Comprovados seus efeitos malignos na saúde humana, o amianto está banido em praticamente todos os grandes mercados do mundo, após mais de um século de exploração, em especial no ramo dos materiais de construção. Banida do Brasil desde 2017, sua exploração foi liberada pelo governo goiano em setembro de 2019 e, em fevereiro, a Eternit voltou a processar a substância. Sobre a questão, em meio ao forte desemprego e retração econômica, o Correio entrevistou Fernanda Giannasi, auditora do trabalho aposentada e fundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto.
Sobre a defesa da volta da exploração do mineral pelo representante do sindicato dos trabalhadores da categoria, Fernanda Gianasi afirma: “entendemos o contexto, mas não podemos abrir mão da proteção à saúde das pessoas, porque estão morrendo milhares de pessoas pelo mundo em virtude da exposição ao amianto. Não podemos fingir que nada está acontecendo. A discussão que deveria ser levada pelos defensores da atividade deveria ser de cobrar incentivos para que a região continue próspera, com atividade econômica. Conversamos muito com eles, já deviam ter feito as coisas há muito tempo”.
Fundadora da associação que congrega vítimas da substância mineral, cujo potencial cancerígeno já foi comprovado, a ex-auditora do trabalho também explica o contexto internacional de sua exploração e defende que o Brasil siga o exemplo de países que já o baniram, uma vez que os ganhos com a atividade não podem se sobrepor aos evidentes prejuízos à saúde.
“Amianto e democracia não combinam, porque usar um mineral cancerígeno e enganar a população são sinais de que o Estado de Direito e o próprio direito à informação ainda são insuficientes. É isso que a Lei Caiado tenta infringir. Porque ela permitirá o beneficiamento do minério em Goiás, mas por enquanto ele não pode sair do estado. Está banido no país. O produto não pode atravessar estradas federais e estaduais onde a substância está banida, menos ainda chegar aos portos. A lei goiana é inconstitucional, mas pode operar na brecha”.
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Fernanda Giannasi, auditora do trabalho aposentada e fundadora da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto
A entrevista completa pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você recebeu a notícia da liberação da exploração de amianto crisotila no estado de Goiás em favor da empresa Eternit?
Fernanda Giannasi: É um acinte, porque a lei estadual – a “Lei Caiado” – afronta a decisão do Supremo, que é soberana e se refere à constitucionalidade. Esta lei nasce inconstitucional, mas precisa ser declarada como tal.
O STF tem uma Ação Direita de Inconstitucionalidade desde outubro passado, que tem sido retirada da pauta, cuja relatoria está com o ministro Alexandre de Moraes.
Quais os riscos que essa substância traz à saúde e por que sua exploração deveria seguir proibida? Qual o histórico da exploração de amianto no Brasil?
O amianto é um reconhecido cancerígeno para os seres humanos. O conhecimento a seu respeito já tem mais de um século, em 1907 já havia estudos mostrando a nocividade dessa fibra retirada do mineral. É reconhecida como tal pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde (IARC-OMS). Os riscos e doenças atribuídos ao amianto são vários, como a asbestose, não maligna, mas que leva à morte por falta de ar, e as neoplásicas, ou cancerígenas, que atingem vários órgãos. Um dos tipos de câncer mais agressivos é o mesotelioma, incurável.
No Brasil, já tivemos várias pequenas mineradoras ao longo do século XX. Descobriu-se que essa fibra junto ao cimento dava uma liga muito resistente, boa para materiais de construção. Fez-se um mapeamento geológico e descobriram jazidas, com pequenos veios de amianto. Foi explorado em Minas, Alagoas, sempre em minas pequenas. Até que na década de 30 iniciou-se na Bahia a exploração em escala comercial pela empresa francesa Saint Goban-Brasilit, exploração que durou até 1967, quando já se sabia de uma grande jazida em Goiás.
Então, a empresa se associou à Eternit e mudou para o estado do centro-oeste, a fim de produzir telhas, caixas, tubulações. Assim nasceu a mina de Canabrava, na cidade de Minaçu (grande mina), na divisa com Tocantins, à beira do rio do mesmo nome. Durante a ditadura, o uso da substância ganhou muito força e foi bastante usada na construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa renda.
