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Guerra na Ucrânia: qual o papel dos EUA? Uma análise das doutrinas e ideologias do império

Ninguém pode aprovar a guerra, mas só clamar pela paz não resolve as questões que originaram o conflito; para encontrar saídas, é necessário compreender isso
Beatriz Bissio
Diálogos do Sul Global
Rio de Janeiro (RJ)

Tradução:

É interessante constatar de que forma os fatos atuais nos fazem evocar episódios do passado. A  guerra na Ucrânia, as dilacerantes fotografias das mortes de civis, poderiam ter me provocado lembranças de outros conflitos, alguns dos quais indelevelmente fixados na minha memória, como as coberturas que fiz em Angola, Moçambique, Líbano… Naturalmente isso tudo veio à memória, mas, curiosamente a primeira lembrança foi do general Líber Seregni!

Seregni e o general Víctor Licandro tiveram importante papel na minha formação política. Dando os primeiros passos na militância participei, nos anos 1970, de várias palestras dessas duas destacadas figuras da história política do Uruguai. Oriundos das fileiras castrenses, mas decisivos articuladores políticos da formação da Frente Ampla — coligação que, na altura, só iniciava a sua decisiva trajetória — Seregni e Licandro, além de outras múltiplas responsabilidades, tinham organizado cursos de formação de quadros destinados aos jovens engajados na construção dessa aliança política inédita na história do país e, até hoje, excepcional experiência de unidade das forças progressistas. 

Entre outros temas, os cursos abordavam o papel das Forças Armadas na América Latina (tema que eles conheciam não somente por bibliografia…). Com eles, entendi o significado do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e da Escola das Américas e outras “escolas” fundadas por Estados Unidos, no marco da Guerra Fria, para treinar as forças armadas latino-americanas na Doutrina de Segurança Nacional. 

E, sobretudo, foram essas palestras, da mão de Sun Tzu, Von Clausewitz e das lições desses dois brilhantes militares democratas uruguaios, que me introduziram no tema da guerra, que anos depois vivenciaria com os meus próprios olhos, durante as coberturas que fiz como editora (e posteriormente diretora) da revista Cadernos do Terceiro Mundo. Nesse contexto, numa das palestras, o general Seregni disse a frase que nunca esqueci: “Numa guerra, a gente sabe como entra, mas nunca sabe como sai…”      

Essa frase é o marco com o qual procuro analisar algumas variáveis que compõem o complexo e dramático cenário atual, com Ucrânia no centro.

Acompanhe a cobertura da Guerra na Ucrânia

Nestes dias, temos sido bombardeados — desculpem a metáfora — com informação, desinformação, análises, bobagens revestidas de análises, opiniões de especialistas em tudo e em nada… Como é previsível, “numa guerra, a verdade é a primeira que morre”… É ampla a falta honestidade para deixar transparente a partir de que valores, visão de mundo, compromissos, a análise é feita. 

Entre tanta suposta informação ninguém na imprensa comercial publicou uma simples afirmação, que transcrevo do artigo de David Mandel “O Ocidente quis a guerra — Putin promoveu invasão inaceitável, mas havia como evitá-la. (…) Foi um conflito provocado”[1]. O trecho a seguir, do mesmo artigo, vai ao âmago do problema:

A Otan vinha prevendo a guerra há semanas, condenando as concentrações de tropas russas na fronteira com a Ucrânia. No entanto, nem a Otan, nem Kiev, fizeram a declaração que certamente teria evitado a guerra: a Ucrânia não se tornará membro da Otan. Ainda hoje, enquanto a guerra se alastra, em vez de pressionar Kiev a negociar com base nessa promessa, a Otan continua cinicamente decidida a defender a Ucrânia até o último ucraniano, na medida em que despeja armas e facilita a entrada de mercenários de direita. Este é o cúmulo do cinismo.[2]

Comecemos, então, por uma sucinta análise histórica, buscando responder a pergunta: Poderia a OTAN ter evitado a guerra? Ou melhor: por que a Otan não evitou a guerra? 

Como consequência do processo que levou ao colapso da União Soviética, o Pacto de Varsóvia se dissolveu, em 31 de março de 1991. O Pacto de Varsóvia foi uma aliança militar, criada em 14 de maio de 1955, na capital que lhe deu o nome, pela União Soviética junto com Albânia, Bulgária, Hungria, Polônia, Romênia, República Democrática Alemã e Tchecoslováquia. Foi fundada como resposta da União Soviética e seus aliados à criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em abril de 1949, e o estopim mais direto foi o fato de a Alemanha Ocidental ter sido aceita na Otan (em 6 de maio de 1955), colocando mais tensão na Guerra Fria. 

Após a dissolução da União Soviética e do fim do Pacto de Varsóvia, era de se esperar também o fim da Otan, ou pelo menos, que essa organização não visasse a sua expansão. Isso fora acordado com Mikhail Gorbachev. Apesar dos desmentidos a respeito de parte dos Estados Unidos, documentos desclassificados dos próprios Estados Unidos, da Alemanha, Reino Unido e França,  recentemente publicados pela revista alemã “Der Spiegel” (ver o acervo digitalizado do “National Security Arquive”, da Gelman Library, Universidade George Washington)[3], confirmam a versão defendida por Gorbachev: existia um compromisso das potências ocidentais em relação à não expansão da Otan rumo ao leste, após a dissolução do Pacto de Varsóvia. “A OTAN não se estenderá formal nem informalmente rumo ao Leste”, diz um dos documentos, citando o diplomata Raymond Seitz, representante dos Estados Unidos nas reuniões mantidas com o chefe de Estado soviético para discutir a reunificação alemã.  

Mas, assim como tantas vezes no passado, o Ocidente não honrou esse compromisso. Depois da desintegração da URSS e do desaparecimento do Pacto de Varsóvia, sua contraparte ocidental, a OTAN, não se dissolveu nem parou de avançar rumo ao Leste. 

