Diferentemente de uma boa parte de países ocidentais, que apresentam retórica em favor dos direitos humanos, mas que, na prática, fazem “vistas grossas” a essas violações, em uma demonstração de solidariedade e de coragem, o governo da Bolívia rompeu relações diplomáticas com o Estado de Israel. Conforme a ministra boliviana de Relações Exteriores, María Nela Prada, Israel tem dispensado tratos “cruéis, desumanos e degradantes” ao povo palestino, despeitando a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU).
A contradição entre a retórica de defesa dos direitos humanos proclamada por governos ocidentais, como os Estados Unidos e países da União Europeia, por exemplo, e a falta de uma condenação mais enérgica dos ataques israelenses à Palestina é um assunto que merece nossa reflexão. Essa contradição, a meu ver, descredibiliza esses governos em relação à sua suposta defesa dos princípios universais de direitos humanos e justiça.
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É importante lembrar que, em qualquer conflito, a proteção dos direitos humanos deve ser prioridade número um; e as vítimas civis merecem a mesma compaixão e solidariedade, independentemente de sua nacionalidade ou etnia.
A falta de uma condenação mais enfática dos ataques indiscriminados em Gaza, por parte do Estado israelense, contradiz indiscutivelmente a noção de que os direitos humanos são universais e invioláveis.
Cannabrava | Genocídio em Gaza
As potências ocidentais têm o dever moral e ético de aplicar os mesmos padrões em todas as partes do mundo, independentemente do fato de o Estado violador ser ou não seu aliado político, econômico e/ou ideológico.
A seletividade na condenação das violações de direitos humanos enfraquece a promoção da paz, da justiça e do respeito aos direitos humanos em todo o mundo. Ademais, isso alimenta sentimentos de injustiça e desigualdade, e sobretudo contribui para o aumento da polarização, e de ressentimentos.
É fundamental que os governos ocidentais sejam coerentes em suas políticas de direitos humanos, e pressionem Israel a respeitar o direito internacional. Não é coerente que aceitemos que Estados militar e politicamente fortes, como é o caso de Israel, apenas se apropriem do discurso em defesa dos direitos humanos quando isso lhes é conveniente.
Acreditar na universalidade e na aplicação consistente dos princípios de direitos humanos é imprescindível para a construção de um mundo mais justo e pacífico. A questão é: será que isso interessa às potências ocidentais?
Fotos: State Of Palestina – MFA/Twitter e ONU
Seguir o exemplo da Bolívia é uma forma de expressar seu repúdio a essas atrocidades que vêm sendo cometidas contra o povo palestino
Postura contundente da Bolívia
Além de condenar os ataques de Israel à Palestina, Estados como Venezuela, Rússia, Brasil, Colômbia e Bolívia, por exemplo, têm manifestado críticas em relação à situação, e defendido um acordo entre Israel e Palestina, sobretudo a partir da retirada dos israelenses dos territórios palestinos.
No entanto, não contente em apenas tecer críticas à postura israelense, o governo boliviano, através do seu Ministério de Relações Exteriores, adotou uma postura muito contundente, demonstrando que não apenas adota um discurso crítico, mas age, na prática, de modo a expressar à comunidade internacional sua solidariedade ao povo palestino, e também seu rotundo repúdio às injustiças praticadas pelo Estado de Israel, que bombardeia de forma indiscriminada o território de Gaza, matando população civil inocente, desrespeitando as normas internacionais descritas na Carta da ONU.
Decisão da Bolívia de romper relação com Israel segue direito internacional e “respeito à vida”
A Carta da ONU, adotada em 1945, é um dos pilares fundamentais dessa Organização, e tem como um de seus princípios a promoção e proteção dos direitos humanos em todo o mundo. Ela estabelece a diretriz para a cooperação internacional e a manutenção da paz e segurança, mas também contém compromissos essenciais para a defesa dos direitos humanos.
O documento afirma o compromisso dos países-membros com “a igualdade de direitos dos homens e mulheres e das nações grandes e pequenas”, assim como “o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.” Além disso, em seu Capítulo I, a Carta estabelece os propósitos e princípios da ONU, reafirmando o compromisso com a promoção e proteção dos direitos humanos.
No que tange a esses direitos em tempos de guerra, a Carta exige atenção especial, pois os conflitos armados frequentemente resultam em violações graves desses direitos. A proteção e o respeito aos direitos humanos em situações de guerra são regidos por um corpo de direito internacional humanitário, que inclui a Convenção de Genebra e seus Protocolos Adicionais.
Assim, vários princípios devem ser observados, como, por exemplo, o da Proporcionalidade, que determina que o nível de qualquer ação militar se dê proporcionalmente ao nível da ameaça e ao objetivo militar legítimo, o que não está ocorrendo com os ataques de Israel a Gaza. Segundo esse princípio, é proibido o uso excessivo da força que causa danos desproporcionais a civis ou a bens civis, mas o Estado israelense não o está considerando, como vemos constantemente.
EUA alimentam guerra em Gaza como na Ucrânia e em outros confins do mundo
Outro princípio diz respeito à Precaução, de acordo com o qual as partes envolvidas no conflito devem minimizar os danos infringidos à população e aos bens civis, com a obrigatoriedade de evitar usar áreas densamente povoadas para fins militares. Isso também não está sendo respeitado por Israel. A assistência também está incluída no rol desses princípios. Conforme o Princípio da Assistência Humanitária, as partes envolvidas no conflito devem assegurar a entrega de ajuda humanitária (alimentos, medicamentos, entre outros) à população civil. Há outros princípios, os quais não mencionarei aqui, para não tornar o texto denso.
O que quero expressar, com essas linhas, é o fato de que todos os governos comprometidos com os princípios de igualdade de direitos, os princípios humanitários deveria seguir o exemplo da Bolívia e romper relações diplomáticas com Israel, como forma de expressar, contundentemente, seu repúdio a essas atrocidades que vêm sendo cometidas contra o povo palestino, não apenas no contexto atual, mas há anos.
A coerência precisa se impor. Desse modo, faz-se necessário que todos os governos que não coadunam com o que está acontecendo em Gaza sejam coerentes em suas políticas de direitos humanos e adotem medidas compatíveis com a condenação desse desrespeito à Carta da ONU por parte do Estado de Israel. Se isso não acontece, fica difícil acreditar e sobretudo defender a universalidade da aplicação da justiça.
Verbena Córdula | Doutora em História e Comunicação no Mundo contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid. Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, Bahia.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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