalmente, é o Congresso o encarregado de supervisionar o cumprimento dos conteúdos definidos, teremos o órgão representativo menos relevante na história do Chile”. 

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Ele opina que o dilema não será a legitimidade do processo, se estará ou não em dúvida – “se a Convenção é escolhida popularmente não haverá problemas de legitimidade, tampouco se o Congresso define os princípios porque foi eleito democraticamente” – mas sim o poder real da nova Convenção, o qual pode ser para o bem ou para o mal. 

“A péssima experiência prévia explica o temor dos partidos a ceder poder a uma instância que, sabemos, poderia seguir o mesmo roteiro da anterior, fazendo fracassar definitivamente o processo. Portanto, estão tomando resguardos institucionais”, diz.


Marco restringido

Cristian Fuentes, catedrático da Universidade Central, considera que com o marco prévio “está se restringindo o trabalho do órgão constitucional, pois a direita quer resolver antes os temas substanciais”.

“Veremos quais serão as características de quem redija o novo projeto constitucional, se será eleito por completo ou parcialmente, se o Congresso terá alguma participação ou se um grupo de especialistas assessorará ou resolverá. Creio que quão puro ou misto seja o mecanismo, dependerá do que a direita esteja disposta a ceder. O 62% de recusa ao anterior projeto pesa muito”. 

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Fuentes agrega que as 12 bases constitucionais conhecidas dão conta das principais críticas ao projeto recusado em 4 de setembro, mas respeitam a generalidade dos princípios que defendem os partidários do Aprovo, os quais “têm a seu favor só o limite da legitimidade, já que as alternativas são poucas e piores”, como ficar com a velha constituição pinochetista. 

“A direita deve se convencer de que é impossível defender uma constituinte que não seja totalmente eleita”, afirma o constitucionalista chileno Javier Couso.

A três anos exatos da furibunda crise social e política detonada no Chile em 18 de outubro de 2019 (18-O), foi esta a que abriu a rota constituinte e também seu único resultado tangível, mas trocou o ácido sarcasmo por fracasso quando em 4 de setembro a proposta de Carta Fundamental foi recusada por 62% da cidadania.

Desde então a centro esquerda e setores da direita se enfrascaram em uma negociação encurralada; na semana passada transcenderam doze “princípios constitucionais” que seriam o marco dentro do qual agiria a hipotética nova Convenção. 

“A direita deixará passar outubro por razões óbvias, vem o 18-O quando mais sensação há de impossibilidade de mudar as coisas, haverá manifestações e seguramente violência, oxalá não tanta como para tirar para abaixo o acordo. Os negociadores não querem dizer que estão perto, se dão dois passos adiante e um para trás, mas até que não se firme a última letra não há nada”, diz em conversação com La Jornada, o advogado constitucionalista Javier Couso.

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As tratativas para reviver o processo se concentram em quatro eixos: o órgão que deveria redigir o texto; as bordas que limitarão o que ele elabore; a solução de controvérsias que garanta que os princípios sejam respeitados; e o papel dos “especialistas” que a direita exige. 

“Nas primeiras duas semanas após o plebiscito, a direita esteve muito tentada a frear tudo e bastante longínqua à possibilidade de retomá-lo. Agora a direita negocia com o “tejo pasado” (um chilenismo que se refere a pretender ou exigir mais do possível), quis que os limites ou coisa que o ente constituinte não possa tocar sejam mais do razoável, buscando basicamente repor o princípio de subsidiariedade”, explica. 

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A respeito das bases, diz que “não há nada particularmente oprobrioso ou complicado, nada inaceitável, dão a possibilidade de que o ente seja inteiramente democrático, porque havia a ideia de combinar entre um grupo eleito democraticamente e especialistas designados pelo Congresso”.

A plurinacionalidade ficou de fora. Que complexidade isso acarreta?
“Na constituição do Pinochet não há uma só linha, uma palavra, sobre os povos originários. Estas bases falam de reconhecimento e respeito dentro de uma só nação chilena. Fica de fora o plurinacionalismo, mas inclui boa parte dos direitos, inclusive os do artigo 169 da OIT. Comparado com o projeto anterior é muito menos, mas em relação a direitos linguísticos, de consulta e a não serem assimilados, é um salto quântico”.

A respeito do órgão redator se conhece nada ou pouco.
“Quanto mais limitado seja o âmbito do que pode fazer o ente, menos dramático é o debate sobre quem vai redigir a constituição. A Convenção vai operar com a “espada de Damocles” de outro plebiscito de saída com voto obrigatório e seria um fracasso se não existir um grupo transversal chamando a votar “aprovo”, correndo-se o risco de uma derrota definitiva. E como a direita é a menos interessada, não importa muito a composição exata do órgão, porque a pergunta central é quanta vontade real de fazer uma nova constituição existe. A direita tem que se convencer que é muito difícil defender um órgão que não esteja totalmente eleito”.

