O parque central era insuficiente para albergar a multidão. Era 1986 e Vinicio Cerezo havia chegado à presidência depois de uma longa e dolorosa sucessão de governos militares corruptos e violentos, amparados por um exército às ordens da oligarquia local. As fraudes eleitorais haviam sido perpetradas diante da vista e paciência de uma cidadania temerosa das represálias e obrigada a manter a boca fechada diante de tamanhos abusos. Mas a indignação bulia por dentro e desbordou-se em uma manifestação cívica de repúdio às ditaduras e uma tentativa cheia de esperanças por resgatar a utopia da democracia.
Cerezo começou a governar e o povo lhe outorgou o benefício da dúvida. Havia sido aberta uma grande porta para a reparação institucional, com a retirada das forças armadas aos seus quartéis para permitir o estabelecimento de um governo livre e soberano, mas foi se fechando paulatinamente para dar passagem à poderosa influência de empresários e altos mandos do Exército. Os Estados Unidos nunca lhe tiraram os olhos de cima, vigiando seus interesses – usualmente opostos à independência das nações – e se consolidou finalmente o que seria um Estado débil e vulnerável.
A grande oportunidade começou a se desvanecer diante dos olhares de um povo cansado das decepções. Depois de Cerezo, se tornou patente como o discurso populista prendia novas ondas de entusiasmo e os governos que seguiram foram marcando uma tendência progressiva para o exercício de todos os vícios da má gestão governamental: enriquecimento ilícito, compadrio, repressão das vozes dissidentes, perseguição de líderes e manipulação das leis reitoras dos processos eleitorais para garantir o monopólio dos listados para cargos de eleição popular.
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Esta constante perda de certeza nos valores democráticos, provocada por governos cada vez mais alheios aos interesses do país e dedicados em cheio a saquear as arcas públicas e apoderar-se dos bem nacionais, desembocou nas mais recentes administrações, lamentável exemplo de amoralidade – em todos os sentidos – e uma voracidade insaciável por destruir todo resquício de institucionalidade. A maneira como age o governo atual não é mais que uma consequência dessa queda paulatina na impunidade e do abuso de autoridade de uma cadeia de administrações incapazes e venais.
Eric Walter – Wikimedia Commons
Guatemala parece ter entrado em uma voragem descendente, sem possibilidade de recuperação
A perseguição contra cidadãos comprometidos com seu país entrou em um franco ataque de ódio contra aqueles que tentam deter esta orgia de destruição, provocada pelo governante e seus aliados. Jornalistas, analistas políticos, líderes comunitários, operadores de justiça, organizações camponesas e de defesa dos direitos humanos foram as primeiras vítimas desta onda vingativa a partir dos despachos oficiais. Ao pacto de corruptos, liderados a partir dos salões daqueles que ostentam o poder econômico, se uniram organizações criminosos e de narcotráfico cujo dinheiro se encontra há décadas à disposição das máfias no poder.
Guatemala parece ter entrado em uma voragem descendente, sem possibilidade de recuperação. Os recursos de uma democracia funcional, normalmente postos à disposição da cidadania por meio de instituições fiáveis e sólidas, foram sequestrados e neste momento só servem de instrumentos para benefício de um grupo de oportunistas com ânsias de controle absoluto. Um triste fim para tanta esperança.
A Guatemala merece um melhor destino que ser vítima de um bando de corruptos.
Carolina Vásquez Araya, colaboradora da Diálogos do Sul na Cidade da Guatemala.
Tradução: Beatriz Cannabrava.
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