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Números da pandemia na Bolívia crescem dez vezes em apenas dois meses

Com apenas 5,5% da população mundial, América do Sul já acumula 22% dos casos da doença e 18% dos óbitos provocados pelo novo coronavírus
José Eustáquio Diniz Alves
Projeto Colabora
São Paulo (SP)

Tradução:

A Bolívia já estava vivendo uma crise política complexa, quando foi atingida pela pandemia da Covid-19. Nosso vizinho do oeste é o país com a menor renda per capita e o menor Índice de Desenvolvimento Humano da América do Sul, mas vinha apresentando avanços sociais nos últimos anos, especialmente no período do chamado superciclo das commodities.

Da independência, em 1825, até a eleição de Evo Morales, em dezembro de 2005, o país teve 83 governos (sendo que 36 não duraram mais do que um ano). No século XXI, Evo Morales chegou ao poder, quando a Constituição boliviana não permitia reeleição. Mas com a promulgação da nova Carta Magna, de 2009, foi permitida duas reeleições ao cargo. Assim, Evo foi eleito em 2006 e, posteriormente, em 2010 e 2014 chegando ao limite de mandatos possíveis.

Porém, em 2016, os partidários de Morales convocaram um referendo para modificar a Constituição novamente, para permitir que ele concorresse a um quarto mandato em 2019. Mas a proposta foi rejeitada pela maioria dos eleitores por uma pequena margem. Todavia, um ano depois, o presidente conseguiu a liberação do Tribunal Constitucional para disputar a reeleição indefinidamente. A Corte determinou, em novembro de 2017, que o limite de dois mandatos presidenciais era “uma violação dos direitos humanos”. A oposição acusou o tribunal de passar por cima do resultado do referendo. Assim, ele concorreu ao quarto mandato consecutivo já com sua candidatura sendo contestada por seus opositores.

Nas eleições de outubro de 2019 os resultados foram contestados, o Supremo Tribunal Eleitoral (STE) suspendeu a rápida contagem dos votos, Evo Morales apresentou sua renúncia ao lado de seu vice-presidente, Álvaro García Linera, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, assumiu temporariamente a presidência do país e novas eleições foram marcadas para 03 maio de 2020.

Mas no meio desta crise política, o país teve que enfrentar uma emergência sanitária mais urgente e as eleições foram suspensas. Em junho, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia anunciou que a eleição presidencial no país deverá ocorrer em 6 de setembro de 2020, quase um ano depois da polêmica eleição que culminou com a renúncia do presidente anterior.

Portanto, a Bolívia enfrenta atualmente uma crise na saúde, na economia e na política e tem dificuldades para controlar o avanço da pandemia. A experiência dos países que conseguiram controlar a difusão do Sars-CoV-2, como Uruguai, Paraguai e Costa Rica, mostra que a união entre o Poder Público e a sociedade civil é essencial. Desta forma, os conflitos sociais e a instabilidade política são desvantagens do povo boliviano neste momento.

No dia 03 de maio (data inicial das eleições) o número diário de pessoas infectadas pelo novo coronavírus estava abaixo de 100 casos em 24 horas e no início de julho passou para mais de 1.000 casos diários. O número de mortes que estava abaixo de 5 óbitos diários, agora está acima de 50 óbitos em 24 horas. Portanto, as cifras diárias da covid-19 decuplicaram no curto espaço de 2 meses. Neste ritmo, não será fácil realizar as eleições presidenciais em setembro de 2020.

Para conhecer melhor os dramas e os desafios enfrentados pelo povo boliviano fizemos uma entrevista com uma testemunha ocular da luta travada contra o novo coronavírus na Bolívia, a economista e demógrafa María del Carmen Ledo García, PhD pela Universidad Tecnológica de Delft, Holanda, pesquisadora e catedrática titular da “Universidad Mayor de San Simón”, diretora do “Centro de Planificación y Gestión (CEPLAG-UMSS)” e participante da Associação Latino Americana de População (ALAP). Mas como de costume, vamos iniciar este diário com uma breve caracterização sociodemográfica e econômica do país e alguns dados comparativos do avanço da pandemia na América do Sul e no mundo.

