Conteúdo da página
ToggleHá um consenso na sociedade brasileira – e em parte da sociedade internacional – de que o governo e o partido do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva são de esquerda. E isso não é à toa. De fato, essa visão tem permeado o imaginário social há algum tempo, e confundido parcela considerável do povo brasileiro, o que, aliado a outros fatores, vem dificultando o crescimento dos verdadeiros grupos de esquerda no país. O que há por trás dessa classificação? Se trata de ingenuidade? Ou é má fé?
Quando olhamos para o governo do Presidente Lula, algumas perguntas são essenciais para entendermos, de fato, se este se configura como de esquerda ou não: 1) O que caracteriza a ideologia de esquerda? 2) Quais premissas orientam as ações do Governo Lula? 3) Quem são os principais beneficiários de suas políticas? Somente respondendo a essas questões seremos capazes de compreender se se trata ou não de um governo de esquerda.
Quando buscamos compreender a ideologia de esquerda, precisamos ter em mente algumas premissas: 1) As pessoas de esquerda – e obviamente os partidos que possuem um programa de esquerda – defendem uma sociedade pautada na justiça social, na igualdade e no fortalecimento do Estado. Neste sentido, não se contentam com reformas pontuais ou com ajustes no modelo vigente; 2) os partidos e as pessoas de esquerda lutam pela transformação estrutural nas relações sociais, políticas e econômicas; 3) as propostas genuinamente esquerdistas desafiam o status quo, e têm como objetivo primordial construir um modelo de sociedade no qual todas as pessoas, independentemente de sua origem ou condição, tenham acesso a uma vida digna.
Alinhamento ao neoliberalismo
Historicamente, os partidos de esquerda se configuram como agentes centrais da luta pela transformação social, econômica e política das sociedades, diferentemente das ideologias conservadoras, que tendem a preservar – ou a aprofundar – as desigualdades existentes. Um dos princípios básicos dos partidos e das pessoas que seguem as ideias de esquerda é a crítica contundente às profundas desigualdades que caracterizam as sociedades capitalistas. Dentro desta perspectiva, a ideia central está pautada na distribuição equitativa da riqueza, ao contrário do que acontece no mundo e em nosso país.
Para se ter uma ideia, apenas 1% da população mundial concentra 48% do Produto Interno Bruto (PIB) do Planeta. Ou seja, apenas 1% das pessoas ficam com quase a metade de toda a riqueza gerada. E no Brasil essa disparidade é ainda mais assustadora: 1% da população brasileira fica com 63% de toda a riqueza gerada no país.
Relatório recentemente publicado pela ONG internacional Oxfam demonstra que o ritmo de concentração de riqueza, em 2024, teve novo pico, dando origem a 204 novos bilionários no mundo. O relatório mostra, ainda, que os bilionários do mundo – menos de 3 mil pessoas – enriqueceram, em média, 2 milhões de dólares por dia. (Um absurdo!). Contrastando com essa realidade, dados do Banco Mundial revelam que a quantidade de pessoas que vivem na pobreza praticamente não mudou desde o ano de 1990. Ou seja: em 35 anos, os 44% mais pobres do mundo vivem com menos de 7 dólares por dia. No Brasil, conforme a Fundação Getúlio Vargas (FGV), os mais ricos – que representam apenas 0,01% da população total do país – viram seus rendimentos crescerem 95% entre os anos 2017 e 2022. Isso significa que, em apenas cinco anos, eles quase dobraram sua riqueza!
“Os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito…”
Esse cenário cruel e desumano é inconcebível para quem, de fato, defende ideias de esquerda. A construção de um Estado de bem-estar social, que garanta o acesso universal aos alimentos, bem como aos serviços de saúde, de educação, e da mesma maneira à moradia e outras questões vitais a uma vida digna é primordial para a esquerda. A ideia é que o Estado atue, ativamente, para garantir esses acessos. É isso que defendem as pessoas e os partidos de esquerda.
