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"Lutamos pela liberdade dos presos por lutar", declara comunicador popular do Chile

Marcelo Osses, fundador da Radio Plaza de la Dignidad, afirma ainda que nova Constituição não foi construída para produzir mudança significativa no país
Rosana Cesaroni
Resumen LatinoAmericano
Buenos Aires

Tradução:

* Atualizado em 18/08/2022 às 16h35.

Há sol radiante em Santiago, como diz Marcelo Osses no começo da entrevista para o portal Resumen Latinoamericano. Do Chile, este comunicador popular, fundador e integrante da Radio Plaza de la Dignidad analisa a atualidade de seu país, tendo como eixo a disrupção política da Revolta de 18 de outubro de 2019, um movimento popular que “continuará até a queda do modelo neoliberal”, assegura Osses. Confira a entrevista:


Resumen Latinoamericano: Que leitura política você faz do governo de Boric, nos aspectos que queira mencionar?
Marcelo Osses: O governo de Boric é uma continuidade do mesmo modelo neoliberal, funcional para a conservação dos interesses do grande capital. Do ponto de vista repressivo foi um golpe forte instalar forças policiais, voltaram à repressão com forças de infantaria, carros blindados; a repressão foi tanto ou mais dura do que com Piñera. Voltaram a votar o Estado de exceção em Wallmapu para manter os milicos na zona de conflito Mapuche. Por outro lado, o governo cometeu uma quantidade de erros de todo tipo: a capacidade de convocar os setores populares para seu projeto foi nula.

“Este governo tem a única possibilidade de ir amparando-se na direita e na Concertación, instaladas em postos chave, como o Ministério do Interior”

As possibilidades dos setores populares de lutar por transformações estão na ordem do dia, porque o engano foi muito forte. Estamos com muitas organizações em campanha permanente pela liberdade dos presos e presas políticas da Revolta, mas também pelos presos anarquistas, pelos presos subversivos como o comandante Ramiro com mais de 20 anos em cárceres do Chile e do Brasil, presos e presas políticos Mapuches e milhares de pessoas que continuam sofrendo as sequelas da prisão política. Estamos em luta pela liberdade dos presos por lutar.


R.L: Como fundador da Rádio Plaza de la Dignidad, em que ponto está hoje este projeto de comunicação popular
M.O: A partir da Revolta no Chile nós nos propusemos como objetivo central ser parte deste setor do movimento popular que é mais pela ruptura. Não somos uma mídia imparcial nem ampla, e sim temos uma consideração estrita para dar voz a estes setores populares que não tem voz na imprensa formal nem nos meios de comunicação populares que põem especial ênfase em uma versão. Nós nos mantemos apesar da pandemia, apesar do recuo, mantemos nossa voz e nossa presença com todas as dificuldades que isso significa. Nos vinculamos com organizações que fazem parte deste setor político mais radicalizado e temos as contradições que traz o tempo, o desgaste e a falta de experiência da equipe de trabalho desta rádio que funciona por meio de redes sociais. Vamos nos conscientizando cada vez mais de nossas propostas e esclarecendo-nos à medida que vão ocorrendo as coisas nestes mais de 2 anos. A Rádio Plaza de la Dignidad continua como projeto de comunicação plenamente vigente.