Apesar de perder sua raison d’être como uma aliança de autodefesa coletiva, a Otan reinventou-se como um instrumento de intervenção global para o autoproclamado vencedor da Guerra Fria. Para ocultar a transição do conceito defensivo e regional do Tratado do Atlântico Norte (de 1949) a uma aliança ofensiva com um mandato global, o eufemismo de “operações de resposta a uma crise”, que não faz parte do Artigo 5°, foi cunhado.[4]

A Otan, que tivera uma atuação bastante limitada durante a Guerra fria, sobretudo se comparada com o que aconteceu depois, começou uma agressiva cooptação de ex-repúblicas soviéticas, em sucessivas ondas de expansão. Além do ingresso na Otan, vários entre os novos membros albergam bases militares dos Estados Unidos, algumas anteriores à própria incorporação à Otan, outras, posteriores. 

Vejamos: 

  • Em 1999, se incorporam à Otan a República Checa, Hungria e Polônia.
  • Em 2004, ingressaram na Otan Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. 
  • Em 2009, Albânia e Croácia.
  • Em 2017, Montenegro.
  • E em 2020, Macedônia do Norte.[5]
Ninguém pode aprovar a guerra, mas só clamar pela paz não resolve as questões que originaram o conflito; para encontrar saídas, é necessário compreender isso

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Cabe nos perguntar: Por que a Otan não evitou a guerra?

Um ano mais tarde, o Comunicado Final da reunião de chefes de Estado e de governo da Otan, realizada em Bruxelas em 14 de junho de 2021, confirmava oficialmente que Bosnia-Herzegovina, Geórgia e Ucrânia aspiravam a se tornarem membros da Otan. Em relação especificamente à Ucrânia, o comunicado afirmava que  

“a Otan reitera a decisão tomada na Cúpula de Bucareste de 2008 de que a Ucrânia se tornará membro da Aliança com o Plano de Ação para Membros (MAP) como parte integrante do processo (…) Mantemo-nos firmes em nosso apoio ao direito da Ucrânia de decidir seu próprio futuro e sua política externa livre de interferências externas. Os Programas Nacionais Anuais da Comissão Otan-Ucrânia (NUC) continuam sendo o mecanismo pelo qual a Ucrânia leva adiante as reformas relativas à sua aspiração à adesão à Otan.[6]  

O conceito de indivisibilidade da segurança

Diante da contínua expansão da Otan e da explícita declaração de Bruxelas de 2021, de acolhida da Geórgia e, em particular, da Ucrânia como aspirantes oficiais a se integrarem à Otan, Rússia colocou na agenda de debates internacionais o tema da “segurança”, ou melhor, da “indivisibilidade da segurança”. Este conceito foi cunhado muito antes do atual conflito. E não pela Rússia. Surgiu no marco da atuação da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), a maior organização intergovernamental regional voltada para a segurança do mundo, segundo a sua própria definição. 

Com status de observador nas Nações Unidas e secretariado em Viena, a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) foi criada em Helsinki, Finlândia, em 1975, em plena Guerra fria, como foro multilateral para o diálogo e a negociação entre o Leste e o Oeste. A Ata Final da reunião define o compromisso dos chefes de governo dos países signatários de construir a paz e a cooperação reconhecendo o caráter indivisível da segurança na Europa[7]. Ou seja, tanto os líderes do Ocidente quanto os do espaço soviético coincidiam em que só era possível falar em “segurança” quando todos os Estados membros se sentissem seguros. Portanto, esse equilíbrio era vital para a preservação da paz e da própria segurança coletiva. A União Soviética foi um dos signatários do documento final, assim como Estados Unidos, Reino Unido, França, entre outros. 

Até 1990, a CSCE funcionou sem uma estrutura formal, com conferências dos Estados-membros. Mas com o fim da Guerra Fria, a situação na Europa mudou e também o fez a CSCE. A partir de novembro de 1990, durante o encontro de cúpula realizado em Paris, convocado para aprovar a reunificação alemã e, sobretudo depois do fim da União Soviética, a organização entrou num processo de reorganização. O seu foco já não era o diálogo e a cooperação Leste-Oeste, mas outros assuntos relativos à segurança, como o controle de armas e o terrorismo. 

Em 1992, a organização adotou instituições permanentes e começou a desenvolver capacidades operativas. E, em 1994, mudou o nome para Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). A Rússia substituiu a URSS na organização, que hoje conta com 57 países membros, a maioria da Europa, mas também alguns da Ásia, além da participação dos Estados Unidos e do Canadá. Nela têm assento tanto países da Europa ocidental, membros da Otan, quanto a Rússia, portanto, é um espaço adequado ao diálogo e às negociações diplomáticas, inclusive em relação aos temas que poderiam gerar desconfianças mútuas.

Mesmo com todas as mudanças, o conceito de indivisibilidade da segurança continuou a fazer parte dos compromissos dos membros da OSCE e manteve-se nos seus documentos.  O secretário-geral da organização, o diplomata e juiz francês Marc Perrin de Brichambaut (2005-2011), lembrou disso em um seminário realizado na Academia Diplomática de Viena, em 4 de fevereiro de 2010. 

Organizado pela Escola de Defesa da Otan (NATO Defense College)[8], o evento tinha por tema, justamente, “A Indivisibilidade da segurança Euro-Atlântica”. Na palestra, Brichambaut afirmou que na história da CSCE e da OSCE, a “indivisibilidade da segurança” fora concebida como um conceito interligado a outros dois: a “segurança cooperativa”, que como o nome diz, refere-se à necessidade de cooperação entre os Estados, e a “segurança compreensiva”, que inclui dimensões amplas, desde político-militares, econômicas e ambientais até aspectos sociais, todos igualmente importantes para a segurança. Lembrou que na Ata Final de Helsinque, os Estados participantes reconheceram a indivisibilidade da segurança na Europa e que, ao longo da história da CSCE, isso implicava que a segurança de cada Estado estava indissociavelmente ligada à segurança de todos os outros. “Ou seja: a cooperação é benéfica para todos os Estados participantes, enquanto a insegurança em ou de um Estado-membro pode afetar o bem-estar de todos”, afirmou.