Com apenas 5,5% da população mundial, América do Sul já acumula 22% dos casos da doença e 18% dos óbitos provocados pelo novo coronavírus

Foto Aizar Raldes
Em meio à pandemia do novo coronavírus, mulheres indígenas aimarás usam máscaras em um mercado em La Paz

Breve panorama demográfico e socioeconômico da Bolívia

O Estado Plurinacional da Bolívia tem uma área de 1.098.581 km2 e uma densidade demográfica de 10 habitantes por km2. Segundo a Divisão de População da ONU, a Bolívia tinha uma população de 3,1 milhões de habitantes em 1950 e chegou a 11,7 milhões em 2020. As projeções indicam que a população chegará, na hipótese média, a 17,4 milhões de habitantes em 2100.

As mulheres bolivianas tinham em média 6,5 filhos no quinquênio 1950-55, acima da média da América Latina e Caribe (ALC). A fecundidade caiu nas últimas décadas, embora o valor de 2,8 filhos, no quinquênio 2015-20, continue acima da média da região.

A mortalidade infantil era de 178 óbitos para cada mil nascimentos em 1950-55 e caiu para 30 por mil atualmente, houve uma queda muito grande, mas o número atual é o dobro do valor da ALC.

A esperança de vida ao nascer passou de 40 anos para 71 anos. O Índice de Envelhecimento (IE) era de 23 idosos (60 anos e mais) para cada 100 jovens de 0 a 14 anos e está em 34 idosos por 100 jovens atualmente. Em consequência, a Bolívia possui uma estrutura etária rejuvenescida, o que propiciaria melhores condições para reduzir a letalidade da pandemia.

Evidentemente, estando na América Latina – o continente mais desigual do mundo – existe muita desigualdade social na Bolívia, assim como no Brasil. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em 1990, era de 0,536 na Bolívia e de 0,611 no Brasil, passando, em 2018, para 0,703 na Bolívia (114º lugar no mundo) e para 0,761 no Brasil (79º lugar no mundo).

Em 1980, a renda per capita da Bolívia representava dois terços da renda média mundial e menos da metade da renda da ALC. Nos últimos 40 anos a renda da Bolívia se distanciou da renda média mundial e manteve, aproximadamente, a mesma proporção da renda da região (e também do Brasil), conforme mostra o gráfico abaixo, com base nos dados do FMI, a preços correntes, em poder de paridade de compra (ppp na sigla em inglês). Em 2019, a Bolívia tinha uma renda per capita de US$ 7,8 mil, enquanto o Brasil e a ALC tinham renda de cerca de US$ 16,6 mil e a média mundial de US$ 18,4 mil.

Desde 2015 a ALC cresce menos que a média da economia internacional. O estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), “Dimensionar los efectos del Covid-19 para pensar en la reactivación” (21/04/2020), mostra que a pandemia da covid-19 pegou a ALC em um momento de debilidade macroeconômica, pois, no decênio posterior à crise financeira de 2008/09, o continente apresentou o menor crescimento desde a década de 1950.

A Cepal estima um aumento do desemprego e da pobreza e uma redução da renda per capita em todos os países da região. Estima também uma queda do PIB, em 2020, de 5,3% na ALC, de 5,2% no Brasil, de 5,2% na América do Sul e de 3% na Bolívia. Evidentemente, quanto maior for o impacto da pandemia maior será o pandemônio econômico e maior será o sofrimento das populações afetadas.

Por conseguinte, é fundamental vencer a batalha contra o coronavírus. Quanto mais rápido o coronavírus for eliminado, mais rapidamente o país vitorioso poderá voltar à ativa e reduzir os efeitos negativos do aumento do desemprego, da pobreza e da queda da renda média.