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R.L: Como se insere o sujeito político da Revolta de 18 de outubro de 2019 no governo de Boric?
M.O: Nós acreditamos firmemente que o sujeito popular da Revolta, o que veio das comunidades, das dívidas dos jovens que nestas duas décadas se endividaram no sistema educacional ouvindo o oferecimento das melhoras de sua condição de vida e que finalmente o sistema enganou, este é um sujeito muito significativo e massivo. Esta quantidade de jovens desiludidos ficaram à beira do caminho; são os que neste momento têm nula participação no processo político, não são parte do sujeito político elitista do setor progressista, que nem de social-democrata podemos chamar, porque têm políticas neoliberais e regressivas como demonstraram. Este setor elitista não incorpora este sujeito político de nenhuma forma; não são considerados protagonistas deste projeto político progressista, que é a instalação de uma reforma neoliberal que dê estabilidade a este país pelos próximos 30 ou 40 anos; este é o projeto político que vai prosperar e que responderá às necessidades do capital econômico, do empresariado, que tem como garantia ter sido protagonista das lutas sociais como o próprio Boric, mas o sujeito político da Revolta está a reboque, não tem representação nas políticas salvo nas campanhas ou para marcar “curtir” nas redes sociais. Os setores burocratas, que apareceram recentemente, representam este novo setor que teve sua origem nas lutas estudantis há 20 anos e que conseguiram controlar este movimento social burocratizado. Lamentavelmente nós, do campo popular, não conseguimos encantar este setor que foi o detonador da Revolta; pelas debilidades próprias este grupo popular não foi capaz de organizar-se. Hoje estão à deriva, essas grandes brigadas, comitês, assembleias e os setores de autodefesa; foram ficando desarticulados ou foram cooptados por esta democracia social ou elites progressistas. Essa é a fase da política que estamos enfrentando.

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R.L: O que você exigiria da esquerda chilena em relação ao processo que se inicia com a Revolta de 2019 em vários temas, por exemplo, diante do compromisso com os setores populares, com as vítimas das manifestações, com os e as presos e presas políticas, os Povos Originários, entre outros?
M.O: Nós, como parte desta esquerda mais radicalizada, temos um sentimento muito claro de não ter conseguido neste processo histórico que provocou tanta rebeldia de rua, não termos sido capazes de nos inserirmos. Nunca nos propusemos a encabeçar nem a orientar o curso do movimento, e sim nos inserirmos para entender o fenômeno e este novo protagonista popular. Ter entregue o conhecimento para pô-lo a serviço da rebeldia e não conseguimos.

“Os setores social- democratas, transformados em progressismo, para nós, literalmente, sempre foram o inimigo, dizemos isso com toda a convicção, eles nunca fizeram parte do projeto político libertador, nunca”

Eles não inventaram na última hora este projeto político, já estavam com ele preparado para implantá-lo como reserva do neoliberalismo. Não pudemos influenciar, aprender com o que estava acontecendo, fazer parte deste protagonismo popular e construir uma hegemonia classista que desse uma saída a este processo. Esta casta político-empresarial dominou desde sempre, desde que se constituiu nosso país, estas são nossas contradições. Aos setores democratas não podemos criticar porque servem para isso, são a válvula de escape deste sistema e cumprem seu papel bastante bem. Esta elite política surgida há 20 anos, como Boric, Vallejos e outros, são servis ao projeto político clientelista, dependem dos partidos políticos tradicionais e de novos partidos que sustentam este projeto que é institucionalizador.

“Aqui não se pensa em mudança nem em reforma, é a estabilidade do sistema, não há nenhuma proposta de mudança de modelo”


R.L: Que indícios há de que a Revolta continua?
M.O: A Revolta é um processo que teve sua explosão em 2019 mas vem de distintos episódios anteriores. Busca reverter o processo neoliberal, busca a queda deste modelo. A consigna da Revolta era “Não são 30 pesos, são 30 anos”; propunha que o Chile fosse o túmulo do neoliberalismo. A Revolta se levanta a partir de muito abaixo, dos movimentos sociais desde 2000, 2006, 2010 que vieram da própria organização, de estudantes secundários, universitários, movimentos territoriais contra a privatização, contra a precarização do trabalho, a destruição do meio ambiente; todas tiveram origem nas organizações. Mas em 2019 foi diferente, não foram as elites nem os burocratas servis que tiveram o controle, e sim o terrível para eles era a perda do controle durante meses. Este movimento é inédito em nossa história contemporânea, por sua profundidade. Tivemos a cúpula da OPEC Chile 2019 (Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) e a Revolta suspendeu-a, o Festival de Viña del Mar, os festejos de fim de ano, o impacto foi muito potente e todos estes setores ficaram à margem. Nós também. Nossa previsão era que viria uma explosão atordoante, mas não pensamos nesta profundidade. Não estávamos preparados para compreendê-la. Para onde vai? Temos a plena convicção, não temos a capacidade política para influir no processo, mas não há solução para o problema de fundo que é o fim deste modelo, de suas formas institucionais; a mudança de governo não dá conta da transformação de que o povo necessita, não tem solução desde cima nem dos setores mais radicalizados. A Revolta começa e terá novas facetas, mas não termina até produzir o término deste modelo que é uma panela de pressão. Poderia novamente haver uma explosão.