O Brasil, que antes importava, ganhou autossuficiência e entrou no clube dos maiores produtores, chegando a ser o terceiro maior produtor, atrás de Rússia e China. O Canadá, que fora o maior exportador, já entrara em declínio e suas minas chegaram à falência. Até 2017, o Brasil foi o terceiro maior produtor e exportador, e o quarto maior consumidor de amianto.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Extrativas de Goiás, Adelman Araújo Filho, se colocou favorável à decisão e disse que o risco é o mesmo de outras atividades minerárias, além de acusar uma suposta guerra econômica por trás da proibição. O que você pensa desta declaração?
O Adelman, ou Chiru, faz parte de um grupo de sindicalistas que se constituíram num grupo nacional de defesa da produção do amianto, financiado durante anos pela própria indústria. São sindicalistas pelegos, que em vez de defenderem os interesses e a saúde dos trabalhadores que representam, defendem a própria indústria, conforme acordo formalizado entre as partes. Porém, o Tribunal da 15ª Região declarou o acordo nulo, porque previa o financiamento de sindicatos que defendiam o amianto.
A postura dele não é ilegal, mas é imoral, porque esconde os casos de doenças em Minaçu, como se pode ver na matéria do Intercept Brasil, a mostrar que há uma equipe médica escondendo as doenças, para que nada seja contestado junto à justiça e ao INSS.
Seu discurso de defesa do emprego é legítimo, na medida em que defende um grupo de pessoas que não quer deixar aquela atividade, ao passo que a cidade é quase um modelo soviético de produção, uma monotown, que vive em torno da exploração deste minério.
Existe de fato um temor de que a cidade se torne fantasma. Mas o debate não é novo nem no Brasil, nem no mundo. E não houve atitude da classe política, tanto ao nível local como nacional, de busca de alternativas. Só agora correm atrás do assunto, quando se instala uma empresa que vai explorar as terras-raras na região. O grupo que explora o amianto já não é uma alternativa, mas ficaram as “viúvas de Minaçu”, que se acostumaram a ter comodidade por meio da empresa: são os trabalhadores que moram na vila da empresa, não pagam energia, tem o clube, o hospital… Tudo garantido pela empresa.
Em todos os momentos de ameaça, a empresa distribuiu agrados. A empresa, portanto, é uma mãe. Assim, os trabalhadores se acostumaram a ter tudo provido por uma empresa ameaçada de extinção, que por sua vez fazia de tudo para obter um pacto de silêncio com os doentes, por meio de métodos de cooptação.
Como trabalhar com a questão do interesse econômico mesmo daqueles que estariam mais expostos aos riscos, no momento em que o país padece de uma crise sem fim visível e o desemprego é altíssimo?
Compreende-se. É legítimo, mas há a ocultação de riscos e doenças que já estão acontecendo. A empresa paga pelo silêncio por meio de acordos extrajudiciais. Ocorre que mais de 65 países já baniram o amianto, que também está condenado no mercado global, com exceção de algumas regiões, em especial na Ásia.
Entendemos o contexto, mas não podemos abrir mão da proteção à saúde das pessoas, porque estão morrendo milhares de pessoas pelo mundo em virtude da exposição ao amianto. Não podemos fingir que nada está acontecendo. A discussão que deveria ser levada pelos defensores da atividade deveria ser de cobrar incentivos para que a região continue próspera, com atividade econômica. Conversamos muito com eles, já deviam ter feito as coisas há muito tempo.
Para se ter ideia da relação promíscua e conivente do sindicato com a indústria, esta financia o Instituto Brasileiro do Crisotila, que funciona em Goiânia. Quem fica lá são os dirigentes do sindicato. É um instituto de propaganda da indústria do qual o sindicato faz parte, vive lá dentro. Quando falam da guerra comercial, é como se fossem vítimas, e não patrocinadores desta guerra, que para nós é o que menos interessa, não é do nosso escopo.
No Ministério do Trabalho ajudei a criar associações de vítimas do amianto. Já temos 10 grupos em sete estados. É um risco disseminado, não é algo localizado aqui ou ali. Toda semana temos mortes pela exposição ao amianto.
Como está o contexto internacional da exploração do amianto?
O lobby do amianto se concentra na Rússia e no Cazaquistão. A China também explora, mas importa muito. Há um pequeno movimento, mais localizado em Hong Kong, pela proibição do amianto. Mais de 65 países, a maioria industrializada, já o proibiram.
A grande exceção são os EUA, graças a Trump, grande aliado da Rússia, a ponto de o amianto russo sair do país com a cara do Trump estampada nos sacos, com mensagem de agradecimento em russo, uma vez que o presidente norte-americano afirmou que quem quer acabar com amianto no mundo é a máfia (risos). É o único país industrializado e democrático que ainda permite seu uso. O restante está localizado na Ásia. Índia, Indonésia e Tailândia são os grandes consumidores, sociedades que ou não são tão democráticas, ou não têm movimento social de força.