O secretário-geral da OSCE foi ainda mais enfático. Ele disse que  

Estes três conceitos têm sido reiterados, em conjunto, pelos Estados-membros ao longo do tempo. Em 1990, a Carta de Paris para uma Nova Europa declarou que “a segurança é indivisível e a segurança de cada Estado participante está inseparavelmente ligada à de todos os outros”. A Carta para Segurança Europeia, assinada em 1999 em Istambul[9], foi concebida expressamente para contribuir na formação de um espaço de segurança comum e indivisível na área da OSCE. (…) E a Estratégia de Maastricht, de 2003, para abordar as ameaças à segurança no século XXI confirmou que a definição feita pela OSCE “da indivisibilidade da segurança como conceito multidimensional, abrangente e cooperativo” era adequada para enfrentar os desafios de segurança do novo século.[10] 

Na palestra, Brichambaut perguntou: “se a importância desse conceito foi ratificada tantas vezes, qual a razão de ter que estar a discuti-lo novamente?” Ele  mesmo respondeu: era necessário discutir o conceito à luz da ampliação da Otan e da União Europeia. Estariam estes dois processos a colocar em risco o conceito tão defendido ao longo do tempo pela OSCE da “indivisibilidade da segurança”? 

Na sua condição de secretário-geral da OSCE, era previsível que Brichambaut não ia criticar abertamente a expansão da Otan. Mas ele reconheceu que as diferentes interpretações sobre o conceito de “indivisibilidade da segurança” provocaram a fragmentação da organizacão. Por isso, disse, “não podemos ter medo de um debate honesto a respeito”.  E concluiu, afirmando que esse debate era necessário para reconstruir a “confiança mútua entre os membros”.[11] A advertência era clara e direta: as reivindicações russas deviam ser ouvidas e respeitadas, para que Moscou pudesse confiar que os planos da Otan não representavam nenhuma ameaça para a segurança da Rússia. 

A primeira vez que o presidente Putin expressou abertamente os seus temores em relação ao tema foi na Conferência sobre Segurança na Europa, de 2007, realizada em Munique. No seu discurso, Putin lembrou que “a segurança internacional compreende muito mais do que questões relacionadas com a estabilidade militar e política, envolve a estabilidade da economia global, a superação da pobreza, a segurança econômica e o estabelecimento de um diálogo entre civilizações”[12]. E citou o presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, quando no momento em que a Segunda Guerra Mundial eclodia, advertiu: “se a paz é quebrada em algum lugar, a paz de todos os países, em qualquer local, estará em perigo”.  E acrescentou: “estou convencido de que chegamos a um momento decisivo em que devemos pensar seriamente na arquitetura da segurança global. Devemos continuar buscando um equilíbrio razoável entre os interesses de todos os participantes da comunidade internacional.”[13]

Lamentavelmente, essa negociação em relação a uma nova arquitetura da segurança global que procurasse o equilíbrio, a segurança, de todos os membros da comunidade internacional não aconteceu.

Nesse contexto, além da expansão da Otan, outros temas passaram a orbitar em relação à questão da indivisibilidade da segurança. Um deles é a retirada dos Estados Unidos de tratados que controlavam a proliferação de armas de agressão e ataque. É o caso do Tratado Antimísseis Balísticos (TAB, ou Anti-Ballistic Missile Treaty-ABM, em inglês), firmado entre Washington e Moscou, em 1972, do qual os Estados Unidos retiraram-se em 2002, alegando ser uma relíquia da Guerra Fria.

O então presidente George W. Bush e outros altos funcionários norte-americanos,  já envolvidos na guerra do Afeganistão, consideravam o tratado como o único obstáculo para levar adiante uma das suas prioridades: a construção de um sistema de defesa antimíssil. Após ter sido a “pedra angular da estabilidade estratégica” na Guerra fria, porque facilitou acordos posteriores que limitaram e reduziram os arsenais nucleares estratégicos dos EUA e da Rússia, a saída de Washington do tratado rompeu outro marco legal que respaldava a “indivisibilidade da segurança”. Como resposta, a Rússia passou a se considerar livre dos compromissos de continuar em outras iniciativas de controle de armamentos. A corrida armamentista entrou numa espiral perigosa da qual hoje se observam nitidamente os riscos e as consequências.[14]   

Não é possível alegar que os Estados Unidos e a Otan desconheciam os riscos de continuar a fazer caso omisso das reivindicações da Rússia em relação à necessidade de uma negociação sobre a segurança na Europa. Como vimos, desde a palestra de Putin em Munique, em 2007 a Rússia vinha demandando aos EUA e à Otan uma discussão conjunta sobre a “indivisibilidade da segurança”.  

O próprio secretário da OSCE, em 2010, já tinha insistido na necessidade de implementar esse diálogo. E a se somaram muitas outras vozes. Lembremos da famosa afirmação de Henry Kissinger, em 2014, depois dos trágicos acontecimentos que resultaram no golpe de Estado e deposição do presidente Viktor Yanukovych. “Ukraine should not join NATO” (Ucrânia não deve integrar-se na Otan)[15]  Essa reivindicação russa se tornou mais enfática desde que a adesão à Otan se consagrou na Constituição ucraniana. Em 7 de fevereiro de 2019, o Parlamento ucraniano adotou, com 335 votos a favor (de um total de 450), mudanças na Constituição, reafirmando, já no preâmbulo, “a identidade europeia do povo ucraniano e a irreversibilidade do curso europeu e euro-atlântico da Ucrânia”. No parágrafo 5 do artigo 85 agora se afirma que o Parlamento deve implementar “o curso estratégico do Estado rumo à plena adesão da Ucrânia à União Europeia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte”. E o artigo 102 define que o Presidente é “o garantidor da implementação do curso estratégico do Estado para a plena adesão da Ucrânia à União Europeia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte”.

