No Brasil, a figura de Pepe Mujica é admirada e reconhecida, se tornando uma referência para o campo progressista. Porém, existe um personagem latino-americano, também Mugica, mas com “g”, cuja trajetória histórica é tão importante quanto a do ex-presidente uruguaio.
Carlos Mugica nasceu em 1930, na cidade de Buenos Aires, filho de uma família de classe alta. Seu pai foi deputado e ministro das relações exteriores, e sua mãe era filha de ricos estancieiros (fazendeiros). Em 1952 inicia seus estudos no seminário, ordenando-se padre em 1959.
Dedicou sua vida ao trabalho nas comunidades pobres de Buenos Aires, fundando a Paróquia do Cristo Operário na Villa 31. Os padres que se encarregavam desta tarefa eram conhecidos como curas villeros. Em contato com a dura realidade da pobreza, Carlos, em suas palavras, abandona a visão individualista do cristianismo:
“Um sacerdote francês, o abade Pierre, de quem ainda me recordo de uma frase decisiva: ‘Antes de falar de Deus a uma pessoa que não tem teto, é melhor conseguir-lhe um teto’. Quer dizer que conseguir teto a uma pessoa já é falar de Deus. Não esqueçamos que cristo curava os enfermos, dava o que comer aos que tinham fome e de beber aos que tinham sede. E não fazia para que depois escutassem o sermão, mas sim porque era essa sua maneira de amar: abraçando o homem por inteiro. Antes de entrar para o seminário, eu tinha uma visão maniqueísta da existência. A alma era boa e o corpo, mau. Isso vem de Platão, e entrou na Igreja com Santo Agostinho; essa concepção ainda perdura, sobretudo no que diz respeito ao sexo. Mas estamos vivendo um amplo processo de libertação para banir essa atitude individualista do coração da Igreja.”[1]
Era uma época de grande efervescência cultural e política, de luta contra o imperialismo e pela justiça social, marcada pelo Movimento de maio de 1968 na França, Guerra do Vietnã (1955-1975), Revolução Cubana (1959) e Guerra de Argélia (1954-1962). A igreja católica não estaria imune a toda essa movimentação, surgindo o Movimento Sacerdotes para o Terceiro mundo (MSTMU), do qual Mugica faria parte.
Infobae.com
O Padre Carlos Mugica
Autodeclarado peronista, assim ele explicou a sua opção:
“Hoje, os cristãos compreendemos que essa exigência do amor não tem só uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão estrutural. Tenho que amar não apenas ao nível de indivíduos, mas também ao nível do povo. E foi ao nível do povo que o peronismo, através de sua passagem pelo governo, realizou o mandato evangélico do amor real e verdadeiro aos humildes. Bastam poucos exemplos: 900 mil habitações, leis sociais que ergueram os humildes de sua situação de exploração desumana e possibilitaram que o povo trabalhador fosse pondo-se de pé. A gigantesca obra social realizada pela Fundação Eva Perón sob a sobre-humana condução da inesquecível Evita etc, etc”.[2]
Interessante notar que a sua opção pelo peronismo tinha estreita relação com a maneira como via a população mais pobre: não como pessoas a serem tuteladas ou dirigidas, mas sim sujeitos ativos da história. Segundo Gastón Pauls, documentarista responsável produtor responsável por um documentário sobre a vida do padre,
“A relação de Carlos com o peronismo e com a Igreja está muito ligada à relação de Carlos com os pobres. Mugica tornou-se peronista quando começou a notar que ele festejava a queda de Perón e os pobres não. Evidentemente, existe aí algo que deve ser escutado. Se os pobres estão tristes pela queda de Perón, há uma relação direta entre Perón e os pobres. Essa era a leitura que ele fazia de tudo”.
Um sacerdote que discutia abertamente temas como imperialismo e desigualdade social não era bem visto pelo alto clero. Para Alberto Sily, sociólogo e ex-padre integrante do MSTMU:
“Carlos era um transgressor. Sua opção “agrediu” os poderes estabelecidos, político, econômico e eclesiástico (…) Na nossa sociedade, dentro do sistema que a aprisiona e dentro de uma Igreja institucionalmente cúmplice, não se tolera a renúncia pública a uma classe social, nem a eleição da pobreza em vida e a convivência com os pobres, além de pobres, peronistas( …) Carlos também leu, como muitos, nas paredes do bairro Norte (habitat da oligarquia e sede do seu poder), nos dias que ia morrendo Evita, o grafite “viva o câncer”. Expressão de ódio mais cruel e inumano à mulher que os pobres mais amaram”.