Para quem defende ideias de esquerda, o desenvolvimento de uma sociedade não deve ser pautado unicamente no crescimento econômico, pois não adianta um país ter um PIB elevado se sua população estiver passado fome. Esse contraste infelizmente ocorre em muitas partes do mundo, como na Índia e no próprio Brasil que, conforme o Fundo Monetário Internacional (FMI), figuram entre as dez maiores economias do mundo. Entretanto, a pobreza em nosso território brasileiro, de acordo com o IBGE, atinge 59 milhões de pessoas; e a miséria 9,5 milhões de seres humanos. Na Índia, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), há 234 milhões de pessoas em condição de pobreza, o que significa mais do que a população total do Brasil. Portanto, apesar de se posicionar entre as cinco maiores economias do mundo, a Índia tem 200 milhões de pessoas sem acesso a água potável. E, no caso brasileiro, esse número chega a cerca de 15% da população, ou seja, mais de 30 milhões de pessoas ainda não têm acesso a água potável. É uma monstruosidade! Como vemos, crescimento econômico que não considera as condições de vida dos seres humanos só serve para enriquecer a um punhado de capitalistas.
Considerando-se esses dados sobre o Brasil, não dá para chamar o Presidente Lula – assim como o Partido dos Trabalhadores (PT) – de esquerdista. Quem o faz, ou é muito mal informado acerca do que significa ser de esquerda, ou está muito mal intencionado. Ademais, quando vemos, por exemplo, os cortes no Orçamento Federal levados a cabo pelo Governo Lula, não dá para confundir. Não se trata de ações de quem abraça uma ideologia cujas premissas se centram no bem-estar social. Muito pelo contrário. Outro indicativo diz respeito à especulação financeira, que “engole” trilhões de reais do Estado brasileiro, e o governo nada faz para deixar de pagar tanto aos especuladores, que não geram emprego, nem renda. Outra coisa é o lucro absurdo dos bancos privados. Para se ter uma ideia, Itaú, Santander e Bradesco lucraram, só em em 2024, mais de 74 bilhões de reais, o que significa 31% a mais que no ano anterior. O Santander, que é uma instituição bancária espanhola, lucrou 13,8 bilhões de reais em 2024, o que representou 48,6% a mais do que em 2023. Um absurdo!
Dessa forma, um governo que permite esse cenário, nem de longe pode ser classificado como de esquerda. Está muito mais alinhado ao neoliberalismo, cuja visão está pautada em um Estado mínimo que assegura o direito à propriedade privada; que defende que a economia seja regida pela livre concorrência (digo em português claro, monopólios e oligopólios) e que a oferta e a procura por bens e serviços determinem os preços (os preços dos alimentos no Brasil nos revelam isso!). Um Estado que não se importa com quem não tem condições dignas de vida, cujo lema é “Se tiver dinheiro bem, se não tiver é problema individual”.
Diante desse cenário, quem classifica o Governo Lula como sendo de esquerda, reafirmo: ou está muito mal informado, ou tem segundas intenções. Aqui entram duas questões interessantes para refletirmos sobre os porquês dessa classificação.
Menos discurso e mais ações
A primeira diz respeito aos discursos do Presidente e do seu partido referentes às pautas relacionadas às populações vulnerabilizadas. Lula é ovacionado por haver “prestigiado” essas pautas através de várias iniciativas. Primeiro, com a criação de programas sociais, principalmente o Bolsa Família, que tem levado comida à mesa de milhões de brasileiros. E aqui quero ressaltar o quanto é inegável a necessidade de programas emergenciais. E o Bolsa Família deve ser visto dessa maneira. Mas, longe de ser emergencial, ele tem se perpetuado, sem que medidas estruturais estejam sendo implementadas para realmente tirar essas milhões de pessoas da situação de pobreza e de miséria a que estão submetidas devido à concentração da riqueza.
