Não é a primeira vez que as queimadas ou o desmatamento aumentam na Amazônia; mas é a primeira vez — desde a redemocratização — que isso ocorre com a “conivência oficial” do governo federal, diz o ambientalista José Pedro de Oliveira Costa, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo.
“A legislação brasileira está sendo completamente desrespeitada de uma forma voraz”, afirma Costa, em entrevista ao Jornal da USP. “Estamos destruindo áreas fundamentais para a preservação da biodiversidade mundial e brasileira, sem possibilidade de retorno e sem perspectiva viável de que isso possa ser controlado.”
O descaso com a conservação e a vontade do presidente Jair Bolsonaro de ocupar a Amazônia são tão grandes, segundo ele, que já começam a desgastar a imagem do próprio governo. “A cobra está comendo o próprio rabo”, compara Costa — lembrando que até o agronegócio já está incomodado com as possíveis consequências comerciais e econômicas desse desgaste para o setor.
Aos 73 anos, professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Zé Pedro — como é mais conhecido — é um dos ambientalistas de maior prestígio no cenário político nacional. Foi o primeiro secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, no governo de Franco Montoro, e duas vezes secretário de Biodiversidade no Ministério do Meio Ambiente, nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer. Participou da criação de mais de 100 milhões de hectares de áreas protegidas no Brasil, incluindo o maior parque de florestas tropicais do mundo (o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá), as maiores áreas de proteção marinha do País, e alguns dos parques mais emblemáticos da Mata Atlântica, como o Parque Estadual da Serra do Mar e a Estação Ecológica da Jureia.
No IEA-USP, Zé Pedro coordena o programa Amazônia em Transformação.
Jornal da USP
A legislação brasileira está sendo completamente desrespeitada de uma forma voraz
Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
Jornal da Usp – Não é a primeira vez que o desmatamento ou as queimadas aumentam no Brasil. O que está acontecendo de diferente agora, a ponto de desencadear uma crise internacional sobre isso?
José Pedro de Oliveira Costa – O que há de diferente é que estamos vendo tudo isso acontecer com uma conivência oficial e oficiosa do governo central. Esse discurso não é novidade; foi o discurso oficial de campanha do presidente Bolsonaro, e o resultado está aí: estamos destruindo áreas fundamentais para a preservação da biodiversidade mundial e brasileira, sem possibilidade de retorno e sem perspectiva viável de que isso possa ser controlado. Todos os governos anteriores — alguns mais, outros menos — tiveram um discurso de proteção. Não estou falando de desmatamento zero, mas de cumprir a legislação e cumprir a Constituição. A legislação brasileira está sendo completamente desrespeitada de uma forma voraz.
Aquilo que é um bem da população brasileira está se transformando em um bem privado, bem debaixo dos nossos narizes.
Entre outras coisas, a reputação do País. O Brasil era até recentemente reconhecido internacionalmente como líder na proteção da biodiversidade, e rapidamente se transformou no país que mais agride a biodiversidade. Esse é o aspecto político dessa questão. Usando um termo caipira — porque eu nasci no interior — “a cobra está comendo o próprio rabo”. A esperteza é tão grande, e a vontade de ocupar é exercida de uma forma tão voraz, que até o agronegócio está reclamando. Quem compra de nós é a China e os países europeus, com os quais estamos entrando em conflito direto, desnecessariamente.
A imagem que o governo tenta vender é que o Brasil é o país que mais protege a sua biodiversidade e mais preserva o meio ambiente.
O Brasil vinha se esforçando de forma muito eficiente para ter essa imagem, e vinha recebendo recursos para isso. Eu trabalhei no governo federal, e a maior parte dos recursos de controle do desmatamento vinha de cooperação internacional. Hoje, essa cooperação está sendo cortada porque a eficiência desse trabalho não está acontecendo. Basta olhar as imagens de satélite, que hoje são públicas, e botar um termômetro na garganta de qualquer pessoa que está fora do País para saber qual é a imagem do Brasil.
Quem ganha com essa situação?
Os infratores. Na Amazônia você tem quatro ganhos possíveis: primeiro, a venda da madeira; depois, a ocupação da terra por meio de uma agricultura ou pecuária incipiente; aí você tem uma especulação imobiliária de venda desses terrenos, que passam a ser titulados (a chamada grilagem de terrasos chamados garimpos).
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, falam constantemente em revisar, e até desfazer, a criação de áreas protegidas no Brasil, sob o argumento de que elas foram criadas a toque de caixa, sem o devido planejamento. O que o senhor pensa sobre isso?
O Brasil desenvolveu um sistema, que vem desde os anos 1990, e do qual eu tive o privilégio de participar desde a sua concepção, de definição de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade, em que se coletou todas as informações existentes sobre as espécies de plantas e animais, e através do cruzamento de dezenas, ou até centenas, de dados se chegou às áreas prioritárias para a conservação dessa biodiversidade. Esse mapa existe, é público, e as áreas protegidas foram criadas com base nesse instrumento científico, que levou anos para ser feito. Então, não há argumento válido para dizer que não existe cuidado, ou que essas áreas foram feitas de maneira improvisada.
