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Paulo Cannabrava Filho*
Morreu no dia 10 de maio, aos 94 anos, o jornalista e militante político José Guimarães Neiva Moreira, um dos idealizadores e, por muitos anos, editor da revista Cadernos do Terceiro Mundo.
Neiva estava internado desde 31 de março por conta de uma infecção respiratória. Nascido em 1917, o ex-presidente do PDT foi um dos expoentes da luta dos brasileiros durante o regime militar.
Em sua carreira política nacional, destacam-se a fundação do PDT e os seus mandatos como deputado federal de 1993 a 1994, e de 1997 a 2007.
A presidente Dilma Rousseff, que iniciou sua carreira política no PDT gaúcho, divulgou nota lamentando a morte de Neiva e ressaltando que “a política brasileira perdeu um de seus mais expressivos líderes”.
“Neiva Moreira, fundador do PDT junto com Leonel Brizola, lançou raízes do trabalhismo no Brasil e em vários outros países latino-americanos. Como estudioso, ativista e escritor, sempre esteve ao lado dos povos oprimidos da região. Viveu intensamente a luta pelas liberdades no Brasil, e após retornar do exílio, ampliou sua trajetória política a partir do seu amado Maranhão (…)Em nome de todas as brasileiras e de todos os brasileiros, cumprimento familiares e amigos, neste momento de dor. Particularmente, guardarei sempre comigo as boas lembranças de minha convivência com Neiva Moreira”, concluiu a presidente.
O jornalista e escritor Paulo Cannabrava compartilha suas memórias do amigo e companheiro de exílio. Conheça um pouco da trajetória de Neiva Moreira na política e na vida.
Minha memória do Neiva Moreira, Paulo Cannabrava Filho
Conheci o Neiva Moreira pessoalmente quando ele era secretário da Frente Parlamentar Nacionalista e eu, repórter político do Correio da Manhã, chefe de redação da Radio Marconi além de correspondente da Prensa Latina em São Paulo. Desde muito antes o conhecia de nome, de ler suas reportagens e de ler notícias sobre seus feitos como repórter e como deputado federal. Neiva era o tipo de jornalista que todo foca gostaria de ser. Como repórter ele se tornara famoso por ter entrevistado Nasser após a guerra de Suez e por ter seu jornal destruído por capangas de Vitorino Freire, o udenista que, bem no estilo do clã Sarney, capturara o governo do Maranhão por décadas a serviço de seus interesses.
Para nós que nos julgávamos de esquerda, filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro e militando no PCB, parecia-nos raro que o combativo secretario da Frente Parlamentar Nacionalista fosse do PSP – o Partido Social Progressista – que tinha como chefe Adhemar Pereira de Barros, um oligarca paulista milionário. Mas, foi como militante do PSP e como jornalista que Neiva teve importante papel na derrota do clã de Vitorino Freire que por 40 anos dominava a política maranhense.
Como deputado federal em seu terceiro mandato Neiva coordenou a mudança Câmara Federal para Brasília. Participou ativamente das articulações que garantiriam a posse de João Goulart na crise de agosto de 1961 e integrou a frente de sustentação do governo, batalhando pelas reformas de base. Em abril de 1964, por seu comprometimento com o governo nacionalista e reformista de Goulart esteve na primeira lista de cassados e perseguidos políticos. Asilou-se na Bolívia, onde no início dos anos 1950 havia ocorrido uma revolução nacionalista e anti oligarca, protagonizada pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), sob a liderança de Paz Estenssoro e Silez Suazo que triunfou em 1952. Neiva acompanhara essa revolução e forjara grande e duradoura amizade com líderes do MNR. Contudo, Neiva logo teve que deixar o país após o golpe de Rene Barrientos que em setembro de 1964 depôs o governo de Victor Paz obrigando-o a partir para o exílio.
Sem condições de permanecer na Bolívia foi para o Uruguai. Lá era uma referencia na articulação da resistência à ditadura brasileira. E viria a ser uma referência também no jornalismo do país ao contribuir para a fundação de vários semanários de esquerda e, depois, ser convidado para assumir o comando da redação do jornal diário “Ahora”. Ao lado de Leonel Brizola esteve na articulação dos primeiro movimentos de resistência armada que culminou na guerrilha de Caparaó.
No início da década de 1970, por duas vezes estive com Neiva em Montevideu. Com Neiva, Darcy Ribeiro, Paulo Shilling, Carlos Olavo. Em reuniões com Neiva e Carlos Figueiredo de Sá, conspirávamos, trocávamos informações sobre a organização e desenvolvimento da resistência nos vários países em que se espalhou a diáspora brasileira. Essas reuniões tinham que ser feitas com muito cuidado pois os asilados eram monitorados por agentes brasileiros e uruguaios. Apesar disso, a realização dessas reuniões não escaparam da arapongagem uruguaia-brasileira. Informes dos repressores agora a disposição no Arquivo Nacional dizem que eu era emissário do Neiva e do Carlos Sá enviando matérias jornalísticas contra o governo brasileiro para editores e meios de outros países.
