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Nicarágua: há 5 anos, EUA iniciavam golpe para destruir governo popular de Ortega

Mídia internacional reconhecia conquistas de Ortega e apreço que havia reunido, sobretudo dos mais pobres, o que se tornou uma ameaça à Washington
Dan Kovalik
JP+
Manágua

Tradução:

Nos primeiros meses de 2018, a Nicarágua não parecia um candidato forte para uma tentativa de golpe de Estado. O governo de Daniel Ortega tinha um índice de aprovação de 80% segundo uma pesquisa realizada uns meses antes. O país experimentara oito anos de crescimento econômico contínuo, durante os quais alcançou 90% de soberania alimentar e reduziu a fome em 40% (segundo o Índice Mundial da Fome da ONU).

Na década que transcorreu desde a reeleição de Ortega à presidência em 2006, seu governo tinha reconstruído os serviços públicos de saúde e educação, repavimentado as estradas em nível nacional e estabelecido um fornecimento de energia elétrica confiável com cobertura praticamente em todo o país, baseada em grande parte em fontes renováveis.

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Não era de estranhar que o governo sandinista tenha aumentado sua porcentagem de votos em três eleições sucessivas. Mesmo os meios de comunicação internacionais, ainda que hostis a Daniel Ortega, tiveram que reconhecer que tinha “cimentado o apoio popular entre os nicaraguenses mais pobres” (The Guardian) e que “muitos pobres que recebem casa e outros benefícios do governo o apoiam” (The New York Times).

Mas estes mesmos êxitos apresentavam perigos. Como mostra o novo livro Nicaragua: A History of US intervention and Resistance, da perspectiva de Washington estes êxitos supunham “a ameaça de um bom exemplo… Era preciso fazer algo para solapar o forte apoio popular de Ortega”.

Nicarágua era a única exceção em uma América Central em grande parte submissa à influência política e econômica estadunidense, especialmente depois do golpe de estado na vizinha Honduras, que derrubara o presidente progressista Manuel Zelaya em 2009. Washington tinha tentado e fracassado em sua tentativa de impedir que Ortega voltasse ao poder em 2007 e agora estava decidido a tentar novamente. O êxito dos sandinistas dificultara muito a tarefa, mas os Estados Unidos acreditavam ter encontrado brechas que podiam aproveitar.

Grupos violentos fortemente armados sequestraram o país. Fotos tiradas pelos opositores

O núcleo duro da dissidência procedia de partidos políticos anti-sandinistas pequenos e divididos. Nenhum deles era capaz de ganhar o poder por si só, e só tinham um objetivo comum: derrubar Daniel Ortega. Se conseguissem deixar de lado temporariamente suas divergências, poderiam conseguir o apoio da relativamente pequena classe alta nicaraguense e da classe média, cujas opiniões poderiam ser influenciadas por uma vigorosa campanha antigovernamental.

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Depois de reunir estes grupos, a embaixada estadunidense advertiu a organização patronal, COSEP, que devia deixar de cooperar com o governo, sinalizando que a Lei NICA e ameaças de sanções econômicas estavam sendo consideradas pelo Congresso se a Nicarágua não se alinhasse com a política estadunidense.

Mídia internacional reconhecia conquistas de Ortega e apreço que havia reunido, sobretudo dos mais pobres, o que se tornou uma ameaça à Washington

TV Brasil – EBC/Flickr
Estados Unidos investiram até US$ 200 milhões em meios de comunicação da oposição, ONGs e organismos de "direitos humanos" (07/05/2010)

Como se explica no livro, as regulamentações do funcionamento das organizações sem fins lucrativos na Nicarágua naquela época eram relativamente frágeis, o que permitiu aos Estados Unidos investir até 200 milhões de dólares em meios de comunicação da oposição, ONGs e organismos de “direitos humanos” por meio de agências como a National Endowment for Democracy (NED) e a USAID. Kenneth Wollack, mais tarde presidente da NED, logo afirmaria ao Congresso dos Estados Unidos que diferentes agências estadunidenses tinham formado cerca de 8.000 jovens nicaraguenses em “promoção da democracia”.