Estas mudanças na Constituição da Ucrânia e o fato de a Otan ter definido, na declaração de Bruxelas de 2021, que a Geórgia e a Ucrânia foram acolhidas como aspirantes oficiais a integrarem a organização, levaram Moscou a explicitar que, se Washington e a Otan se recusassem a assinar um tratado com a Rússia sobre segurança na Europa com um compromisso explícito em relação à não incorporação da Ucrânia na Otan, a segurança do território russo estaria em risco.[16] Essa era a principal exigência de Moscou para uma solução diplomática às tensões na Ucrânia, além da implementação dos acordos de Minsk.

Como é sabido, o Tratado de Minsk foi assinado na cidade do mesmo nome, capital da Bielorrúsia,  em 5 de setembro de 2014, por representantes da Ucrânia, da Rússia e das regiões secessionistas da região do Donbass, ou seja, Donetsk (República Popular de Donetsk — DNR), e Lugansk (República Popular de Lugansk —LNR). O objetivo era pôr fim ao conflito no leste da Ucrânia.

As cláusulas do acordo foram formuladas pelo Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por representantes de Ucrânia, Rússia e OSCE e foi endossado pelo Conselho de Segurança da ONU. Apesar de o seu objetivo ter sido dar fim aos enfrentamentos entre forças do governo e forças separatistas no leste da Ucrânia, o acordo não chegou a ser implementado e os combates na Ucrânia oriental continuaram. 

A não implementação dos acordos deveu-se, principalmente, à falta de vontade demonstrada pelo governo de Kiev de reconhecer a autonomia da região do Donbass — a implementação da “Lei sobre o Estatuto Especial dos Oblasts (regiões) de Donetsk e Lugansk” — alegando discrepâncias com relação ao tema das fronteiras a serem reconhecidas. Como consequência, o conflito continuou na região, mesmo esquecido pela grande imprensa e pelos principais líderes europeus. Mas organizações de direitos humanos como Amnesty International estimam que de 2014 até fevereiro deste ano, mais de 14 mil pessoas morreram na região do conflito.

 

Os motivos mais profundos da crise: a aliança estratégica China-Rússia 

Vivemos um período conturbado. Qual é a dimensão das transformações em curso e em que direção elas apontam somente os historiadores do futuro poderão descifrar. Mas já é possível afirmar que o conflito atual na Ucrânia está inserido num cenário geopolítico cuja análise é imprescindível para interpretar as suas causas mais profundas e para tentar imaginar saídas. 

Esse conflito é uma das expressões de uma disputa de poder em que uma potência hegemônica, os Estados Unidos, reage aos desafios que lhe são colocados (ou ela interpreta como sendo colocados) por potências emergentes.

Com o término da Guerra Fria e o desmembramento da União Soviética, a nova conformação política internacional indicava o surgimento de um mundo unipolar, com os Estados Unidos como potência hegemônica, seria o “fim da história”, a vitória definitiva do capitalismo na sua versão neoliberal, sobre o socialismo. 

Alguns analistas afirmam hoje que o drama de uma nova guerra em solo europeu é a pior tragédia que se abateu sobre o mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Ao fazê-lo “esquecem” que, como potência hegemônica, com o espaço pós-soviético mergulhado em profunda crise, menos de um mês depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, George Bush declarou a “guerra ao terror” e introduziu o conceito de “ataque preventivo”. 

A partir de então, os Estados Unidos poderiam intervir (e o fizeram!) em qualquer ocasião que presumidamente a sua segurança estivesse ameaçada. A que passou a ser chamada de “Doutrina Bush”, sustentava, assim, a legitimidade do ataque preventivo norte-americano e desenvolvia a ideia de que “quem não está conosco, está contra nós”. 

George Bush estava deixando de lado algumas das tradições da política externa americana, como a Doutrina Truman (de contenção ao comunismo)[17] e a Doutrina Reagan (de “apoio aos combatentes da liberdade”), nas quais pelo menos no discurso, a iniciativa do ataque não correspondia ao governo norte-americano, ele só reagia à intervenção iniciada por algum outro ator.  

A Doutrina Bush aprofundou a prática do desrespeito à Carta das Nações Unidas, para abraçar, decisivamente, a iniciativa da intervenção militar unilateral, sem consentimento do Conselho de Segurança. O arcabouço jurídico que emergiu da Segunda Guerra Mundial, com a Organização das Nações Unidas como expressão mais refinada, foi sendo progressivamente minado até cair no descrédito quase completo. Nesse contexto encaixam as várias guerras do século 21, nas quais o principal pretexto foi a guerra ao terror.

Citemos as intervenções “preventivas” dos Estados Unidos e seus aliados da Otan no Afeganistão (sem nenhuma evidência em relação às responsabilidades do 11 de setembro), Iraque, Líbia, Síria, às quais somam-se “proxi wars” (guerras por procuração), nas quais Estados Unidos treina mercenários, fornece armamento e informações dos seus serviços de inteligência, oferece o conglomerado mediático ao seu serviço para mascarar ou mesmo omitir as graves violações aos direitos humanos, etc, como bem sabem os palestinos, os iemenitas, os sudaneses, os somalis, malienses e tantos outros povos do mundo. 

Sem abandonar por completo esses objetivos, as prioridades da estratégia de segurança dos Estados Unidos começaram a mudar na administração Obama (2009-2017) quando surge o conceito de “Reequilíbrio Estratégico” (Strategic Rebalancing ou Strategic Pivot). Esse reequilíbrio de forças exigia a redução progressiva dos destacamentos militares no Iraque e no Afeganistão, para permitir o aumento da presença na região da Ásia-Pacífico. 

O combate ao terrorismo devia ceder lugar à contenção da China. (Isso não impediu que o balanço dos dois mandatos de Barack Obama tenha sido um dos mais sangrentos para o Sul Global, em particular para o Oriente Médio.) A busca do “reequilíbrio estratégico” demonstrava que o establishment norte-americano estava atento às mudanças de cenário. No início do século 21, o principal eixo da dinâmica transformadora estava se deslocando para o Oriente, projetando o surgimento de um mundo multipolar, com Rússia e China como atores de destaque. Ambas as nações estavam definindo uma ambiciosa associação política, econômica, tecnológica, diplomática e até mesmo militar, com importantes projeções na Eurásia. 