Em setembro de 1973 nos encontramos em Argel, ambos cobrindo a IV Conferência de Cúpula dos Países Não Alinhados. Eu como repórter do diário Expreso, de Lima e Neiva pelo “Ahora”, de Montevidéu. Nessa altura, com o Uruguai também vítima de golpe de estado, Neiva estava na mira da repressão pois seu nome começara a ser citado nos interrogatórios aos presos políticos, em particular aos militantes tupamaros.
Claro que em Argel aproveitamos a oportunidade para estreitar relações com os asilados brasileiros lá residentes: o deputado cassado Maurílio Ferreira Lima, os irmãos Murthé, o capitão Altair Campos. O mais importante deles era Miguel Arraes, que vivia num anexo ao palácio presidencial, mas estava confinado no litoral. O governo brasileiro exigira como condição para comparecer como observador à Conferência, ausência do governador cassado.
A Conferência dos Não Alinhados foi das mais importantes até então realizadas. O mundo bipolar da guerra fria se tornava pentagonal com a emergência da China, dos países do Terceiro Mundo, notadamente América Latina, o auge das lutas de libertação na África. Nos foros internacionais, politizados como nunca antes, chegara-se a conclusão de que a luta por melhora nos termos de intercâmbio das matérias primas tinha que dar-se no marco de uma Nova Ordem Econômica Mundial, uma luta de caráter político a ser travada internamente em cada país e nos foros internacionais. E mais, que essa nova ordem econômica almejada jamais seria alcançada sem uma nova ordem na comunicação mundial.
Neiva e eu formamos uma dupla e nos dedicamos com especial interesse a estreitar relações com os movimentos de libertação das colônias portuguesas na África, e com as revoluções de caráter nacionalista no mundo árabe. Havia sido criada a OPAEP organização dos países árabes exportadores do petróleo que no cerrar das portas da conferência decretaria o bloqueio do petróleo aos países envolvidos na guerra do golfo.
Tudo isso constituía o cenário de um mundo em grandes transformações. Um cenário sonegado ao público pela imprensa, salvo raras exceções, localizadas, como ocorria no Uruguai e no Peru, e poucas revistas especializadas como Afrique-Asie, editada na França, mais para uma publicação acadêmica do que um meio para o grande público.
Com relação à Nova Ordem Informativa, a delegação peruana, com amplo apoio, levou proposta de criação de um Pool de Agências de Notícias dos Países Não Alinhados. Havia mais de mil jornalistas presentes em Argel. Com Neiva estimulávamos a discussão sobre a necessidade de se ter um meio de comunicação alternativo, feito por jornalistas para o grande público que noticiasse os fatos escondidos e desse voz para os protagonistas. Paralelamente, essa conferência também teve o mérito de abrir-nos fontes que alimentaram um jornalismo diferenciado.
Quando voltei a ter contato com Neiva ele já havia conseguido, junto com Beatriz Bissio e Pablo Piacentini, e o apoio de Julia Constenla, editar em Buenos Aires, os primeiros exemplares de Cuadernos del Tercer Mundo e estava encurralado pela “Triple A”, o comando de caça aos comunistas do governo de Lopes Rega e Isabel de Perón.
O Peru da Revolução de Velasco Alvarado já havia expropriado os jornais de grande circulação e entregue aos trabalhadores organizados. Não foi difícil conseguir apoio para o ingresso de Neiva e Beatriz e de outros refugiados, entre os quais os argentinos Pablo Piacentini, Horacio Verbitsky e Gregorio Selser, o uruguaio Mario Benedetti, entre tantos. Neiva teve todo apoio para pesquisar, entrevistar e viajar pelo Peru e produzir o livro Modelo Peruano, publicado em vários idiomas, referencia sobre o período velasquista.
Beatriz se integrou a um projeto de pesquisa sobre países do Terceiro Mundo para o diário Expreso e junto com o grupo de colegas argentinos e do próprio Neiva tinha criado uma “agência de notícias” sui-generis, que vendia matérias de análise internacional aos diferentes jornais peruanos. Estava lançada a ideia o Guia do Terceiro Mundo, anuário com edições em português e espanhol que teve sua última edição no ano 1999.
Em Lima, de novo pude conviver e aprender com Neiva. E seguíamos conspirando e articulando com a resistência à ditadura brasileira a que se somara as ditaduras no Uruguai, Argentina, Bolívia e Chile. Na busca de caminhos a seguir víamos a necessidade de um partido de massas com propostas capazes de unir ampla frente política e social. Havíamos apreendido ser necessário ter um ideário construído sobre a trajetória de lutas do povo e voltada para a classe trabalhadora.