Marcelo Osses, fundador da Radio Plaza de la Dignidad, afirma ainda que nova Constituição não foi construída para produzir mudança significativa no país

Medio a Medio
Personagens como Boric disseram “é preciso acabar com isso”, referindo-se à Revolta nas ruas, aponta Marcelo Osses

R.L: Durante a Revolta, pediam Assembleia Constituinte para reformar a constituição pinochetista e lhes deram Convenção Constituinte. Poderia dizer que avanços e retrocessos você vê neste processo frente ao 4 de setembro?
M.O: Para nós, este processo convencional que tem sua origem um mês depois de iniciada a Revolta, um pacto espúrio que teve como único propósito usurpar a vontade popular, expressa radical e violentamente nas ruas, substituí-la por um processo institucionalizador que permitisse uma saída política tanto para o governo como para a elite política. Personagens como Boric, que foi quem disse “é preciso acabar com isso”, referindo-se à Revolta nas ruas. Nós insistíamos que essa revolta era contra os poderes constituídos. Os alvos da luta popular eram: o governo, o parlamento, os tribunais, as forças policiais, particularmente os pacos. Nossa consigna era terminar com esses poderes. Desde o primeiro momento as demandas por justiça social eram as mais importantes e surgiu esta ideia de situar a Assembleia Constituinte entre os temas mais significativos. O interesse em manter o sistema predominou. Foram somando-se os setores populares ao processo de normalização; já tinham concordado que era preciso parar a mobilização de rua. Os conflitos intraburgueses entre os setores fascistóides e progres estão competindo para ver quem tem mais capacidade de conseguir mais favores ou estes novos setores ascendentes como a Frente Ampla ou Social-democratas vindos da Nova Concertación ou os clássicos da Democracia Cristã, vamos ver quem tem mais capacidade de institucionalizar. Não há interesse em produzir uma mudança significativa. A reforma das polícias, que foi um tema prioritário: hoje eles têm a capacidade de dizer sem vergonha: Os Carabineros contam com toda a confiança do governo para reprimir, para ocupar o Wallmapu, ganharam a confiança das elites para estar onde estão, porque foram capazes de enquadrar esta revolta nos limites da institucionalidade; foram cooptando um número importante do movimento popular e encaminhando-os para esta opção.

“A Convenção Constituinte para nós é uma enteléquia, uma farsa que vai ser instalada se for aprovada, mas não tem, de nosso ponto de vista, nenhuma possibilidade de ser instrumento de mudança. Nesta constituição, o direito de propriedade fica consagrado melhor do que na que está vigente”

A plurinacionalidade, os aspectos feministas e de igualdade de gênero não estão refletidos nem têm a profundidade de que necessita a sociedade chilena, não há igualdade social. Continuam os interesses do capital. Não participamos, não tem maior importância no futuro; o que vão nos propor é o mesmo. Se for aprovada, a possibilidade de transformar as leis vai passar pelo Congresso, é um caminho arriscado que não vai permitir que se implemente nada; nos venderam a mesma história desde 1988. Não é que tenhamos preconceitos, é que temos a convicção de que aí não há resultados, salvo a normalização do processo de dominação, por meio do novo setor emergente com a confiança da elite político-empresarial. Em qualquer dos casos neste processo, os setores populares estão à margem, para variar. A política destes setores é tirar-nos das ruas, só nos convocam para as ruas para seu ato eleitoreiro, como ocorreu este ano todo em que esteve instalada a Convenção. Acreditam que vão conseguir que, com a pressão sobre o parlamento, as leis sejam sancionadas. Isso é falso; não participamos de nenhuma maneira; há outros setores populares muito radicalizados propondo abster-se no processo plebiscitário; nós acreditamos que isso não tem sentido, desvia nossa atenção de necessidades imperiosas de sobrevivência; impedir que seja este processo institucionalizador que termine por nos abafar e nos subordine ao que estivemos nos opondo como povo – ter um lápis na mão para dizer sim. É o que querem nos impor e do que nós queremos sair em algum momento.