Concomitantemente, vários indicadores permitiam constatar um declínio progressivo do Ocidente. Isso significava que a ordem internacional delineada após o fim da Segunda Guerra Mundial, com as instituições de Bretton Woods como ferramentas-chave e a superioridade dos Estados Unidos alicerçada no tripé economia, tecnologia, poder militar, estava sendo confrontada.

Em relação à economia, por exemplo, o próprio Fundo Monetário Internacional reconheceu, no início de 2020, que o PIB da China em Paridade de Poder de Compra (PPC) era 37% maior do que o dos EUA. A importância de se utilizar a Paridade em Poder de Compra reside no fato de esse indicador retirar distorções — diferentes taxas de câmbio, custo de vida, etc — permitindo comparar duas economias aferindo adequadamente a capacidade produtiva real de cada uma. 

No campo da tecnologia e da pesquisa, também a China tem avançado  rapidamente. No artigo “The decline of US power and the future of conflict management after Covid”[18], publicado em 2020, Stergios Skaperdas, professor de Economia da Universidade de Califórnia, afirma que o Índice da Natureza (natureindex.com), que leva em consideração apenas artigos publicados nas revistas científicas mais prestigiosas, mostrou um avanço muito rápido da produtividade científica da China: em 2012, ela era de 24% da produtividade dos EUA, mas em 2019 já era de 67%. “Este é provavelmente um nível muito melhor do que a União Soviética jamais alcançou em relação aos EUA”, acrescenta. E arrisca dizer que “em disciplinas como a informática e a Inteligência Artificial, a China ocupa provavelmente um lugar ainda melhor”. 

Se pensarmos no ambicioso projeto “Cinturão e Estrada”, ou “As Novas Rotas da Seda”, como prefere chamá-lo a imprensa ocidental, a China mostra a sua capacidade de desenhar, produzir e financiar projetos que implicam o domínio de tecnologias sofisticadas, implementadas em larga escala, em diversos contextos sociais e geográficos. Com esse projeto, a China lidera o investimento estrangeiro, apoiada no fato de os três bancos mais importantes do mundo serem chineses.

No plano doméstico, a China também tem atingido metas ambiciosas, em primeiro lugar, a eliminação da pobreza extrema.  Em fevereiro de 2021, o presidente chinês Xi Jinping anunciou que seu país conseguiu, no período de oito anos, erradicar a pobreza extrema. “É uma vitória completa que entrará para a história. De acordo com os critérios atuais, toda a população rural pobre de 98,99 milhões foi retirada da pobreza”, afirmou. A erradicação da pobreza extrema em 2021 era uma das metas do projeto chamado “Iniciativa Global China 2049”. Através do planejamento estratégico, esse plano define objetivos para diferentes setores e deve estar completo em 2049, quando o país comemorará o centenário da revolução liderada por Mao. 

Leia também:
China atinge meta da ONU de erradicação da pobreza 10 anos antes do prazo de 2030 

Vimos os avanços da China no terreno econômico e tecnológico. No plano militar, os EUA têm mantido sua superioridade no mar, terra e ar, em todo o mundo. Mas, alguns elementos relativizam essa primazia. Mesmo se for possível prescindir dos “efeitos colaterais” das intervenções dos Estados Unidos nas primeiras duas décadas do século 21, os resultados militares inclinam-se mais para fracassos do que para vitórias. 

Foi caótica e vergonhosa a retirada do Afeganistão, um desastre a intervenção no Iraque, limitados os resultados na Síria, completa a desagregação gerada na Líbia, com reflexos desestabilizadores em toda a região do Sahel e além, sem mencionar os custos futuros, pelos ressentimentos gerados.

Enquanto isso, na Eurásia há um processo em curso, muito potente, de integração econômica, liderado pela China, com desdobramentos políticos e mesmo militares. A Organização de Cooperação de Xangai, a União Econômica Eurasiática, outras iniciativas como o Fórum Econômico Oriental, somadas ao projeto Cinturão e Estrada, estão dinamizando o comércio intra-asiático, viabilizando projetos no campo da energia, infraestrutura, comunicações, tecnologia, inclusive militar, e estão mudando rapidamente toda a região. 

Nesse contexto, deve ser analisada a crescente cooperação entre Rússia e China, fortalecida ano a ano desde o início do século 21. Comércio bilateral em expansão, acordos de envergadura assinados em áreas estratégicas, como energia e segurança, são alguns dos resultados tangíveis dessa parceria. O ponto de inflexão das relações bilaterais entre os países foram os exercícios militares realizados no marco da “Missão de Paz 2005” e a Declaração Conjunta China-Rússia para o século 21 (“World Order in the 21st Century”), assinada em Moscou em julho de 2005, durante as celebrações do 60º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial. 

Interpretada como uma clara reação à Doutrina Bush, a declaração advertia que Moscou e Pequim rejeitariam qualquer tentativa de intromissão na região de parte de “forças estrangeiras” e se oporiam a toda imposição de “modelos de desenvolvimento políticos e sociais desde o exterior”.  Um novo patamar nas relações bilaterais foi estabelecido desde 2013, quando Xi Jinping assumiu a presidência da China, consolidando inclusive um sólido relacionamento pessoal com o presidente Vladimir Putin. 

As seguintes declarações conjuntas passaram a definir as relações entre ambos os países como sendo de uma “parceria estratégica”. A mais recente declaração China-Rússia, significativamente entitulada “Entrando numa nova era”, foi divulgada em fevereiro deste ano, durante a visita do presidente Putin a Pequim, por ocasião das Olimpíadas de Inverno.

 Nela, Rússia e China reafirmam a sua rejeição às “Revoluções Coloridas”, aludindo às manifestações acontecidas em diversos países com financiamento dos serviços secretos ocidentais, como parte da chamada “guerra híbrida”[19][20]  

De forma ainda mais direta, se pensamos no conflito na Ucrânia que eclodiria poucos dias depois, o documento também diz que a China “é solidária e apoia as propostas apresentadas pela Federação Russa no sentido de criar garantias de segurança juridicamente coercitivas a longo prazo na Europa”. Uma afirmação como esta, num documento emitido no passado 4 de fevereiro, não deixa dúvidas em relação à convergência da análise sobre os riscos no cenário europeu entre a Rússia e a China.