A colônia de brasileiros asilados no Peru, nessa época era pequena mas muito expressiva: Darcy Ribeiro, trabalhando no projeto SINAMOS (Sistema Nacional de Mobilização Social, do governo Alvarado), a antropóloga Berta Ribeiro, Guy de Almeida, na comunicação do Pacto Andino, com esposa e filhos, o pintor mineiro Vicente de Abreu e família, o capitão Altair Campos e família, Elza Ferreira Lobo, Mauro Boschiero e sua companheira Darci.
Após trabalhar em estreito contato com o presidente Velasco Alvarado, Neiva foi convidado para editar o boletim oficial do governo “Perú Informa”. Após o golpe de estado do general Morales Bermudez Neiva e Beatriz, eu e minha família, fomos “convidados” a abandonar o Peru. Por não querer deixar a América Latina e sem muitas outras opções, Neiva e Beatriz se foram para Cidade do México com objetivo de trabalhar e criar condições para relançar o projeto de Cuadernos del Tercer Mundo. Eu fui para o Panamá a convite do general Omar Torrijos a integrar-me na campanha pelos novos tratados que devolveriam a soberania sobre território do Canal do Panamá. Piacentini foi para Roma reintegrando-se na IPS, a agência de notícias Inter Press Service, criada por Roberto Sávio e por ele no Chile, que se constituíra, desde o primeiro número, num suporte fundamental para o desenvolvimento do projeto de Cadernos.
No México nasceu Micaela Bissio Neiva Moreira e renasceu e ganhou força o projeto da revista. Com sede na Cidade do México e em Lisboa, Cadernos do Terceiro Mundo alcançou seu auge com edições em inglês, espanhol e português, ampla distribuição na América Latina, Estados Unidos, Portugal e África portuguesa além de circulação modesta em quase todas as partes do mundo. No Brasil circulava em ambiente restrito, quase que clandestinamente, mas, era disputada.
Com Neiva no México e eu no Panamá nos correspondíamos e nos telefonávamos. Em junho de 1979 queria que eu fosse a Lisboa para o encontro com Leonel Brizola e brasileiros da diáspora para o projeto de ressurgimento do trabalhismo. Envolvido no apoio à Revolução Sandinista e no comando de uma agência de notícias não tinha condições de abandonar meu posto de trabalho. Contudo, Omar Torrijos foi solidário arcando com os custos de algumas passagens de asilados brasileiros para a Reunião de Lisboa, o encontro de refundação do trabalhismo brasileiro – sob a bandeira do Partido Trabalhista Brasileiro, logo assumido como Partido Democrático Trabalhista. Estava lançada a ideia de um partido moderno, filiado a socialdemocracia internacional e com raiz fincada na história das lutas libertárias e na tradição do trabalhismo varguista.
Com a anistia de 1979 Neiva regressou com a família para o Brasil e sentou residência no Rio de Janeiro e em São Luiz. Eu regressei em 1980 e me somei ao esforço de refundação do trabalhismo e de promoção da revista em São Paulo, agora editada em português no Rio de Janeiro com distribuição aqui, em Portugal e África portuguesa. A edição em espanhol continuou por algum tempo com sede no México e depois passou a ser feita também no Rio de janeiro e deixaria de circular no alvorecer do novo século. Para promover a revista fazíamos em parceria com universidades debates sobre conjuntura, sobre o Terceiro Mundo com ênfase na América Latina. Venda de assinaturas e anúncios de empresas controladas por governos progressistas financiavam o projeto.
A campanha para eleger Leonel Brizola governador do estado do Rio de Janeiro foi um sucesso. Faltava um veículo para sustentar a campanha por eleições diretas. O povo queria mas os grandes meios não. Por iniciativa de Neiva lançamos o Jornal do País. Durou pouco, cerca de dois anos, mas foi o primeiro jornal a apoiar ostensivamente a campanha Diretas Já. Neiva coordenava a comunicação do governo do Rio de Janeiro, a editora e o crescimento do PDT e, ainda fazia política no Maranhão onde foi eleito e reeleito mais três vezes deputado federal.
Nos anos 1980 e 1990 minhas idas ao Rio eram frequentes e, raramente me hospedava em hotel para não contrariar o Neiva e a Beatriz que queriam que eu ficasse com eles. Igualmente Neiva e Beatriz, se vinham a São Paulo, ficavam em casa. Até hoje, tanto Beatriz como eu e Bia preferimos a casa de um ou de outro a ficar em hotel. Meu endereço em São Paulo sempre constou no expediente das revistas como sede da representação da revista no Estado. A correspondência que eu e Neiva mantínhamos nessa época era interceptada e lida pela arapongagem do SNI. Há cópias de cartas na íntegra entre a documentação que consegui através do Habeas Data.
