No meio da quarentena me surpreendeu logo cedo, na manhã desta segunda-feira (04), a notícia da morte de Aldir Blanc por Covid-19. A reportagem lembrava sua vasta produção musical, a maior parte dela em parceria com João Bosco, e descrevia como sua canção “O Bêbado e a Equilibrista” se transformou no “hino” da luta pela anistia, composta e popularizada alguns meses antes de a medida ser oficializada em lei, em 28 de agosto de 1979.
A notícia imediatamente me transportou ao México. Lá estávamos Neiva Moreira e eu, com a nossa filha de pouco mais de um ano, Micaela. Morávamos no bucólico bairro de Coyoacán, pertinho da praça principal do bairro e da casa-museu de Frida Kahlo. Tínhamos sido acolhidos por amigos mexicanos e aquela era uma casinha nos fundos de uma outra, da mãe de Enrique Cortez, quem tinha se tornado uma espécie de mecenas nosso por ter ajudado, inclusive cedendo o seu nome como editor – que por exigência da lei, tinha que ser um cidadão mexicano – para que pudéssemos retomar o projeto da revista Cadernos do Terceiro Mundo (expulsa da Argentina pela Tríplice A).
A ideia de relançar no México a revista também tinha acolhida pela fraternidade de outros múltiplos amigos e instituições, como a Federação Latino-americana de Jornalistas (FELAP), dirigida pelo peruano Genaro Carnero Checa e fundamentalmente pelo Instituto Latino-americano de Estudos Transnacionais (ILET), presidido por Juan Somavía, onde reencontramos o nosso amigo peruano, também exilado, Rafael Roncagliolo, que mais tarde viria a ser Ministro das Relações Exteriores do Peru.
Portal Vermelho
A morte de Aldir Blanc foi um detonador de memórias de um período muito duro, no exílio
Na casa ao lado da nossa moravam Betinho e Maria que, chegados do Canadá, tinham escolhido o México como novo porto do exílio, atraídos, entre outras vantagens, pela importância do país como centro político dos exilados latino-americanos. E as lembranças me levaram a uma noite muito especial, em que Maria bateu na nossa porta, emocionada, e nos convidou a ir até a sua sala… Lá estava Betinho, no telefone, com Henfil, que do outro lado da linha, tinha colocado para eles ouvirem bem alto “O Bêbado e a Equilibrista” na voz de Elis Regina… Naquele momento, todos chorando de emoção e abraçados sonhamos com a volta ao Brasil.
Falar com o Brasil naquela época não era algo banal, não só pelas dificuldades tecnológicas e os preços exorbitantes das chamadas internacionais, mas sobretudo pelo risco a que se expunha quem tivesse, aqui no Brasil, a ousadia de telefonar para um exilado, mesmo que, como era o caso naquela ocasião, fosse seu irmão. Mas gradualmente o ambiente no Brasil tinha se tornando mais leve, augurando um futuro não muito longínquo, no qual a promulgação da anistia e o gradual processo de abertura permitissem superar o longo período ditatorial.
A morte de Aldir Blanc foi um detonador de memórias de um período muito duro, no exílio, “sem lenço e sem documento”, mas muito rico em aprendizados, em solidariedade, em resistência…
Fiquei por vários minutos pensando em Betinho e em tantos outros brasileiros e brasileiras que sonharam com um Brasil acolhedor e fraterno que abriria uma nova etapa da sua vida no encontro, na confiança, no futuro. E senti a imensa falta que eles fazem para nos lembrar que toda noite acaba numa aurora e que o ódio sempre é vencido pelo amor.
Bônus:
Cena extraída do filme “Vlado – 30 anos depois”, de João Batista de Andrade.
Beatriz Bissio, professora universitária, ex editora dos Cadernos do Terceiro Mundo, fundadora e do Conselho Editorial da Diálogos do Sul
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