O que o Brasil ganha com essas áreas protegidas?
Elas prestam vários serviços. Podemos extrapolar e falar também das terras indígenas, que na sua maior parte são protegidas, como um conjunto sistêmico que propicia a proteção da biodiversidade, que garante qualidade de vida para as populações do entorno, que nos dá possibilidade de exploração sustentável da madeira, segurança hídrica e segurança climática. É um conjunto de coisas que, sem dúvida, devem ser consideradas extremamente importantes.
A impressão que muita gente tem — e que o discurso do governo parece reforçar — é que essas áreas protegidas são terras fechadas, que servem apenas para proteger os bichos e as plantas, sem benefícios para os seres humanos.
As áreas protegidas, como os parques nacionais, são fontes de renda fantásticas em muitos países. Você tem o turismo de visitação, de pousadas, de restaurantes, etc. Veja o exemplo, aqui, do Parque Nacional do Iguaçu, que recebe cerca de 1,5 milhão de visitantes por ano. A cidade de Foz do Iguaçu é uma cidade rica, com um desenvolvimento notável, muito em função desse turismo e do bom uso do parque, que gera uma série de outras atrações turísticas no entorno dele, extremamente rentáveis para a população local. Há outros exemplos, mas esse é o mais notável que a gente tem no Brasil.
O presidente Jair Bolsonaro cresceu no Vale do Ribeira, uma região que abriga grandes áreas protegidas de Mata Atlântica, mas é a região mais pobre do Estado de São Paulo. O que acontece ali?
Em primeiro lugar, não há uma visitação organizada. Eu fui o primeiro gestor da Estação Ecológica da Jureia e posso garantir que a visitação cresceu, mas tem um potencial muito maior nas áreas de entorno, que são abertas ao turismo. Eu levei o primeiro ônibus de turistas para Iporanga, que hoje tem a visitação como seu principal ativo econômico, mas não há um trabalho consistente do governo do Estado nessa região.
Ou seja, a região não é pobre porque tem áreas protegidas, mas apesar delas?
Exatamente; o que elas fazem é servir como atrativos de ecoturismo, que tem um potencial muito grande e precisaria ser melhor estruturado como instrumento de desenvolvimento regional. Gostaria muito que os governos investissem nessa direção. Há uma enorme quantidade de florestas no Vale do Ribeira que não são áreas de proteção integral, então não é isso que está inviabilizando alguma coisa na região. As unidades de proteção integral (fechadas à visitação) não estão tolhendo nenhuma atividade, porque estão em áreas montanhosas, alagadas ou muito inóspitas. A floresta já foi derrubada em todos os lugares onde era possível haver algum tipo de plantio. Se o Vale do Ribeira fosse utilizável para o café, soja ou qualquer outra coisa, ele já não existiria mais. As florestas não estão lá porque foram protegidas, mas porque foram as florestas que sobraram.
O senhor também tem um ligação histórica com a região de Paraty e Ilha Grande, que acaba de ser reconhecida como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, e que o presidente Bolsonaro diz querer transformar numa “Cancún brasileira”; o que incluiria a revogação da Estação Ecológica de Tamoios. Qual é a sua opinião sobre isso?
Eu sou paratiense há mais de 50 anos; tenho uma casa que herdei do meu pai lá. Conheci Paraty com 5 mil habitantes, e hoje, com mais mais de 50 mil. A região continua belíssima, mas o afluxo de população fez crescer problemas como falta de saneamento, criminalidade, tráfico de drogas, pobreza. Tudo isso precisa ser atendido. O turismo já existe e é a principal fonte de recursos. O maior atrativo da região é a paisagem e, no caso de Paraty, a paisagem natural aliada ao seu patrimônio histórico. Não dá para imaginar ali, como existe em Cancún, a construção de prédios gigantescos, que vão destruir a paisagem e matar a galinha dos ovos de ouro. Mas é perfeitamente possível pensar em resorts de dois, três andares, horizontais — isso já existe, e pode haver mais. Mas, para isso, é preciso resolver primeiro o problema da violência, do saneamento, etc.
A existência de áreas protegidas cria algum tipo de empecilho a esse desenvolvimento?
Pelo contrário; hoje a Ilha Grande e as quatro áreas protegidas de Paraty são consideradas Patrimônio Mundial, o que é uma distinção raríssima. Isso agrega valor à região, o que é bom para todo mundo; e isso só é possível porque você tem essas áreas protegidas, que são um atrativo fantástico para o turismo. Junto a isso você tem a Estação Ecológica de Tamoios, que abriga uma série de ilhas, que funcionam como estações de monitoramento de possíveis problemas oriundos da usina nuclear de Angra dos Reis. São, na sua grande maioria, ilhotas de pedras, pequenas e cobertas de floresta, que não têm a mínima possibilidade de serem exploradas como destino turístico.
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