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"Confiar no Ocidente não funciona": Com Ebrahim Raisi, Irã abraça seu futuro eurasiano

"O Irã passa a dar menos importância a nações ocidentais, sobretudo a nações europeias, e mais ênfase ao Sul Global, ao Oriente, a países vizinhos e, claro, aí incluídas China e Rússia", diz Mohammad Marandi, da Universidade de Teerã
Pepe Escobar
Asia Times
Paris

Tradução:

Seyyed Ebrahim Raisi foi empossado no cargo de oitavo presidente do Irã na quinta-feira passada (5) no Majlis (Parlamento), dois dias após ter recebido o endosso oficial formal do Líder da Revolução Islâmica, Aiatolá Khamenei.

Representantes do secretário-geral da ONU; da OPEP; da UE; da União Econômica Eurasiana; da União Inter-islâmica; e alguns chefes de Estado e ministros de Relações Exteriores compareceram ao Majlis, entre os quais o presidente do Iraque Barham Salih e o presidente afegão Ashraf Ghani.

Leia também: Chefe do Judiciário e possível futuro líder supremo do país: Quem é Ebrahim Raisi, novo presidente do Irã?

Em vários sentidos, a República Islâmica do Irã entra agora em nova era. O próprio Khamenei traçou os contornos dos novos tempos num discurso curto, firme, “A Experiência de Confiar nos EUA” [ing. The Experience of Trusting the US’].

A análise estratégica de Khamenei, concebida já antes do resultado final das negociações para o JCPOA em Viena em 2015, que cobri em meu e-livro para o Asia Times, “Persian Miniatures”, foi premonitória: 

“Durante as negociações, disse repetidas vezes que [os EUA] não cumprem o que prometem.” Assim sendo, no fim, “a experiência nos diz que [as promessas dos EUA] são para nós veneno mortal.” Durante o governo Rouhani, Khamenei acrescenta que “já está bem claro que confiar no Ocidente não funciona”.

Com perfeito timing, um novo livro, “Sealed Secret”, seis volumes, de autoria do ministro Javad Zarif das Relações Exteriores, agora deixando o governo, e dois altos negociadores do JCPOA, Ali Akbar Salehi e Seyed Abbas Araghchi (ainda envolvido no atual debate, emperrado, em Viena) será publicado essa semana, por enquanto, ainda só em farsi.

O professor Mohammad Marandi, da Universidade de Teerã, resumiu a meu pedido o mapa do caminho à frente: 

“As decisões da política externa do Irã são bem claras. O Irã passa a dar menos importância a nações ocidentais, sobretudo a nações europeias, e mais ênfase ao Sul Global, ao Oriente, a países vizinhos e, claro, aí incluídas China e Rússia. Não significa que os iranianos ignorarão completamente a Europa, caso decidam voltar ao JCPOA. Os iranianos aceitarão, se [os europeus] cumprirem suas obrigações. Até aqui, contudo, não se veem sinais disso.”

Marandi não deixou de se referir ao discurso de Khamenei: “É muito claro. Quando diz ‘não confiamos no Ocidente, esses últimos oito anos mostraram isso’, está dizendo que o próximo governo bem fará se aprender da experiência desse oito anos.”

Mas o principal desafio que aguarda Raisi não será a política externa, mas o quadro doméstico, com sanções que ainda mordem furiosamente: “Em relação à política econômica, tenderá a mais justiça social, afastando-se do neoliberalismo, expandindo a rede de segurança para os vulneráveis e desprotegidos.”

Chega a ser intrigante, se se compara o que diz Marandi e as visões de um diplomata iraniano muito experiente que prefere manter-se anônimo e muito bem posicionado como observador do conflito doméstico: 

(…) “Durante os oito anos de Rouhani, contra o conselho do Supremo Líder, o governo consumiu muito tempo em negociações, e não investiu no potencial interno. Seja como for, os oito anos estão agora acabados e, ao contrário das promessas de Rouhani, temos hoje os piores números econômicos e financeiros do Irã, em 50 anos.”

O diplomata é bem claro quanto à “importância de dar atenção às nossas capacidades e habilidades internas, ao mesmo tempo em que mantemos fortes relações econômicas com nossos vizinhos, e também com Rússia, China, América Latina, África do Sul, além de manter laços de respeito mútuo com europeus e com o governo dos EUA, se mudar o próprio comportamento e aceitar o Irã como é, sem insistir sempre em tentar derrubar o estado iraniano e agredir o povo iraniano por todos os meios possíveis.”

Os iranianos são herdeiros de uma tradição de pelo menos 2.500 anos de finíssima diplomacia. Assim, mais uma vez, nosso interlocutor teve de destacar que “o Supremo Líder jamais, nunca, nunca disse ou acreditou que devêssemos cortar relações com os europeus. É o oposto disso: ele crê profundamente na noção de ‘diplomacia dinâmica’, mesmo no que tenha a ver com os EUA. Disse várias vezes que não temos problema com os EUA, se negociarem respeitosamente conosco.”

