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Governo popular tem valiosa chance de ser eleito no Panamá. O que mudou no país?

Em épocas de mudanças como a que vivemos, o sensato é abrir passo ordenado às mudanças, privilegiando o substantivo sobre o adjetivo
Guillermo Castro Herrera
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“Os soberbos são os inimigos da liberdade:
os únicos conservadores verdadeiros,
os que juntam e apaziguam, são os liberais.
O que não conservam, é o ódio e a arrogância. […]A justiça, a igualdade do mérito, o tratamento respeitoso do homem,
A igualdade plena do direito: isso é a revolução”.
José Martí, 1894[1]

Já são dez os candidatos devidamente credenciados para as eleições presidenciais que terão lugar no Panamá em maio de 2024. Quatro problemas maiores aguardam por eles: um crescimento econômico incerto; uma iniquidade social persistente; uma degradação ambiental constante, e um deterioro institucional crescente. 

Na cultura política do país, culpar é o recurso de primeira instância. Para a maioria dos candidatos, como para os meios de comunicação, a culpa maior radica na corrupção generalizada da gestão pública, e a trajetória sempre interessada daqueles que têm vindo ocupar as funções de governo de 1990 até hoje. 

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Nessa perspectiva, a política tende a tornar-se messiânica: se trata de eleger ao Eleito que expulse os mercadores do templo, e de que os crentes não lhe permitam regressar. Sobram os voluntários para a tarefa, e vão desbordando pouco a pouco os impropérios que intercambiam, e que chegarão a ser maré.

Nesta ocasião, no entanto, há uma novidade que pode ameaçar a trama. Maribel Gordó, uma professora de economia, de origem modesta e vinculada há muito tempo a movimentos sociais, logrou reunir as firmas necessárias para se converter em candidata de livre postulação – que não independente – e escolheu como companheiro de chapa a um distinguido cientista político formado nos Estados Unidos, proveniente de nossas capas médias educadas.

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Nomes que, na opinião não necessariamente pública, correram por três vertentes. Uma foi entusiasta, diante da esperança de ver representados na contenda eleitoral, de maneira direta e clara, os interesses e as aspirações dos trabalhadores manuais e intelectuais, do campo e da cidade.

Outra se alegra de que finalmente haja a possibilidade de elevar o nível do debate político, para escolher o melhor dos conservadores possíveis. E então finalmente há os assustados de ofício, e assustadores de vocação, que olham debaixo da cama todas as noites, torcendo para que não haja o fantasma do comunismo escondido ali.

Em épocas de mudanças como a que vivemos, o sensato é abrir passo ordenado às mudanças, privilegiando o substantivo sobre o adjetivo

Luis Gonzalez/Unsplash
Interesse geral da sociedade passa a se expressar em termos novos e mais complexos, correspondentes aos novos níveis de desenvolvimento

Realidades

O ponto, em todo caso, é que esta será – em pensamento, palavra, obra e omissão – uma campanha centrada em realidades. Uma dessas realidades consiste em que o país não padece de uma soma de problemas que possam ser enfrentados separadamente.

Esses problemas, com efeito, constituem expressões diferente de uma mesma crise: a que resulta do esgotamento de um modelo de desenvolvimento organizado em torno a um enclave de serviços à circulação de capitais, mercadorias e pessoas – ao qual se agrega outro de mineração metálica à céu aberto nas franjas do Corredor Biológico do Atlântico Mesoamericano. 

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Esse modelo seguiu o padrão estabelecido no Istmo pela Coroa espanhola no século XVI. Se trata, em essência, do monopólio do trânsito por um só corredor interoceânico; do controle desse corredor pelo Estado que controle a Istmo; da concentração dos benefícios do trânsito nos setores sociais que controlam o Estado, e de subordinar o desenvolvimento do país às necessidades do trânsito assim organizado. 

Assim, o crescimento econômico incerto está diretamente associado à estreita base social do mercado nesse modelo de desenvolvimento. Já é evidente a necessidade de ampliar essa base social mediante o fomento de formas inovadores de organização produtiva – desde Organizações de Base Comunitária até cooperativas –, capazes de atender às demandas de alimento e bens de consumo em mercados locais e regionais, de contribuir à criação de um mercado de serviços ambientais, e de participar na diversificação de nossas exportações. Um banco de desenvolvimento cooperativo não viria mal ao país, mas o essencial radicaria, sempre, em que essas organizações se constituíssem de baixo pra cima, região por região.

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Uma economia assim organizada poderia contribuir de maneira importante à luta pela equidade na distribuição da riqueza nacional. Não só se trata de que converteria em produtores organizados a boa parte de nossa enorme multidão de trabalhadores informais, mas de que essas organizações poderão colaborar ativamente na criação e desenvolvimento de modalidades inovadoras de gestão dos serviços públicos e educação e saúde que hoje estão a caminho do colapso.

Além disso, como tais organizações produtivas poderão desempenhar um importante papel na tarefa de salvaguardar a nossa segurança social do risco de uma privatização de cujas consequências dão conta sobrada os resultados dessa medida em países como o Chile. 

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A ampliação da base social do mercado, assim entendida, porá as organizações de produtores na capacidade de incidir na produção das condições naturais de produção que garantam a sustentabilidade da atividade econômica – incluída a do Canal do Panamá –, e contribuam a tornar sustentável o desenvolvimento humano de nosso país.

A essa base social ampliada lhe corresponderá, também, a tarefa de contribuir à construção de institucionalidade nova, adequada à renovação cultural e moral de nossa sociedade, e beneficiada em todo momento pelo controle social da gestão pública. 

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Um obstáculo maior à solução destas necessidades radica no esgotamento da capacidade que possa haver tido o regime político estabelecido depois da intervenção militar estrangeira de 1989 para assumir e expressar o interesse geral de nossa sociedade. Nos grandes momentos de crise da história da sociedade, esse interesse expressa a aspiração de seus setores fundamentais em superar um conjunto de obstáculos que se opõem ao seu próprio desenvolvimento. 

Uma vez superada essa crise, o interesse geral da sociedade passa a se expressar em termos novos e mais complexos, correspondentes aos novos níveis de desenvolvimento alcançados – para o bem ou para o mal – pelos distintos componentes da sociedade em seu conjunto. Isso é o que está em curso no Panamá, onde o interesse geral da sociedade já se expressa na demanda de se liberar das causas de origem dos problemas que a afligem. 

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Nesta perspectiva, cabe dizer que os problemas econômicos, sociais, ambientais e políticos já mencionados atingem de uma ou outra maneira a todos os setores da sociedade. Pelo mesmo, podem e devem ser encarados a partir do interesse geral que todos compartilhem em alcançar uma situação de prosperidade equitativa, sustentável e democrática. Em épocas de mudanças como a que vivemos, o sensato é abrir passo ordenado às mudanças, privilegiando o substantivo sobre o adjetivo. 

Bem o dizia o historiador Ricaurte Soler: o substantivo não é o que se chame liberal ou conservador, mas sim o que se aspire a liberar ou a conservar. No Panamá, a criação de uma economia de ampla base social, e uma sociedade capaz de velar pela atenção às necessidades de suas maiorias submetendo ao controle a gestão pública de seus recursos será uma autêntica revolução liberal. Aqui, o que realmente está em questão é o meio mais adequado para alcançar esses fins.

Alto Boquete, Panamá, 1 de agosto de 2023

[1] “Los cubanos de Jamaica y los revolucionarios de Haití”. Patria, 31 de março de 1894. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1975. III, 104-105.

Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul 
Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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