Os princípios limitam significativamente o âmbito da futura Convenção?
“O limite real para uma nova Convenção é outra derrota. Entendo que possa haver dúvidas, mas esta é uma negociação na qual participam desde o Partido Comunista até (a direitista) UDI e isso é uma garantia; e se chegamos a ter um órgão inteiramente eleito, é um êxito como negociação”.

E o papel dos especialistas?
“Isso foi uma reação visceral de rechaço ao que foi a Convenção e uma aposta totalmente tecnocrática, mas conforme decantam os acordos, tem menor força haverem especialistas incidindo ou tomando decisões políticas. A ideia de que são neutros politicamente é absolutamente absurda, obviamente todos os constitucionalistas têm ideologia política, então que especialistas redijam é absurdo”.


Corte Suprema do Chile revoga extradição ao México do ex-deputado Mauricio Toledo

A Corte Suprema do Chile recusou no última dia 14 a petição de extradição do ex-deputado Mauricio Alonso Toledo Gutiérrez, ex-delegado da prefeitura de Coyoacán, reclamado pelos tribunais mexicanos por suposto enriquecimento ilícito.

Em decisão dividida, a Segunda Sala do máximo tribunal revogou a sentença de primeira instância que, em dezembro de 2021, havia concedido repatriar o imputado. 

Toledo, que é filho de exilados chilenos que chegaram ao México na década de 1970, é acusado de pertencer a uma rede criminosa que adquiria bens com dinheiro de procedência ilegal. 

Ingressou no Chile em agosto de 2021 e alegou ser vítima de perseguição política.

Votaram contra os magistrados Manuel Antonio Valderrama, Leopoldo Llanos, María Teresa Letelier e Hernán González, enquanto o juiz Haroldo Brito esteve a favor de ratificá-la.


Argumentos da decisão

A sentença inicial foi anulada porque se estabeleceu a improcedência da extradição ao não ser cumprido o princípio de mínima gravidade do delito, ao sancionar-se no Chile o enriquecimento ilícito com uma pena de multa e não com um ano de reclusão, o mínimo que estabelece o tratado bilateral sobre a matéria.

“Sobre o particular, convém ter em consideração que constitui um princípio geral do direito internacional, que a extradição só procede por delitos de gravidade, e não seriam tais aqueles cuja pena não supera um ano de privação de liberdade, que seriam, portanto, de escassa lesividade”, argumenta.

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A decisão acrescenta que, “conforme a dito princípio, o artigo 1º do Tratado de Extradição regido entre o Chile e o México estabelece que ela será aplicável só quando a privação de liberdade do delito requerido não excede um ano. Por sua vez, o artigo 3 do citado instrumento estipula que procede dar lugar a extradição a respeito dos delitos incluídos em convênios multilaterais subscritos por ambos os países”. 

Também consigna que “o número 1 do artigo 44 da Convenção dos Nações Unidas Contra a Corrupção (do qual são parte tanto o México como o Chile) estabelece que procede a extradição dos delitos tipificados em dita convenção se estes são também delitos no direito interno dos Estados partes; e o n° 2 sustenta que procederá a extradição dos delitos compreendidos na Convenção, ainda não sendo delito no direito interno, sempre que a legislação interna permita aquilo. Por sua vez, o artigo 20 do mesmo estatuto indica, entre tais delitos, o de enriquecimento ilícito, que se encontra tipificado e penalizado na legislação interna de ambos os Estados intervenientes no presente processo”.  

Para o máximo tribunal, “(…) a citada disposição deve ser interpretada no sentido de que se bem a Convenção faz extraditáveis os delitos de corrupção que tipifica (inclusive se não estão descritos na legislação interna do estado requerido), de igual modo deixa a salvo – no caso de existir tratado de extradição e as legislações internas tipifiquem o delito – a penalidade mínima de mais de um ano de privação de liberdade, requisito que deve ser cumprido tanto a respeito do Estado requerente como do requerido, constituindo isso uma contra exceção ao que dispõe em seu artigo 44 nº 1, que faz procedente a extradição por todos os delitos no referido tratado multilateral”.

“Pois bem, tal condição não se verifica a respeito do enriquecimento ilícito tipificado na legislação penal chilena, enquanto tal delito se encontra sancionado pelo artigo 241 do Código Penal, com uma pena de multa equivalente ao montante do incremento patrimonial indevido, além da pena acessória de inabilitação absoluta temporal para o exercício de cargos e oficias públicos, em seus graus mínimos a médio, castigo que em nenhum caso é privativo de liberdade”, observa.

A decisão conclui que, “de acordo com o exposto e razonado, não verificando-se na espécie requisito previsto no artigo 449 letra b) do Código Processual Penal, toda vez que o delito é imputado ao requerido, não é daquelas que autorizam a extradição segundo os tratados vigentes, e sendo copulativas as exigências contempladas em dita disposição, a solicitação de extradição matéria de análise será desestimada”.

Aldo Anfossi | Especial para o La Jornada em Santiago do Chile.
Tradução: Beatriz Cannabrava.


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