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R.L:  A Revolta de 18 de outubro de 2019 foi iniciada pelos estudantes secundários, depois a Praça Baquedano ou Praça Itália é renomeada como “Plaza de la Dignidad”, ambos são símbolos muito fortes, a juventude, uma praça histórica da cidade. O que você sente diante disso hoje, depois que o tempo passou?
M.O: Nós temos a convicção que este processo que tem como ponto forte outubro de 2019 é fundacional, não termina até o fim deste modelo de dominação. Não pensamos que termine com a tomada do poder dos setores populares, e sim que termine com o fim deste modelo de dominação. Houve uma revolta cultural muito profunda, a mudança dos nomes em Santiago por Plaza de la Dignidad foi o mais significativo, mas em distintas regiões do país foram renomeadas ruas, praças e espaços públicos. Trataram de ignorar e invisibilizar a re- monumentalização, nós jogamos fora mais de 400 monumentos, sobretudo coloniais.

“Em Santiago, a estátua de Baquedano, e também a estátua de Almagro, o descobridor do Chile, temível conquistador espanhol que tem parque e tinha estátua, mas nós a jogamos fora. Este processo descolonial tem um significado bem profundo e não foi possível para os setores populares aprofundá-lo”

Reprodução Instagram (@radioplazadeladignidad)

Estamos perdendo espaço como a própria presença na Plaza de la Dignidad: reinstalaram os nomes nos lugares, trataram de dar-lhe normalidade, mas temos uma aberta luta contra esses fatores da Revolta cultural muito potente. Dizem que tudo que aconteceu ali foi vandalismo, não desconstrução, e sim vandalismo que pegou em muitos setores que agora têm outro discurso, partindo do próprio governo.

“Para alguns é fácil jogar tudo fora. É fácil porque nem os mártires nem os presos nem os feridos são deles; os setores em luta são obrigados a repor e continuar construindo essa memória rebelde, esta capacidade de olhar o que virá com os olhos dos antigos e não com os burocratas”

É preciso ouvir com mais atenção os setores em luta e dar continuidade à luta contra a especulação com os alimentos, os arrendamentos, o golpe no bolso dos mais pobres; estas lutas são fundamentais. Nesta luta por nossa memória recente são estes setores os que têm que estar ativos, porque os outros já a enterraram. Em outubro de 2019 e neste outubro quiseram nos impor que o ponto originário deste movimento foi o dia 25 como momento fundacional e nós dizemos que o momento fundacional é o 18 de outubro, quando o povo saiu arrasando tudo, queimando o metrô, assaltando supermercados, esse foi o momento culminante, não o dia em que mais gente foi para a rua e sim o que teve o conteúdo. O primeiro plebiscito ocorreu no dia 25 como se o voto fosse o momento fundacional do processo e não é isso.


R.L: Aonde você situaria hoje o conceito de dignidade depois da Revolta?
M.O: A Dignidade está nos setores que, apesar deste bombardeio da cooptação, da pressão e da chantagem seguem em luta. Os que não acreditam e não querem obedecer. Hegemonicamente, tratam de impor o caminho único e é nestes setores na rua, na organização territorial, em ações de apoio, em ações comunitárias, aí está a Dignidade. Nós, os que somos mais velhos militantes somos obrigados a confiar neste setor popular, que se mobiliza com uma consciência de classe maior. Hoje nos impuseram o clientelismo por meio da chantagem e prebendas abertamente e são os que não estão à venda e não se entregam, os depositários da Dignidad que arrasta todo este processo de lutas. Não existe a possibilidade da Dignidade no voto, hoje a Dignidade está em uma mudança radical do estado de coisas. As pequenas vitórias são falsas vitórias; isso só contribui para esta normalização neoliberal que em nada potencializa a capacidade revolucionária do Povo.

Rosana Cesaroni | Resumen Latinoamericano
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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