Pesquisar
Pesquisar

Frei Betto | Ocupação não é invasão. Por que MST e luta por reforma agrária assuntam tanto?

Movimento segue os ditames da Constituição Cidadã de 1988, que defende o uso social da terra, a qual deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva
Frei Betto
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que vi nascer e ao qual permaneço vinculado, é o mais popular, combativo e democrático movimento popular do Brasil. Congrega, hoje, cerca de 500 mil famílias assentadas e 100 mil acampadas. Luta por um direito elementar, jamais efetivado no Brasil, um país de dimensões continentais e onde há muita gente sem terra e muita terra sem gente – a reforma agrária.

É, no mínimo, uma vergonha constatar que no século 21 os únicos países que não fizeram reforma agrária na América Latina foram Brasil, Argentina e Uruguai. O modelo de propriedade da terra que ainda perdura em nosso país é o das capitanias hereditárias. E a relação de muitos proprietários de terras com seus empregados pouco difere dos tempos de escravidão.

Lula está certo, o MST mudou! E hoje luta por uma reforma agrária mais ampla e complexa

Nascido em 1984 e prestes a completar 40 anos em 2024, o MST sabe, desde seus primórdios, que governo é como feijão, só funciona na panela de pressão… Ainda que tenha contribuído decisivamente para eleger Lula presidente, o MST jamais se deixou cooptar pelo governo. Mantém a sua autonomia e sabe muito bem que a relação de governo com movimentos sociais não pode ser de “correia de transmissão” e, sim, de representação das bases sociais junto às instâncias governamentais. Muitos políticos enchem a boca com a palavra “democracia”, mas temem que passe de mera retórica para ser, de fato, um governo cujo principal protagonista é o povo organizado.

O MST se destaca também pelo cuidado que dedica à formação política de seus militantes, o que muitos movimentos e partidos de esquerda negligenciam. Os sem-terra mantêm, inclusive, um espaço próprio para o trabalho pedagógico, a Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP). E em todos os eventos que promove, o movimento valoriza a “mística”, ou seja, atividades lúdicas (cantos, hinos, painéis etc.) e símbolos (fotos, artesanato etc.) de caráter emulador.

Continua após o banner

O MST segue rigorosamente os ditames da Constituição Cidadã de 1988. A Carta defende o uso social da terra, que deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva. E exige algo ainda em compasso de espera e imprescindível se o Brasil quiser alcançar o desenvolvimento sustentável e abandonar sua submissão aos ditames das nações metropolitanas, que nos impõem a mera condição de exportadores de produtos primários, hoje elegantemente chamados de “commodities”…

Movimento segue os ditames da Constituição Cidadã de 1988, que defende o uso social da terra, a qual deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Diversos grupos e ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) realizam protesto em São Paulo (11/12/2013)




Ocupação não é invasão

Ocupação não é invasão. Jamais o MST ocupa terras produtivas. Hoje, o movimento é o maior produtor de arroz orgânico na América Latina e defende a Reforma Agrária Agroecológica, capaz de facilitar o acesso à terra como direito humano; produzir alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira; oferecer ao mercado alimentos salubres e livres de agrotóxicos; valorizar o papel da mulher trabalhadora do campo; expandir o número de cooperativas de agroecologia; e ampliar a soberania e a biodiversidade alimentares no combate à fome e à insegurança alimentar.

A campanha do “Abril Vermelho” não usa o adjetivo como evocação da cor preferida dos símbolos comunistas (e, também, das vestes solenes dos cardeais), como querem interpretar os detratores do MST. É, sim, a cor do sangue dos 19 sem-terra cruelmente assassinados pela Polícia Militar em Eldorado dos Carajás, no sul do Pará, a 17 de abril de 1996. Sete vítimas foram mortas por foices e facões, e os demais por tiros à queima-roupa.

MST alfabetizou mais de 100 mil pessoas no Brasil: “Luta por educação é paralela à luta pela terra”

Cerca de 100 mil famílias aguardam assentamento no Brasil. E é no mínimo um desserviço o agronegócio promover o desmatamento de nossas florestas para expandir a fronteira agrícola, usufruir de isenção fiscal na exportação de seus produtos e concentrar sua produção em apenas cinco mercadorias: soja, milho, trigo, arroz e carne, controladas por grandes empresas transnacionais.

A fome cresce no mundo. Já são quase 1 bilhão de pessoas afetadas. E isso não resulta da falta de alimentos. O planeta produz o suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. Resulta da falta de justiça. No sistema capitalista, o faminto morre na calçada à porta do supermercado. Porque o alimento tem valor de troca e não de uso. Ora, enquanto a produção alimentar não seguir os padrões agroecológicos e a terra e a água, recursos naturais limitados, não forem considerados patrimônios da humanidade, a desigualdade tende a se agravar e, com ela, toda sorte de conflitos. Paz rima com pão.

Continua após o banner

O MST assusta tanto porque luta para que o Brasil, uma das nações mais ricas do mundo, e que figura entre as cindo maiores produtoras de alimentos, deixe de ser um país periférico, colonizado, marcado por abissal desigualdade social.

Tomara que, um dia, nunca mais se torne realidade os versos cantados por João Cabral de Melo Neto em “Funeral de um lavrador”: “Não é cova grande / É cova medida / É a terra que querias / Ver dividida”.

Frei Betto | Escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na TV Diálogos do Sul


Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Frei Betto Escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras); “Batismo de sangue” (Rocco); e “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros 74 livros editados no Brasil, dos quais 42 também no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org. Ali os encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio.

LEIA tAMBÉM

Biblia-maconha-carta-rodrigo-pacheco
A Santa Hildelgarda e o porte de maconha | Carta aberta a Rodrigo Pacheco
Gibiteca Balão - Foto Equipe atual e antigos integrantes_foto de João Martins_JUNHO 2024
10 anos de Gibiteca Balão: refúgio de cultura e inclusão na periferia de São Paulo
G20 em Quadrinhos n
G20 em quadrinhos | nº 6: Trabalho
Brasil-diplomacia-Lula
Ausência do Brasil em cúpula de Zelensky é mais um acerto da diplomacia brasileira