Neoliberalismo, concentração de renda e pobreza: o caso da América Latina
À primeira vista, programas como o Bolsa Família nos deixam emocionados. Mas, quando analisamos com objetividade, vemos que o Presidente Lula, já em seu terceiro mandato, nada ou quase nada fez para criar as condições necessárias para que essas famílias vivam do fruto do seu trabalho e salário, sem necessidade de programas sociais. Medidas paliativas devem ser adotadas, sim. Mas, concomitantemente, o governo precisa aplicar políticas de inclusão que realmente proporcionem autonomia às famílias vulnerabilizadas. E isso não foi feito no primeiro e no segundo mandatos, e também não está sendo feito agora, no terceiro. Contudo, o Presidente Lula é idolatrado por muitas pessoas devido a esse programa, sem que uma crítica honesta seja feita em relação à falta de políticas estruturais. O Presidente se transformou em um “ícone” do combate à fome. Não se discute, não se analisa profundamente a necessidade de políticas que mudem as estruturas sociais do Brasil. E quem ousa realizar essa crítica, buscando tirar o Presidente do “pedestal” e fazê-lo atuar mais contundentemente – com implementação de políticas estruturais com vistas à diminuição das desigualdades no país – é rotulado como “antipetista” e/ou aliado da direita.
Além dos programas sociais, a exemplo do Bolsa Família, Lula criou alguns ministérios ligados às populações marginalizadas – Ministério das Mulheres, o Ministério dos Povos Indígenas, o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério da Igualdade Racial. E isso é outra coisa que faz muita gente pensar que se trata de um Presidente e de um governo de esquerda. Entretanto, a criação pura e simples desses ministérios não faz de Lula e seu partido esquerdistas. É preciso que nos perguntemos: que políticas, de fato, essas pastas têm colocado em funcionamento para combater as injustiças sociais que afetam a essas populações oprimidas? Na realidade seria até uma injustiça cobrar das pessoas que comandam esses ministérios – que são três mulheres – devido, entre outras questões, aos recursos a que têm acesso. Não darei os números, mas é fácil pesquisar. E, ao pesquisar, será interessante comparar, por exemplo, as verbas orçamentárias destinadas ao Ministério da Igualdade Racial e ao Ministério das Comunicações, e então responder o(s) porquê(s) de o segundo dispor de mais dinheiro/recursos.
Por falar em questão racial, 70% da população carcerária brasileira está composta por pessoas negras. Da mesma forma, 76% das vítimas de homicídio em nosso país também são negras. Apesar disso, essa situação não está na pauta do Governo Lula. Não vemos quaisquer discussões acerca do sistema prisional brasileiro no sentido de rever essa questão. Aliás, o que se vê é o Presidente acenando para o processo de privatização dos presídios. Além disso, referindo-me ainda à mesma questão (racial), é bom lembrar que o Presidente prestigia Rui Costa, que durante dois mandatos consecutivos como governador da Bahia deixou como marca o fato de ter a Polícia mais letal do país. Nos governos de Costa, as mortes por ações policiais tiveram um aumento de mais de 300%. E as maiores vitimas foram jovens negros das periferias. No entanto, neste seu terceiro mandato, o Presidente Lula fez de Rui Costa o seu ministro da Casa Civil, ignorando esses números e dando ao ex-governador baiano um cargo estratégico e de muito prestígio, já que a Casa Civil é encarregada de coordenar, de monitorar e de avaliar as ações do governo, bem como articular e fomentar políticas públicas relacionadas a questões estratégicas da administração federal.
Como podemos ver, no discurso o Presidente e seu partido são muito bons defendendo os oprimidos. Na prática, entretanto, vemos que não há ações contundentes neste sentido. Por isso, não bastam os discursos. São necessárias as ações. E as ações do Presidente Lula acenam muito mais para garantir políticas antiprogressistas, e portanto, não esquerdistas, do que qualquer outra coisa.
Uma carta “na manga”
A segunda questão que ajuda a compreender os porquês de muita gente achar e dizer que Lula e o PT são de esquerda diz respeito à “cegueira” de muitas pessoas que simpatizam com ambos. Elas recusam-se a enxergar que Lula e seu partido se distanciam exponencialmente da esquerda. E essa atitude tem sido muito favorável ao establishment. Muita gente, e muitas mídias alternativas que se autointitulam independentes, volta e meia constroem e/ou reproduzem discursos que seguem a linha de apologia a Lula e ao PT, inclusive reverberando discursos de pessoas notadamente de direita que elogiam o Presidente e seu governo. Há um jornalista da mídia hegemônica brasileira que emplacou o termo “petralhas” para se referir a Lula e ao PT – fato que em muito contribuiu para dar fôlego ao sucesso inicial da Operação Lava Jato, e posteriormente à prisão de Lula. Esse mesmo jornalista, quando viu o desastre e o caos instalado pela direita, resolveu comportar-se como “fiel escudeiro” de Lula e do PT. E se tornou quase um “ídolo” do lulismo/petismo.