A editora cresceu e agregou novos produtos. Surgiram a Revista do Mercosul, voltada à integração latino-americana e a premiada Ecologia e Desenvolvimento. O jornal do País quebrou por falta de sustentação mas a editora com suas três publicações se mantinha, a duras penas, mas, fiel aos princípios que a norteavam desde o surgimento, até que cerrou suas portas em 2005. Mais de trinta anos de um jornalismo diferenciado acumulou um acervo de inestimável valor histórico-documental que deve ser preservado.
Quando Neiva vinha a São Paulo ficávamos horas conversando, conspirando, lembrando fatos e pessoas. Nunca perdemos o habito de conspirar. Isso no melhor dos sentidos, o de como melhor interpretar a conjuntura, a busca de soluções para os problemas do Brasil. Dialogávamos também sobre coisas íntimas, como o medo de vir a ficar cego pois, como eu, sofrera um derrame numa das vistas. Por três ou quatro vezes tive que visita-lo e estar com ele no Incor. Uma dessas vezes, era domingo, chamei o médico de plantão e, depois de muita argumentação consegui que me autorizasse sair com o Neiva para que ele almoçasse em família, com a promessa de voltar antes das 17 horas.
Uma de suas grandes preocupações era com o anti-getulismo raivoso que grassava em setores do PT, notadamente alguns intelectuais. Neiva atribuía essa postura a falta de interesse pelo conhecimento da história ou, simplesmente por má fé, servilismo intelectual. Neiva e Brizola queriam que eu atuasse como um elo de ligação entre a direção do PT e do PDT, pois acreditávamos que essa aliança seria imbatível. A postura hegemônica do PT inviabilizou a candidatura de Brizola na eleição de 1989 e uma aliança de esquerda com base em um projeto nacional.
Sem abandonar o jornalismo que fazia com paixão Neiva nunca deixou a militância política. Voltou para a Câmara Federal, primeiro como suplente e, entre 1991 e 2007, exerceu mais quatro mandatos pela legenda do PDT que ajudou a criar. Entre um mandato e outro concorreu ao Senado e perdeu. Com isso e mais os mandatos que havia exercido antes de ser cassado em 1964 tornou-se o decano dos deputados federais. É também o mais condecorado entre os parlamentares brasileiros. Foi eleito sempre pelo Maranhão onde organizou a oposição e o partido que elegeu por três vezes o médico Jacson Lago prefeito de São Luiz e depois governador do Estado. Com Lago prefeito Neiva licenciou-se na Câmara Federal para organizar a secretaria municipal de comunicação e com Lago governador mudou-se de vez para o Maranhão.
Nascido em Nova Iorque, uma cidadezinha às margens do Parnaíba, o Maranhão era outras das paixões de Neiva. Com a vitória de Lago na eleição para governador de 2006, Neiva desistiu de querer ser deputado e viver parte de sua vida a bordo de um avião e resolveu dedicar-se inteiramente à política maranhense. Renunciou seu mandato em 2004 e foi ser o principal assessor de Lago, com sala especial ao lado do gabinete do governador. Estava feliz, fazendo o que mais gostava, articular, motivar e organizar as pessoas. Com a vitória de Lago acabavam 40 anos de monopólio do poder exercido pela família Sarney.
O Maranhão é longe e as passagens aéreas chegam a custar mais que um voo à Miami ou Lisboa. Mesmo assim pelo menos uma vez ao ano eu visitei o Neiva em sua amada ilha maranhense. A última vez foi em 2008 e desde então tenho recebido seus recados reclamando de minha ausência. A queda de Lago, no início de 2009, através de um golpe judicial perpetrado pela família Sarney abalou profundamente a saúde de Neiva. Foi o início de seu fim pois perdeu a alegria de viver. Em março foi internado com problemas no pulmão, coração fragilizado num corpo de 94 anos não resistiu e nos deixou na madrugada de uma quinta-feira, 10 de maio de 2012.
Neiva se foi, mas ficou seu legado: Jornalismo e política se faz com dois ingredientes: paixão e ética. Um jornalismo que é referencia entre intelectuais e pesquisadores de várias partes do mundo. Fiel a esse legado Beatriz Bíssio reuniu colaboradores e simpatizantes do projeto e criou o Espaço Cultural Diálogos do Sul. Através dessa iniciativa o acervo de Cadernos do Terceiro Mundo estará a disposição do público e se editará a revista virtual Diálogos do Sul. Neiva seguirá presente guiando nossos passos.
* Paulo Cannabrava Filho é jornalista, historiador e editor da Diálogos do Sul.