De seu lado, a Rússia é solidária com as angústias chinesas em relação à segurança na região do Pacífico. O documento diz que Rússia e China “opõem-se à formação de blocos fechados na região da Ásia-Pacífico” e permanecem vigilantes quanto ao “impacto negativo” da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos para a paz e a estabilidade da região . E acrescenta ainda que a  Rússia e a China têm feito “esforços consistentes” para construir um sistema de segurança “equitativo, aberto e inclusivo na região da Ásia-Pacífico (RPA)”, procurando promover a paz, a estabilidade e a prosperidade. Finalmente, é importante destacar que em todas as declarações recentes a China e a Rússia defendem um mundo multipolar, sem poderes hegemônicos.  

A leitura do cenário a partir do establishment norte-americano

Com esse pano de fundo, é importante analisar alguns documentos elaborados e divulgados nos Estados Unidos nos últimos anos. Um deles é da Rand Corporation,  “War with China. Thinking Through the Unthinkable” (Guerra com a China. Pensando o impensável), de 2016.[21]  A Rand Corporation  é um think tank de pesquisa e estudo da política internacional, criado em 1945 para elaborar análises para o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, contribuindo com a tomada de decisões e a implementações políticas tanto no setor público como privado. 

Como o próprio nome do documento exemplifica, trata-se de estudos das condições que poderiam levar aos Estados Unidos a uma guerra com a China e quais os custos e desfechos possíveis desse confronto para cada país. Uma das conclusões é que, mesmo que “uma guerra longa e feroz” com a China possa ser previsível, nada aponta para uma vitória chinesa, apesar de os custos estimados serem importantes para ambos lados. 

Outro documento a ser estudado é a Estratégia Nacional de Defesa (NDS) de 2018, dos Estados Unidos, que foi liberado para acesso público somente um resumo. Esse documento, produzido durante a administração Trump, dá continuidade à guinada estratégica da administração Obama e afirma que, após quase duas décadas de combate aos terroristas e insurgentes islâmicos, incluindo as guerras no Afeganistão e no Iraque, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos muda suas prioridades. 

“A competição estratégica interestatal, e não o terrorismo, é agora a principal preocupação para a segurança nacional dos Estados Unidos”, diz o documento. E acrescenta que “hoje, todo domínio é disputado — ar, terra, mar, espaço e ciberespaço”, citando nominalmente a China e a Rússia como os principais desafios para os EUA. Três são as principais medidas que a Estratégia Nacional de Defesa de 2018 define para enfrentar o novo cenário: uma “Força Conjunta mais letal, resiliente, rápida e inovadora,  uma sólida constelação de aliados e parceiros, capazes de sustentar a influência americana para assegurar o equilíbrio de poder favorável”, e um Pentágono mais eficiente.

Outros dois documentos recentes completam a visão geral dos Estados Unidos sobre o cenário atual. O primeiro é chamado “Orientação Estratégica Provisória de Segurança Nacional” (Interim National Security Strategic Guidance)[22], publicado em março de 2021, pela Casa Branca, com introdução assinada pelo presidente Joe Biden. Sob o título “O cenário da Segurança Global”, o texto afirma que não se pode fingir que é possível restaurar o mundo “da maneira como era e 75, 30, ou mesmo quatro anos atrás”. Daí a necessidade de traçar, tanto na política de segurança externa como na
doméstica “um novo rumo”. Segundo a Casa Branca:  

Devemos enfrentar a realidade de que a distribuição do poder no mundo está mudando, criando novas ameaças. A China, em particular, tornou-se rapidamente mais determinada. Ela é o único adversário capaz de combinar poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para lançar um desafio sustentado a um sistema internacional estável e aberto. A Rússia continua determinada a aumentar sua influência global e a desempenhar um papel destrutivo no cenário mundial. Tanto Pequim quanto Moscou investiram fortemente nos esforços destinados a estudar quais são os pontos fortes dos EUA para nos impedir de defender nossos interesses e dos nossos aliados em todo o mundo. [23]

De um documento vasto como esse, neste espaço só é possível mencionar alguns trechos significativos. Por exemplo, a afirmação de que para “promover uma distribuição favorável do poder e dissuadir e prevenir ameaças dos adversários dos Estados Unidos”, é necessário “inibir a eles o acesso aos bens comuns e às regiões-chave”. E essa região chave é a Eurásia.

Por último, citemos o documento “Nova Competição entre as Grandes Potências: Implicações para a Defesa – Questões para o Congresso” (Renewed Great Power Competition: Implications for Defense—Issues for Congress)[24], elaborado pelo Congressional Research Service, encarregado de preparar documentação de base para os debates da casa. Publicado recentemente, em 10 de março deste ano,  partindo das avaliações do documento da Casa Branca citado acima (Interim National Security Strategic Guidance), ele tem por objetivo dar subsídios para a análise da proposta orçamentária do presidente Joe Biden no terreno militar. 

No resumo inicial, se afirma que “a emergência de uma grande disputa de poder com a China e a Rússia alterou profundamente o debate sobre questões de defesa dos EUA em relação aos enfoques da era pós-Guerra Fria”. Reiterando documentos anteriores, as operações antiterroristas e as operações militares dos Estados Unidos no Médio Oriente são definidas como não prioritárias. A ênfase passa a estar nos aspectos relacionados com China e Rússia. Ou seja, “a prioridade adquirida pela grande disputa de poder orientará todas as discussões sobre defesa provocando, inclusive, mudanças organizacionais em diferentes níveis”. Prevem-se mudanças, por exemplo, no Departamento de Defesa, no controle das armas nucleares, nas capacidades militares dos EUA e dos aliados na região Indo-Pacífico e nas capacidades militares da Otan na Europa.