De fato, como disse a Global Americans, financiada pela NED, estas agências estavam “criando as bases para a insurreição”. Com capacitação da USAID, muitos destes jovens contribuiriam para a enorme campanha nas redes sociais que estava a ponto de entrar em ação. Acumulou-se silenciosamente financiamento, armas, drogas e alimentos para utilizá-los na tentativa golpista. Jovens de setores mais pobres e muitas vezes delinquentes logo receberiam pagamentos diários de entre 10 e 15 dólares por levantar e defender bloqueios nas estradas para tomar o controle de bairros em cidades chave.

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Havia outros dois componentes críticos. As agências estadunidenses destinaram recursos aos meios de comunicação local da oposição, como o diário La Prensa e os sites web Confidencial e 100% Noticias. O mesmo ocorreu com as agências locais de “direitos humanos” (uma das quais foi criada pela administração Reagan na década de 1980), que assegurariam que qualquer baixa no conflito que se aproximava fosse atribuída ao governo. Tanto os supostos meios “independentes” como os grupos de “direitos humanos” seriam depois aceitos, sem questionamentos, como fontes autênticas pela mídia internacional e por organismos como a Anistia Internacional.

Os sequestros, torturas, assassinatos e queima de seres humanos foram executados nos chamados “bloqueios da morte”. Fotos tiradas por opositores.

Depois destes preparativos, só faltava uma faísca adequada para acender o fogo insurrecional. No princípio de abril, parecia que esta acontecera (literalmente) com um incêndio florestal na remota Reserva Florestal Indio Maíz. Apesar dos esforços do governo para sufocar as chamas, os protestos dos jovens por sua “inação” não tardaram em brotar, sendo repercutidos pelos meios de comunicação internacional. No entanto, os distúrbios só puderam manter-se por uns dias, já que o fogo se extinguiu com a ajuda de chuvas fora de época.

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Naquele mesmo mês surgiu uma segunda oportunidade para avançar com os planos. Assim como muitos governos, o da Nicarágua encontrava-se sob pressão para reformar seu sistema público de aposentadorias, cujas finanças tinham se tornado insustentáveis. Tinha-se enfrentado as petições do setor privado para cortar drasticamente as aposentadorias, propondo cortes muito menores e, em troca, melhorar os serviços de saúde dos pensionistas.

Em outras circunstâncias, as mudanças não teriam suscitado controvérsia, mas, atiçados pelos meios de comunicação de direita e pelas redes sociais, houve alguns pequenos protestos de pessoas mais velhas. Rapidamente uniram-se a eles nas ruas “estudantes” que de repente tinham um improvável interesse nas aposentadorias e, em algumas cidades, grupos de delinquentes organizados por líderes da oposição, como a ex-guerrilheira Dora María Téllez.

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Em 18 de abril ocorreram violentos enfrentamentos entre grupos da oposição e a polícia ou jovens sandinistas, inclusive ataques a lugares emblemáticos da revolução, como o histórico “Comandito” de Monimbó, em Masaya. Embora não tenha havido mortos naquele dia, a campanha nas redes sociais começou: milhares de mensagens no Facebook alegavam mortes por disparos da polícia que não tinham acontecido ou eram devidas a outras causas.

Em 19 de abril, o cenário estava preparado para uma maior violência, já que os “estudantes” de repente tiveram acesso a centenas de armas de morteiro caseiras, instaladas nos “bloqueios” feitos com paralepípedos arrancados das ruas. Nesse dia morreu o primeiro de 22 policiais. Um segundo foi abatido em 21 de abril e, em apenas quatro días, 121 tinham sido feridos, principalmente a bala. A intentona golpista começara.

Dan Kovalik e John Perry | JP+
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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