"O Irã passa a dar menos importância a nações ocidentais, sobretudo a nações europeias, e mais ênfase ao Sul Global, ao Oriente, a países vizinhos e, claro, aí incluídas China e Rússia", diz Mohammad Marandi, da Universidade de Teerã

Agência Fararu
O líder supremo aiatolá Ali Khamenei e o presidente do Irã Ebrahim Raisi em cerimônia transmitida ao vivo pela televisão estatal.

E agora… Viajemos no tempo

Não há ilusões em Teerã de que o Irã, sob Raisi, muito mais que sob Rouhani, continuará a ser alvo de incontáveis táticas de “pressão máxima” e/ou de Guerra Híbrida empregadas por Washington, Tel Aviv e pelo OTANstão, operações sob falsa bandeira as mais rudes incluídas, com todo o combo celebrado pelas análises que saem da Think-tank-elândia norte-americana redigidas por “experts” nos cubículos do departamento de Estado.

Tudo isso é irrelevante em termos do que realmente conta, adiante, no tabuleiro do xadrez no Sudoeste Asiático.

O falecido grande René Grousset, em seu clássico de 1951 “L’Empire des Steppes”, destacou “o modo como o Irã, renovando-se ao longo de 50 séculos”, sempre “deu provas de impressionante continuidade”. Isso, porque essa força da civilização iraniana, como também aconteceu na civilização chinesa, assimilou todos os estrangeiros que conquistaram seu solo, dos seljúcidas aos mongóis: 

“A cada vez, por causa do brilho radiante de sua cultura, o Iranismo reapareceu com vitalidade renovada, a caminho para um novo renascimento.”

A possibilidade de um “novo renascimento” implica hoje um passo além de “nem Leste nem Oeste” — conceito construído pelo Aiatolá Khomeini: é, mais, um retorno às raízes (eurasianas), o Irã revivendo o próprio passado para lidar com o novo futuro, multipolar.

O coração político do Irã está na sofisticada organização urbana do platô setentrional, resultado de um processo de vários milênios, ainda em movimento. Ao longo de todos os “50 séculos” de Grousset, o platô foi lar da cultura iraniana e coração estável do estado.

Em torno desse espaço central há muitos territórios ligados, historicamente e linguisticamente à Pérsia e ao Irã: na Anatólia Oriental, na Ásia Central e no Afeganistão, no Cáucaso, no Paquistão Ocidental. E há também territórios xiitas de outros grupos étnicos, principalmente árabes, no Iraque, Síria, Líbano (Hezbollah), no Iêmen (os Zaiditas) e no Golfo Persa (Bahrain, xiitas em Hasa na Arábia Saudita).

Esse é o arco xiita — em evolução num processo complexo de Iranização, que é sobretudo político e religioso, não cultural e linguístico. Fora do Irã, tenho visto nas minhas viagens o modo como xiitas árabes no Iraque, Líbano e Golfo, xiitas dari/farsi no Afeganistão, xiitas do Paquistão e Índia e os xiitas turcófonos no Azerbaijão levantam os olhos na direção do Irã político.

Assim, a grande zona de influência do Irã depende principalmente do xiismo, não do radicalismo islâmico nem do idioma persa. É o xiismo que permite que o poder político no Irã mantenha uma dimensão eurasiana — do Líbano ao Afeganistão e Ásia Central — e isso reflete mais uma vez a “continuidade” de Grousset, quando se refere à história persa/iraniana.

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Da História Antiga à era medieval, sempre esteve fora de projetos imperiais nascidos no Sudoeste da Ásia e/ou na bacia mediterrânea, que vieram a conduzir as tentativas para criar um território eurasiano.

Os persas, que estavam a meio caminho entre a Europa Mediterrânea e a Ásia Central, foram os primeiros que tentaram construir um império eurasiano da Ásia ao Mediterrâneo, mas sua expansão rumo à Europa foi contida pelos gregos no século 5º A.C.

Então coube a Alexandre o Grande, no mais puro modo bandido de guerra-relâmpago, arriscar-se até a Ásia Central e Índia, fundando assim, de fato, o primeiro império eurasiano. O que acabou por materializar, numa larga medida, o império persa.

Mas aconteceu algo ainda mais extraordinário: a presença simultânea dos impérios Parto e Kush, entre o Império Romano e o Império Han durante os dois primeiros séculos do primeiro milênio.

Foi essa interação que primeiro permitiu trocas comerciais e culturais e a conectividade entre as duas extremidades da Eurásia, entre os Romanos e os Han chineses.

Mas o maior espaço territorial eurasiano, fundado entre os séculos 7º e dez, seguindo as conquistas árabes, foi o dos Califatos Umayyads e Abasidas. O Islã foi o coração dessas conquistas árabes, remixando composições imperiais anteriores, da Mesopotâmia aos persas, gregos e romanos.

Historicamente, esse foi o primeiro arco verdadeiramente econômico, cultural e político eurasiano, do século 8º ao século 11, antes de Genghis Khan monopolizar O Grande Quadro.

Tudo isso está muito vivo no inconsciente coletivo de iranianos e chineses. Eis por que o acordo de parceria estratégica China-Irã é muito maior que mero arranjo econômico de $400 bilhões. É manifestação gráfica do objetivo ao qual visa o renascimento das Rotas da Seda.

E parece que, anos antes do fato, Khamenei vira para que lado soprava o vento (do deserto).*******


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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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