Em 1973, esteve no voo que traz Juan Domingo Peron de volta a Argentina após um exílio de 18 anos na Espanha. Era uma época de grande polarização política no país, com a atuação de organizações paramilitares de extrema-direita, como a Triple A (Alianza Anticomunista Argentina), que entre 1973 a 1976 executa 1.122 pessoas, entre elas artistas, advogados, políticos de esquerda, estudantes e ativistas sociais. Foi esse grupo o responsável pela morte de Carlos, em 11 de maio de 1974 , alvejado pelas balas de uma metralhadora do lado de fora da igreja após a realização de uma missa. Em 1976 inicia-se a ditadura militar, que duraria até 1983, deixando um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, dentre eles aproximadamente 500 crianças.
Antes de falecer, teria dito a uma enfermeira:
“Ahora más que nunca tenemos que estar junto al pueblo”.
*Rafael Molina Vita é formado em Direito, membro do coletivo estadual de Direitos Humanos do PT/SP e da ABJD.
Notas:
1) Em 2012 foi lançado o filme “Elefante Branco”, dirigido por Pablo Trapero, inspirado na vida de Carlos Mugica e estrelado por Ricardo Dárin, Martina Gusman e Jeremie Renier.
Vídeo com o trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=upeqO7aIZ2I.
2) Oração aos pobres, letra de Carlos Mugica:
Señor: perdóname por haberme acostumbrado a ver que los chicos parezcan tener ocho años y tengan trece.
Señor: perdóname por haberme acostumbrado a chapotear en el barro. Yo me puedo ir, ellos no.
Señor: perdóname por haber aprendido a soportar el olor de aguas servidas, de las que puedo no sufrir, ellos no.
Señor: perdóname por encender la luz y olvidarme que ellos no pueden hacerlo.
Señor: yo puedo hacer huelga de hambre y ellos no, porque nadie puede hacer huelga con su propia hambre.
Señor: perdóname por decirles “no sólo de pan vive el hombre” y no luchar con todo para que rescaten su pan.
Señor: quiero quererlos por ellos y no por mí.
Señor: quiero morir por ellos, ayúdame a vivir para ellos.
Señor: quiero estar con ellos a la hora de la luz.
3) O papa Francisco mantém diálogo constante com os “curas villeros”, chegando a indicar dois destes padres como bispos, o que incomodou alguns setores conservadores da Igreja argentina.
4) Pequeno vídeo em homenagem ao padre: https://www.youtube.com/watch?v=Nzx5AOINH40.
https://www.elhistoriador.com.ar/carlos-mugica-padre-mugica/
https://www.elhistoriador.com.ar/el-padre-mugica-y-su-conversion-al-peronismo/.
[1] Un sacerdote francés, el abate Pierre, de quien todavía recuerdo una frase decisiva: «Antes de hablarle de Dios a una persona que no tiene techo es mejor conseguirle un techo». Es decir que conseguirle techo a una persona ya es hablarle de Dios. No nos olvidemos que Cristo curaba a los enfermos, les daba de comer a los que tenían hambre y de beber a los que tenían sed. Y no lo hacía para que después escucharan el sermón sino porque esa es su manera de amar: agarrando al hombre por entero. Antes de ingresar en el seminario yo tenía una visión maniquea de la existencia. El alma era buena y el cuerpo malo. Eso viene de Platón, y se metió en la Iglesia con San Agustín; aún perdura esa concepción, sobre todo en lo relativo al sexo. Pero estamos viviendo un amplio proceso de liberación para desterrar esa actitud individualista del seno de la Iglesia”.
[2] Hoy los cristianos hemos comprendido que esta exigencia del amor no sólo tiene una dimensión personal sino también, una dimensión estructural. Tengo que amar no sólo a nivel de individuos sino a nivel de pueblo. Y fue a nivel de pueblo que el peronismo, a través de su paso por el gobierno, realizó el mandato evangélico del amor real y verdadero a los humildes. Basten pocos ejemplos; 900.000 viviendas, leyes sociales que levantaron a los humildes de su situación de explotación inhumana y posibilitaron que el pueblo trabajador se fuera poniendo de pie. La gigantesca obra social realizada por la Fundación Eva Perón bajo la sobrehumana conducción de la inolvidable Evita, etc., etc.”
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