Dados sobre a Covid-19 no mundo, na América do Sul, no Brasil e na Bolívia

A América do Sul tem se consolidado como o novo epicentro da pandemia do Sars-CoV-2. Na América do Sul, o Brasil é o país que apresenta o maior número de casos e mortes, mas o Chile é o país que apresenta os maiores coeficientes de incidência (15,9 mil casos por milhão)  e de mortalidade (344 óbitos por milhão). O Peru também possui coeficientes de incidência (9,5 mil casos por milhão) e de mortalidade (338 óbitos por milhão) maiores do que os do Brasil. O Equador é o quarto país com maiores coeficientes de incidência (3,6 mil casos por milhão) e mortalidade (277 óbitos por milhão).

A Bolívia está numa situação intermediária com coeficiente de incidência de (3,5 mil casos por milhão) e coeficiente de mortalidade de (131 óbitos por milhão). A Colômbia e a Argentina possuem coeficientes pouco menores. Mas Venezuela, Paraguai e Uruguai estão em situação muito melhor do que os demais países do continente.

No dia 08 de julho, o Brasil que tem 2,7% da população mundial, tinha 14% dos casos e 12,3% dos óbitos globais. A América do Sul com 5,5% da população mundial, acumula 22% dos casos e 18% dos óbitos. A Bolívia, que tem 0,15% da população mundial, acumula 0,34% dos casos e 0,28% dos óbitos globais, conforme a tabela abaixo.

Os gráficos abaixo, com base em material do jornal Financial Times, mostram que não só a Bolívia, mas outros países da América do Sul possuem altos coeficientes de incidência (casos por milhão de habitantes) e de mortalidade (óbitos por milhão de habitantes). As curvas da Bolívia apresentam uma maior inclinação no último mês, mostrando que o número de casos e, especialmente o número de óbitos, tem crescido em ritmo acelerado.

Evidentemente, a Bolívia ainda tem um longo caminho para controlar a propagação do vírus e reduzir significativamente as mortes, ainda mais que tem um processo eleitoral pela frente. A América do Sul é um dos principais epicentros da pandemia global e a Bolívia está cercada por vizinhos (menos o Paraguai) que possuem números expressivos do surto pandêmico.

Entrevista com a demógrafa boliviana Carmen Ledo sobre a pandemia da Covid-19

Para entender melhor o que acontece na Bolívia, apresentamos a entrevista a seguir com uma estudiosa das questões populacionais e econômicas da Bolívia.

Quando a Bolívia percebeu a gravidade da pandemia?

Carmen Ledo – Em 10 de março de 2020, foram relatados os dois primeiros casos da covid-19 importados da Espanha e da Itália, um na cidade de Oruro e outro em Santa Cruz. A Bolívia não estava preparada para enfrentar essa pandemia. Pode-se verificar que, nos últimos anos, houve inúmeras solicitações do setor de saúde ao Estado boliviano, de modo que houvesse um aumento para 5 a 10% no gasto total como porcentagem do PIB. A Bolívia apresenta os piores indicadores de saúde da América Latina, ocupa o penúltimo lugar depois do Haiti em termos de incidência de mortalidade infantil, seus resultados são duas vezes maiores que os da média da América Latina, que tem uma mortalidade infantil de 15 por 1.000 nascidos vivos. Simplesmente, a covid-19 nos encontra em situação de extrema vulnerabilidade, sem sistema de saúde articulado, sem material ou equipamento médico e com profissionais do setor de saúde desprotegidos e golpeados em suas demandas nos últimos anos.

De acordo com os padrões internacionais, deveria haver cerca de 155 hospitais públicos de terceiro nível na Bolívia. Até 2020, apenas 34 hospitais públicos foram registrados nos diferentes Departamentos do país para atender cerca de 12 milhões de habitantes. Situação que revela a seriedade de enfrentar essa pandemia.