Amianto e democracia não combinam, porque usar um mineral cancerígeno e enganar a população são sinais de que o Estado de Direito e o próprio direito à informação ainda são insuficientes. O Japão e a Coreia do Sul já baniram a substância e tentam liderar uma corrente asiática neste sentido. Representantes de Japão, Índia e Indonésia vieram ao Brasil e pediram para o STF e demais poderes que se impeça a exportação de amianto, uma vez que suas sociedades ainda carecem de informações suficientes.
É isso que a Lei Caiado tenta infringir. Porque ela permitirá o beneficiamento do minério em Goiás, mas por enquanto ele não pode sair do estado. Está banido no país. O produto não pode atravessar estradas federais e estaduais onde a substância está banida, menos ainda chegar aos portos. A lei goiana é inconstitucional, mas pode operar na brecha.
Como você pode situar o público a respeito do contexto da exploração econômica deste mineral pelo mundo?
Tem muita desinformação. A Eternit, que já deixou de ser multinacional, trabalhou muito pesado na propaganda. Chegou a criar campanhas que nos obrigaram a ir ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulação da Publicidade), pois iam contra todo o conhecimento acumulado sobre a substância. Propagandas, feitas por grandes agências, como a do Marcos Valério inclusive, foram baseadas em falsas informações.
A Brasilit-Eternit tem mais de 50% do mercado de coberturas do país, principalmente na população de baixa renda, que acredita na durabilidade do produto – o que tem a ver com o próprio nome da empresa, que faz referência à palavra eternidade em latim.
A contra-informação sempre foi forte e andou na contramão da produção científica. A cada dado novo produzido a indústria vinha com seus institutos, não só no Brasil, fazer campanha de contra-informação. As informações corretas demoraram muito pra chegar à população.
Como os sindicatos eram pró-indústria, nunca faziam lutas judiciais em busca de reparação a seus representados. Mas na medida em que os doentes apareciam a tese do uso seguro perdia força.
O que você pode contar da ABREA e seu histórico de atuações? Existem vítimas da exposição a esta substância no Brasil?
A ABREA faz 25 anos e neste ano faremos o evento Osasco+20, em referência a uma reunião internacional realizada em 2000 que deu início à internacionalização do movimento pelo fim do uso do amianto. Sou a fundadora da organização, e funcionamos em órgãos públicos, universidades, sempre em busca de aliados para esta batalha. No Rio nos reunimos na Fiocruz, em São Paulo usamos sedes de sindicatos que nos apoiam, na Bahia temos parceria com o Ministério Público…
Tudo isso porque muitas vezes as doenças demoram pra ser diagnosticadas, muita gente morre até sem diagnóstico. São doenças que precisam de certa especialização e infelizmente nossas universidades não formam profissionais voltados à área, pois são raras as cadeiras de medicina do trabalho, que tratem das doenças provocadas pelo trabalho; eram necessários exames específicos que antes não eram disponibilizados pelo SUS…
A associação nasceu na necessidade de as vítimas lutarem por seus direitos e, principalmente, conhecerem seu estado de saúde. São sete estados com dez associações (São Paulo tem grupos em três cidades diferentes), que se reúnem, discutem, buscam assessoria jurídica…
Não é uma guerra contra empresas, e sim contra o amianto. Por isso somos amicus curiae das associações, para que as leis estaduais, além da federal, vigorassem. Como isso foi pacificado pela decisão do Supremo de 2017, nossa luta se voltou à reparação daqueles que precisam de tratamento médico adequado, a fim de minimizar seu sofrimento. E também lutamos pela revitalização de áreas de exploração do mineral.
Nossa luta é de permanente defesa dos interesses da sociedade, enganada sobre os riscos do amianto por muito tempo. Quando estas empresas se instalaram no Brasil já sabiam dos estudos que mostravam os danos. E mesmo assim mentiram para as pessoas. O que era o tal “mineral mágico”, pois podia ser usado em inúmeras aplicações, passou a ser conhecido como a “fibra assassina”.
O Supremo deu duas grandes contribuições para a luta contra o amianto: a decisão de 2017 foi a primeira favorável ao banimento do amianto em corte suprema. Em segundo lugar, a proibição se deu com a atividade em andamento. Em países como Itália, Canadá e França só se baniu após o fim das atividades industriais.
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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