Na era pós-Guerra Fria, iniciada nos anos 1990, diz o documento, “o mundo mostrava-se unipolar (com os Estados Unidos como o centro desse poder unipolar); mas essa conformação foi mudando a partir de 2006-2008, e em 2014 já tinha dado lugar a um cenário diferente, no qual China e Rússia desafiavam os Estados Unidos e a ordem mundial por eles liderada”.[25] Evidência desse desafio é “o aumento da parceria estratégica entre a China e a Rússia, particularmente desde o início de 2022, em decorrência da invasão da Rússia em várias partes da Ucrânia”.[26] Fazendo eco da afirmação do documento da Casa Branca de 2021, que assinala que é necessário inibir o acesso da Rússia e da China “aos bens comuns e às regiões-chave”, o Renewed Great Power Competition: Implications for Defense—Issues for Congress afirma o seguinte: 

A partir da perspectiva americana sobre grande estratégia e geopolítica, constata-se que a maioria das pessoas, recursos e atividade econômica do mundo estão localizados não no Hemisfério Ocidental, mas no outro hemisfério, particularmente na Eurásia. Em resposta a esta característica básica da geografia mundial, os responsáveis políticos dos EUA nas últimas décadas optaram por perseguir, como elemento-chave da estratégia nacional dos EUA, o objetivo de evitar o surgimento de hegemonias regionais na Eurásia. [27]

É interessante o trecho a seguir:  

O objetivo dos EUA de evitar o aparecimento de hegemonias regionais na Eurásia, embora há muito tempo de pé, não é cláusula pétrea — é uma escolha política que reflete duas avaliações:
1. que, dada a quantidade de pessoas, recursos e atividade econômica na Eurásia, um poder hegemônico regional na Eurásia representaria uma concentração de poder suficientemente grande como para ameaçar interesses vitais dos EUA.
2. que a Eurásia não tem autocontrole confiável capaz de impedir o aparecimento de potências hegemônicas regionais. Isso significa que não se pode contar com os países da Eurásia para barrar, através das suas próprias ações, o aparecimento de hegemonias regionais, e por isso eles podem necessitar da assistência de um ou mais países fora da Eurásia para enfrentar de forma eficaz este perigo. [28]

É interessante fazermos uma comparação entre a afirmação, pelos Estados Unidos, em 2022, que na Eurásia os países “não têm autocontrole” e a necessitam de assistência e a afirmação feita, na Conferência de Versalhes, em 1919-20, um século antes, onde foram definidos os rumos do pós-guerra, de que os países da Ásia e da África não tinham maturidade para se autogovernarem e então as colônias não podiam obter a independência, deviam ser submetidas à “proteção” (dos países vitoriosos na guerra, claro)…

O objetivo de evitar o surgimento de “poderes hegemônicos regionais na Eurásia” exige dos Estados Unidos, segundo o documento, a incorporação de “elementos de força, capazes de permitir deslocamentos a través de grandes extensões de espaço marítimo e aéreo, e de desenvolver operações de larga escala na Eurásia ou nas águas e no espaço aéreo que a circundam”.[29]

Que nos dizem estes documentos? Há muitas interpretações e reflexões possíveis, mas nenhuma delas permite entender que os Estados Unidos estão resignados a deixarem de ser o centro de poder de um mundo unipolar. Já não se trata, como na Guerra Fria, de um confronto ideológico que, obviamente, também continha uma disputa de poder. Hoje, temos uma disputa de poder entre grandes potências. E mesmo que existam diferenças em relação à situação que arrastrou o mundo para a Primeira Guerra Mundial, é possível traçar alguns paralelos, sobretudo no que diz respeito ao que foi chamado de “paz armada”. 

Assim como o atentado de 28 de junho de 1914, em Sarajevo, contra o herdeiro do império austro-húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando, acabou por tornar-se o estopim da “Grande Guerra”, qualquer evento fora de controle hoje na Ucrânia pode derivar num conflito de outras proporções.

Uma triste leitura do cenário atual seria constatar que a Otan não agiu para prevenir a guerra na Ucrânia porque na grande disputa de poder, tão estudada pelos estrategistas dos Estados Unidos, o desgaste e o enfraquecimento da Rússia é útil para esgarçar a aliança estratégica com a China; seria a primeira etapa do enfrentamento com a própria China, tida como o inimigo principal. Nessa leitura, Ucrânia e os ucranianos seriam um “efeito colateral” como antes foram efeitos colaterais outros tantos povos e países imolados no altar da luta pela supremacia, conquistada pelo poder das armas.  

Uma negociação global

De fato, esta guerra em solo europeu encaixa no projeto das sucessivas administrações dos Estados Unidos nas duas últimas décadas, de enfrentar a Rússia e a China, definindo os dois países não só como adversários, mas como inimigos a ser derrotados. 

Não há nenhuma menção nos documentos sobre segurança elaborados pelos Estados Unidos à aceitação de um mundo multipolar, com responsabilidades compartilhadas. O establishment norte-americano enfatiza nos seus documentos a preparação para a guerra, porque entende ser necessário para seus interesses estratégicos impedir que a Eurásia, com o seu peso demográfico, a sua riqueza energética, suas terras raras e outros minérios imprescindíveis para as tecnologias de última geração, possa dispor dessas riquezas segundo seus próprios interesses. 

O mais desafiador, por isso mesmo, é o silêncio europeu. Os Estados Unidos usam a Europa como espaço de confronto para preservar seus interesses estratégicos, e os líderes europeus concordam com isso ou, se não concordam, não encontram condições de se manifestarem. Outros estudiosos já mencionaram que essa postura só fala da carência de estadistas europeus neste momento. Há uma resignação a um papel subserviente, mesmo a um preço muito alto. Em breve esse preço será cobrado.

Por outro lado, a máquina de propaganda e desinformação, somadas às sequelas ainda não debeladas da pandemia, dificultam a reação mais enérgica das massas populares. Há muito tempo que se aposta na chamada “guerra cognitiva”, antes chamada de conquista dos corações e mentes, só que hoje trata-se de guerra travada com um sofisticadíssimo arsenal tecnológico. Diante da tragédia que já está em curso e das que poderão vir, a sociedade civil permanece majoritariamente à margem, mesmo com importantes e honrosas exceções.