Confirmando o desamparo do setor da saúde, dados do site do Ministério da Saúde revelam que 92% são hospitais de primeiro nível, 6% de segundo nível e 2% de terceiro nível. Na Bolívia, os estabelecimentos gerais, que em muitos casos se referem a espaços com pessoal de saúde reduzido e a maioria deles não possui equipamento básico, portanto, não atendem às condições mínimas para atendimento de pacientes.

Consequentemente, a Bolívia soube da seriedade de enfrentar a pandemia desde o primeiro dia, por não ter hospitais de terceiro nível adequadamente equipados para atender aos requisitos mínimos da Covid-19. O pequeno número de equipes de terapia intensiva leva a prever um colapso evidente.

Além do exposto, a diversidade histórica estrutural da Bolívia complica o panorama, deve-se notar que a organização do território é debatida entre concentração versus dispersão, 70% da população urbana está concentrada em três regiões metropolitanas: La Paz, Cochabamba e Santa Cruz.

Precisamente nessas cidades estão concentrados mais de 75% dos casos da Covid-19 na Bolívia. São cidades que tiveram crescimento horizontal e baixa densidade em suas pegadas urbanas e apresentam múltiplos danos e cargas ambientais, com altos níveis de contaminação do ar, da água e do solo.

Que medidas sanitárias foram tomadas pelo governo e pela sociedade civil?

A resposta do governo foi rápida, apesar de todas as críticas que surgiram, começou com a rígida quarentena em 22 de março, quando cerca de 26 casos tinham sido relatados no país. Foi lenta a evolução do número de infectados até o final do mês de abril. Foi durante o mês de maio que o número de casos começou a aumentar, chegando a 15 mil em 10 de junho.

Sob o princípio de recuperação da economia, houve uma etapa de relaxamento das medidas de distanciamento e o confinamento provocando uma nova escalada. Os contágios se aceleram drasticamente antes de 5 de julho, quando tinham quase 40 mil casos.

Como verificado, as medidas sanitárias adotadas pelo governo não receberam apoio da sociedade civil, tiveram que lidar com problemas políticos, lutas de poder e convocações de eleições. Conflitos de vários tipos explicam a aceleração dos casos, muitos líderes declararam que o vírus não existia, disseram ser uma invenção do capitalismo.

Aumentaram os protestos, bloqueios em locais específicos, entre outras manifestações nas cidades que hoje são as mais atingidas, Santa Cruz, Beni, Cochabamba e La Paz. Tem sido difícil reverter esse discurso, assim é de se esperar que essa desinformação seja o fator explicativo na aceleração dos contágios. Na última semana de junho, foi possível testemunhar que as brigadas de médicos e voluntários de saúde foram expulsas quando realizavam o rastreamento dos novos casos.

Se observa que a letalidade da covid-19 é espacialmente diferenciada na Bolívia. Há alta mortalidade na região metropolitana de Cochabamba, onde a falta de acesso ao consumo humano de água potável é a principal causa de doença e de mortes.

Por exemplo, nos bairros do sul da cidade de Cochabamba, uma importante sede da guerra pela água do ano 2000, eles não possuem redes de distribuição de água ou rede pública de esgoto. São áreas que se concentram em seu território: materiais de demolição e detritos de construção, línguas negras, estação de tratamento de esgoto, aterro municipal, indústrias de petróleo, fossas negras, pesticidas e/ou fertilizantes usados pelos agricultores residentes no referido espaço, o que tem gerado um desastre ecológico e uma incidência muito alta do contágio do novo coronavírus.

Se trata do local de residência dos grupos mais vulneráveis da sociedade, agrupamentos humanos que historicamente apresentam alto risco de morbimortalidade. O nível de conflito tem aumentado a cada dia, o que dificulta ainda mais as ações combinadas e aumenta o risco e a proliferação do vírus.

Como a quarentena (isolamento social) tem funcionado na Bolívia?

