Usa-se a expressão “gato por lebre” para significar um engano deliberado, uma armadilha destinada a fazer-nos consentir uma coisa pela outra, à modo de burla, valendo-se de nossa boa-fé, ingenuidade, falta de domínio do tema ou simples credulidade.
A expressão não é nova, nem é peruana. Se usava no tempo medieval, e precisamente com esse propósito. Quando se oferecia ao comensal um rico guisado de coelho e se servia um fricassê de gato. A semelhança de uma carne com a outra, e as habilidades do cozinheiro, facilitavam a tarefa.
Acontece, no entanto, que a expressão se generalizou e hoje não se circunscreve a práticas gastronômicas. Também aparece no âmbito político, quando alguém usa algo ilícito, para entregar, de contrabando, o oposto. Vejamos.
Desde que se falou do tema da “Vacância Presidencial”, idealizado como um método rápido para derrubar o Presidente Castillo, se cunhou uma frase que a justificava, e se assegurou que ela estava incluída na Constituição vigente. Tratava-se da expressão “incapacidade moral permanente”. A partir daí, gerou-se um extenso debate referido ao que se derivava dessa espécie de frase mágica que podia conduzir à troca de governo.
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É claro que a imensa maioria dos peruanos não leu detalhadamente o texto constitucional. Me incluo entre eles. Como sempre desprezei – pela origem – a Constituição de 1993, eu me detive apenas ao regime econômico e reparei que se havia eliminado qualquer referência aos direitos trabalhistas registrados na anterior Carta Magna.
Em suma, não me fixei no que concerne ao Poder Executivo, suas atribuições e funções, e tampouco no artigo 117, que hoje é tão analisado. Me ative, então, à versão que deram os “especialistas” e os constitucionalistas. Todos se empenhavam a reconhecer a frase embora uns mostrassem entusiasmo perante ela, e outros, certo ceticismo.
Reprodução/Twitter
Como se pode idealizar um debate tão áspero e prolongado em torno de uma frase inexistente na Constituição do Estado?
Porém, vejamos, a rigor, o que diz o mencionado artigo: “O Presidente da República, só pode ser acusado, durante seu período, por traição à pátria, por impedir as eleições presidenciais, parlamentares, regionais ou municipais, por dissolver o Congresso, salvo nos casos previstos no artigo 134 da Constituição, e por impedir sua reunião ou funcionamento ou do Jurado Nacional de Eleições e outros organismos do sistema eleitoral”.
Onde está então aquela frase da “incapacidade moral permanente”, tão usada? De onde saiu? Talvez o legislador de então pensou nela, mas não a incluiu por ser imprecisa, vaga e subjetiva. Mas o real é que a frase não existe.
Pouco antes do artigo 117, há outra disposição que se refere a uma situação similar. Trata-se do 114, que textualmente diz: “O exercício da Presidência da República se suspende por: 1) Incapacidade temporária do Presidente declarada pelo Congresso ou 2) Achar-se este submetido a Processo Judicial, conforme o artigo 117 da Constituição”.
Aqui se alude, então, a uma presumida “incapacidade temporária”. Poderia ser interpretada como física ou psíquica, mas não moral. A frase “incapacidade moral permanente” tampouco existe quando se trata da suspensão de um Mandatário de suas funções. É uma ficção.
Como se pode idealizar um debate tão áspero e prolongado em torno de uma frase inexistente na Constituição do Estado? Como essa frase pode ter servido como argumento decisivo para persuadir uma parte da cidadania convencendo-a de que sim, era possível “vagar” ou suspender o Presidente da República atribuindo-lhe delitos incompatíveis com a moral pública? Inclusive se usou na quinta-feira passada.
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Resulta estranho, e até inaudito, que isto tenha ocorrido quando existem aqui tantos sábios constitucionalistas, tantos juristas especialistas, tantos ex-membros do TC ou da Corte Suprema de Justiça ou parlamentares e ex-congressistas da especialidade. Ninguém viu.
É possível, no entanto, que não tenha sido “esquecido” de tudo, mas relegado por sabido, para que ninguém o perceba. Seguramente os empenhados em levantar a suposta “traição à pátria” perceberam. Por isso se aferraram a esse disparate. Só se conseguissem “levar isso adiante” poderiam dizer que sim, se teriam valido do artigo 117.
E a Promotora Benavides também percebeu. Por isso não acusou. Passou a responsabilidade ao Congresso: “acusem os senhores”, disse aos parlamentares, tão ambiciosos quanto ignorantes. Mas, e os assessores? Brilharam por sua ausência ou se fizeram de tontos. Há que se levar isso em conta, agora que a Máfia Neonazista volta à carga como a mesma conversa.
Mas também há que se considerar outros elementos. Aníbal Torres desempenhou funções ministeriais durante 16 meses, e nunca foi nem acusado, nem interpelado, nem censurado. Pelo contrário, se deu ao luxo de desafiar os congressistas em todos os terrenos. Por agora o objetam quando é designado Assessor da Presidência do Conselho de Ministros?
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E, por que fazem tanto barulho contra Betsy Chávez? É verdade que foi censurada quando se desempenhava no Trabalho, mas essa foi uma sanção política, e não penal. Ela não cometeu delito algum. O que fez foi declarar legal uma Paralisação dos Controladores Aéreos que haviam cumprido todos os requisitos da lei para fazer sua paralisação. Devia então declarar ilegal essa Paralização? Assim o fazia o Ministério antes, mas agora não.
Na situação de hoje, é de tantos aceitar que nos deem gato por lebre. No dia 7 o povo haverá de demonstrar que não tolera isso.
Gustavo Espinoza M. | Colaborador de Diálogos do Sul em Lima, Peru.
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