Uma conclusão inicial de toda a análise do tema é que as causas mais profundas deste conflito não serão solucionadas com uma negociação entre Rússia e Ucrânia. O diálogo tem que envolver os verdadeiros agentes; não podem ficar ausentes a Otan e os Estados Unidos. Na verdade, não se trata de negociar o tema da Ucrânia, ou pelo menos a negociação não pode se esgotar aí. É necessária uma negociação sobre novas condições de segurança global, porque o mundo efetivamente mudou. E os instrumentos forjados no fim da Segunda Guerra e os subsequentes não estão dando conta dos desafios.

Veja também:

Notas:

[1]    “O Ocidente quis a guerra”, de David Mandel, publicado na revista virtual “Outras Palavras”, em 10/03/2022: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ucrania-o-ocidente-quis-a-guerra/

[2]      “O Ocidente quis a guerra”, de David Mandel, publicado na revista virtual “Outras Palavras”, em 10/03/2022: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ucrania-o-ocidente-quis-a-guerra/

[3]    National Security Arquive, da Gelman Library, Universidade George Washington –

 –  https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early)

[4]  Ver o artigo “Power and World Order”, do Prodessor Hans Köchler, publicado no  “Current Concerns” de Fevereiro de 2022, ISSN 1664-7963 (Website: www.currentconcerns.ch) O citado artigo % da Carta constitutiva da OTAN define a missão da organização como sendo a defesa coletiva, caráter defensivo, no espírito do artigo 51 da Carta da ONU.

 [5]      A incorporação destes países à Organização do Tratado do Atlântico Norte permitiu que a organização militar de Ocidente passasse a utilizar um leque de bases militares que foram adaptadas para novos fins, muitas das quais faziam parte do sistema de defesa coordenado pela União Soviética. Na Hungria, por exemplo, a OTAN hoje dispõe da base área Pápa (Pápa Air Base); Na Polônia, a Base Aérea Łas; na Bulgária, bases como a Novo Selo Range agora estão disponíveis para uso da OTAN e o mesmo acontece na Estônia, onde a base aérea Ämari passou a ser usada pela OTAN. No caso da Romênia, na base situada em Deveselu a OTAN instalou um sistema de defesa 

[6] Ver o artigo 69 da declaração de Bruxelas (https://www.nato.int/cps/en/natohq/news_185000.htm) : “69. We reiterate the decision made at the 2008 Bucharest Summit that Ukraine will become a member of the Alliance with the Membership Action Plan (MAP) as an integral part of the process; we reaffirm all elements of that decision, as well as subsequent decisions, including that each partner will be judged on its own merits.  We stand firm in our support for Ukraine’s right to decide its own future and foreign policy course free from outside interference.  The Annual National Programmes under the NATO-Ukraine Commission (NUC) remain the mechanism by which Ukraine takes forward the reforms pertaining to its aspiration for NATO membership.  Ukraine should make full use of all instruments available under the NUC to reach its objective of implementing NATO principles and standards. 

[10]                Ídem.

[11] Curiosamente, Brichambaut foi eleito juiz do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia em 2014, cargo que exerce até hoje, onde eventualmente poderia vir a julgar Putin, se a iniciativa do presidente ucraniano Volodymyr Zelenski de solicitar a esse Tribunal uma investigação contra a Rússia for atendida e a corte abrir um processo.

[12]                http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034

[13]                Ídem

[14]   John Rhinelander, assessor do Presidente Nixon e membro da delegação dos EUA que negociou o TAB, considerou a decisão da administração Bush de se retirar do tratado um “golpe fatal” para outros acordos, em particular para o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, fato que poderia levar o mundo a uma situação em que não haveria limites legais à proliferação de armas nucleares.

[15]                Henry Kissinger: To settle the Ukraine crisis, start at the end – https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html (March 15, 2014)

[16]                Ver os documentos vazados pelo jornal espanhol El País em 2 de fevereiro deste ano: um deles dos Estados Unidos, “Non-PaperConfidential/Rel Russia”, e outro da Organização do Tratado do Atlântico Norte, “NATO-Russia Restricted”: https://static.poder360.com.br/2022/02/resposta-EUA-Otan.pdf

 

[17]             A doutrina Truman foi delineada num discurso do Presidente ao Congresso, em março de 1947, já no marco da Guerra Fria, no qual ele afirmou: As Nações Unidas foram concebidas para tornar possível a liberdade e a independência duradouras para todos os seus membros. Não seremos capazes de realizar os nossos objetivos, entretanto, a menos que estejamos dispostos a ajudar os povos livres a manter suas instituições livres e sua integridade territorial contra agressões que procuram impor-lhes regimes totalitários. Isto não é mais que um reconhecimento de que os regimes totalitários impostos aos povos livres, por agressão direta ou indireta, minam os fundamentos da paz internacional e, portanto, a segurança dos Estados Unidos. Ver: https://www.britannica.com/event/Truman-Doctrine

[18]         Ver: Peace economics, peace science and public policy. – Berlin : De Gruyter, ISSN 1554-8597, ZDB-ID 2133452-3. – Vol. 26.2020, 3, p. 1-7  ou   https://www.economics.uci.edu/research/wp/1920/19-20-08.pdf

[19]          

[20]             Ídem.

[21]             https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR1140.html

[22] Interim National Security Strategic Guidance – https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2021/03/NSC-1v2.pdf

[23]             Ídem

[24]             https://sgp.fas.org/crs/natsec/R43838.pdf

[25] Renewed Great Power Competition: Implications for Defense—Issues for Congress. Introduction/ Background/ Shift to Renewed Great Power Competition / Overwiew . Pg. 1

[26]             Ídem

[27] Renewed Great Power Competition: Implications for Defense—Issues for Congress, pag 1 Introduction/ Background/ Shift to Renewed Great Power Competition / Overwiew .Pg 4 – 5

[28]             Ídem. P, 5

[29]Renewed Great Power Competition: Implications for Defense—Issues for Congress, pag 2 Summary.


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Beatriz Bissio

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