Os interesses de índole político-partidários e a alta incidência de domicílios inseridos em atividades por conta própria não permitiram que a quarentena funcionasse bem. Além dos aspectos apontados, não há certeza dos números registrados, uma vez que na Bolívia foram poucos os testes e há uma subenumeração dos casos e dos registros de óbitos. Tudo isto – somado à (des)informação indicada anteriormente – afeta as ações e políticas de saúde para conter a pandemia.

Na Bolívia, em 2020, os resultados mostram que existem deficiências nos níveis nacional, regional e municipal da gestão da saúde e do controle da doença, com ênfase na participação da comunidade, com equidade, para satisfazer necessidades, serviços e infraestrutura básicos, incluindo: atenção primária à saúde; a capacitação de recursos humanos com novas orientações; a redução dos riscos à saúde decorrentes da poluição ambiental, os problemas habitacionais, abastecimento de água, saneamento básico e a reavaliação de práticas preventivas e curativas, situação que poderia reduzir o tempo de sofrimento das famílias pobres.

Recomenda-se no futuro que o país tenha um sistema de pesquisa em saúde que articule o conjunto de instituições acadêmicas, assistenciais e sociais que geram conhecimento. Atualmente, esses atores operam de maneira fragmentada, pesquisadores individuais ou organizações não-governamentais, e grande parte desse conhecimento não está relacionado às necessidades mais relevantes da população boliviana, portanto, há necessidade de reverter essa situação.

Naturalmente, os elementos declarados são apenas alguns dos paliativos que poderiam ser aplicados e de forma alguma se pretendeu elaborar uma lista exaustiva. O mais importante a ser destacado é que há uma riqueza de experiências acumuladas que corroboram a eficiência desses métodos na redução dos riscos de mortalidade. A confirmação das diferenças socioeconômicas da mortalidade significa que o sucesso alcançado por um grupo humano específico, habilitado para apropriar-se dos locais onde se captura “externalidades positivas”, não está ao alcance dos demais grupos.

Existem medidas econômicas tomadas pelo governo para garantir que as pessoas mantenham sua sobrevivência? Existem medidas que os especialistas consideram necessárias, mas não estão sendo implementadas?

Foram distribuídos alguns bônus que tentaram mitigar os efeitos da sobrevivência durante a pandemia, mas a Bolívia tem um problema estrutural de trabalho, segundo dados do censo de 2012, cerca de 70% dos empregos são por conta própria, impactando negativamente as condições materiais de vida e impossibilitando se permanecer confinado por muito tempo, porque são famílias que não têm emprego remunerado.

O maior impacto da Covid-19 ocorreu nas cidades bolivianas onde o setor terciário é responsável por mais de dois terços da População Economicamente Ativa (PEA), situação especialmente evidente entre as mulheres, pouco mais de 80% delas trabalham neste setor (embora entre os homens exceda 50%). De fato, essa predominância de serviços expressa a oposição secular entre o lento (e precário) desenvolvimento das forças produtivas das cidades e o crescimento demográfico estimulado por quem imigrou dentro e fora do país em busca de melhores condições de emprego. Parece não haver dúvida de que é precisamente o conteúdo social específico do processo de urbanização que permitiu feedback contínuo sobre a terceirização, uma vez que os serviços não apenas constituem a principal fonte de trabalho, mas também a essência do processo de reprodução da crescente população urbana.

O principal desafio do sistema de saúde boliviano é diminuir a atual exclusão da grande maioria da população do sistema de saúde. O subsistema previdenciário, que concentra a maioria dos recursos, afilia uma reduzida porcentagem da população, enquanto o subsetor público oferece cobertura a 42% da população, em sua maioria de  povos indígenas, e apenas possui 21% dos recursos públicos. Essa desigualdade de acesso reflete-se nas enormes lacunas nos valores dos principais indicadores de saúde. Mais da metade dos estabelecimentos de saúde nas áreas rurais são de responsabilidade dos auxiliares de enfermagem e dos promotores de saúde, enquanto nos estabelecimentos de terceiro nível, localizados nas capitais dos Departamentos, o número de médicos não possui um número adequado de médicos por número de habitantes. Fortalecer os sistemas de informação em saúde é outro desafio. O ator principal nesse assunto (SNIS), concentra suas ações na coleta de informações muito específicas (mortalidade materna e mortalidade infantil) e não tem conseguido desenvolver capacidades para sistematizar a coleta, processamento e disseminação das informações que um sistema de saúde exige para o seu bom funcionamento e para influenciar as políticas públicas.