Mas isso não é à toa.
Lula é uma espécie de trunfo nas mãos da elite dominante para impedir que a sociedade brasileira se dê conta de que está cada vez mais aprisionada por políticas neoliberais, que precarizam suas condições de vida. Portanto, é muito importante que o povo brasileiro que não se identifica com a direita enxergue no Presidente Lula e no PT a solução para os grandes problemas que o país enfrenta. Dessa forma, com as “esperanças renovadas” na atuação populista e neoliberal “tingida de esquerda”, toda e qualquer tentativa de uma candidatura genuinamente à esquerda será desconsiderada por essa parcela da população, como tem sido ao longo dos anos.
Os partidos genuinamente de esquerda, juntos, não conseguem nem 5% dos votos válidos nas eleições! Em 2022, por exemplo, as candidaturas de Leonardo Péricles (UP), Sofia Manzano (PCB) e Vera Lúcia (PSTU) tiveram 0,05%, 0,04% e 0,02% dos votos válidos, respectivamente. Portanto, é preciso fazer crer que o PT é a única solução para o Brasil frente aos conservadores de direita. E esta “música” cantada nos ouvidos do povo tem levado ao aprofundamento de políticas neoliberais, bem como à consolidação de um discurso segundo o qual “Criticar Lula é apoiar a direita”.
Não! Criticar Lula não é apoiar a direita. Criticar Lula e seu governo é ter consciência de que ambos estão no caminho neoliberal, o qual aprofunda as desigualdades sociais. Criticar Lula e seu governo é afirmar que embora um partido que se diz de esquerda esteja no poder, as políticas macro estão alinhadas com as perspectivas neoliberais. Criticar Lula é tentar “sacudir” parte da população que tem espírito progressista, a se levantar contra essas políticas nocivas, cuja função primordial é atender aos interesses do capital – dos capitalistas. Criticar Lula e seu governo é querer que o Presidente deixe de dizer uma coisa e fazer outra. É, por fim, afirmar, com todas as letras, que Lula e o PT não estão alinhados com as ideias de esquerda.
Portanto, essa falsa ideia de que Lula e o PT são esquerdistas somente beneficia à elite dominante, que tira de cena as verdadeiras ideias de esquerda, ao tempo em que consegue realizar “manobras” eficazes – com o apoio operacional indiscutível da mídia hegemônica –, que simula desavenças entre o capital e o governo, quando, na realidade, o que há é um “jogo” ininterrupto com o objetivo de fazer crer que há divergência, quando existe mesmo é uma pressão para “emplacar” cada vez mais medidas neoliberais.
De fato, mais que esquerda, Lula e o PT se configuram como uma “carta na manga” do establishment, que sofreu com o amadorismo da direita que não foi capaz de levar a cabo todas as medidas que o capital necessitava, devido à pouca habilidade, ao deslumbramento, assim como a incompetência e, por último, à “vocação” autocrática do líder que escolheu. A imprevisibilidade do amadorismo não atendeu aos interesses dessa elite. E isso ficou muito nítido quando Lula retornou ao “jogo”, ao lado de Geraldo Alckimin – que assim como Michel Temer, em 2016 – poderá ser acionado a qualquer momento, caso seja necessário.
Infelizmente, a sociedade brasileira não está madura o suficiente para dar uma chance a propostas genuinamente de esquerda (e não estou falando de Revolução!). O caminho é longo, e os percalços são muitos – não cabe mencioná-los aqui neste texto, quiça em um próximo.
Verbena Córdula | Por que popularidade de Lula e do governo estão em queda?