Quando e como o governo planeja encerrar a quarentena?

Pretende-se encerrar a quarentena na segunda quinzena de julho, justamente quando os dados oficiais refletem uma aceleração no aumento do número de casos infectados e o colapso do setor de saúde. A Bolívia está em plena aceleração do número de infecções e de óbitos da Covid-19 e as ações pertinentes deveriam contemplar uma grande injeção de capital para a implantação de estabelecimentos de terceiro nível e uma concepção voltada para profissionais médicos, equipes paramédicas e com ampla participação das comunidades de base, a fim de gerar sensibilidades e transferir conhecimentos básicos para evitar o aumento do contágio. Em particular, as instruções básicas sobre cuidados deveriam ter sido direcionadas a todas as faixas etárias da população, por meio de conteúdo facilmente transferível para crianças, adolescentes, jovens, idosos e toda a sociedade civil.

A difusão do conhecimento em matéria de saúde deve concentrar-se em aspectos fundamentais que visam gerar práticas diárias de preparo adequado dos alimentos, bem como a conveniência de medidas higiênicas, como a lavagem das mãos, em situação de déficit de acesso aos serviços de água potável por encanamento dentro do domicílio, em uma alta proporção de domicílios bolivianos que residem em espaços urbanos marginais e em áreas rurais, onde será imperativo realizar as ações necessárias para a prestação do serviço, para estender a colocação de matrizes de água potável e esgoto, possibilitar junções domésticas, estabelecer áreas de depósito de resíduos, controlar focos de contaminação, fornecer pastilhas desinfetantes, tratamento e controle da qualidade da água.

Existem lições que você acha que a Bolívia pode ensinar ao Brasil agora mesmo diante da pandemia?

Uma orientação adequada do investimento público deveria ser feita para a implementação de um sistema de saúde que permita mitigar os desequilíbrios econômicos regionais, que são os fatores de expulsão demográfica para as maiores cidades, que receberam fluxos migratórios maciços, que excedeu suas regras e planos de crescimento urbano, substituindo de fato seus regulamentos por um crescimento caótico e espontâneo, independentemente do planejamento, e, portanto, com alta diferenciação e segregação interna que se torna o local onde a Covid-19 está impactando com muita força.

Ainda há muito a ser feito a esse respeito: Deveria ser desenvolvida legislação mais adequada; será necessário gerar os recursos humanos técnicos que, em nível regional ou municipal, possam realizar o planejamento; os processos de tomada de decisão devem ser gerados para aumentar a conscientização sobre a importância de alcançar um crescimento urbano ordenado, bem como fazer com que os planejadores abandonem esquemas frequentemente irrealistas (cidades-jardim ilusórias que só existem no papel, em meio à desordem e a miséria que a realidade nos mostra). Dedicar, em vez disso, a um planejamento urbano abrangente, focado em atender às necessidades de longo prazo da população como um todo. O risco que ameaça as regiões metropolitanas é que elas continuem com sua expansão e uso dos vales agrícolas férteis na construção de casas e assentamentos que possam invalidar a sustentabilidade das regiões e que testemunhem o flagelo de sua população.

Como você e sua família estão lidando com esses meses de quarentena?

Estamos sem sair de casa, trabalhando em casa e com grande preocupação com o aumento de casos e a morte de amigos e conhecidos que revelam a situação de alto risco em que nos encontramos.

José Eustáquio Diniz Alves, sociólogo, mestre em economia e doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de População – NEPO/UNICAMP. É professor e pesquisador independente.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

José Eustáquio Diniz Alves

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