Existe uma pergunta angustiante que está parada no ar: o que passará com o Brasil quando a população perceber que a economia brasileira colapsou e que o programa econômico deste governo não tem a menor possibilidade de recolocar o país na rota do crescimento? Com ou sem reforma da Previdência, qualquer que seja ela, mesmo a proposta pelo Sr. Guedes. E o que ocorrerá depois disso?
O mais provável é que a equipe econômica do governo seja demitida e substituída por algum outro grupo de economistas que atenue os traços mais destrutivos do programa ultra-liberal do governo do governo. Mesmo assim, não estará afastada a possibilidade de que o próprio presidente seja substituído por algum dos seus aliados dessa coalizão de extrema-direita construída de forma apressada e irresponsável, em torno de uma figura absolutamente ignorante, despreparada e insana. Mas se nada disso acontecer e as coisas seguirem se arrastando e piorando nos próximos tempos, o mais provável é que as forças de extrema-direita venham a ser fragorosamente derrotadas nas próximas eleições presidenciais.
O problema é que, quando isto ocorrer, o Brasil já terá completado mais uma “década perdida”, o que torna ainda mais difícil de prever e planejar o que acontecerá, e o que possa ser feito na década de 2020 para retirar o país do caos. Entretanto, é indispensável e urgente que se imagine e reflita sobre esse futuro, para não repetir erros passados. Para tanto, o melhor caminho é começar pela releitura do próprio passado e, em seguida, analisar com mais atenção o caso de alguns países que fizeram idênticas escolhas, e que vão antecipando as consequências do rumo adotado pelo Brasil.
(Foto: Marcos Corrêa/PR) José Luís Fiori
“Aumenta a probabilidade de que o Brasil acabe prisioneiro da mesma “gangorra” que condena o país vizinho, e a própria América do Sul”.
Comecemos, portanto, de forma extremamente sintética, pela década de 80 do século passado, quando o “desenvolvimentismo sul-americano” entrou em crise e foi abandonado por todos os países do continente, onde ele havia sido hegemônico desde o fim da II Guerra Mundial. Esse colapso ocorreu de forma simultânea com a “crise da hegemonia americana” da década de 70, e com a mudança da estratégia econômica internacional dos Estados Unidos durante o governo de Ronald Reagan, na década de 80. Foi nesse período que se deu a grande “virada neoliberal” da América do Sul, quando as elites políticas e econômicas do continente adotaram em conjunto, e quase simultaneamente, o mesmo programa de reformas e políticas liberais preconizado pelo que se chamou, na época, de “Consenso de Washington”.
No entanto, em todos os países em que foram aplicadas, essas políticas neoliberais produziram baixo crescimento econômico e aumento das desigualdades sociais. E na entrada do novo milênio, os resultados negativos contribuíram para que a América do Sul fizesse uma nova meia-volta, desta vez “à esquerda”, aproveitando-se do vácuo criado na região pela guerra global ao terrorismo, o que deslocou a atenção dos Estados Unidos para o Oriente Médio. Em poucos anos, quase todos os países do continente elegeram governos de orientação nacionalista, desenvolvimentista ou socialista, com uma retórica anti neoliberal e com um projeto econômico cujo denominador comum apontava numa direção muito mais nacionalista e desenvolvimentista do que liberal. Foi nesse período, já na primeira década do novo milênio, que o Brasil e alguns outros países do continente decidiram aumentar o controle estatal ou reestatizar diretamente seus recursos energéticos, como aconteceu na Venezuela, depois da descoberta das suas grandes reservas de petróleo do Orinoco, no Brasil depois da descoberta do petróleo do pré-sal no Brasil , e na Argentina, depois da descoberta das suas reservas de gás não convencional da Patagônia. E a América do Sul retomou então seu velho projeto de integração regional, agora sob a liderança brasileira, com a ampliação do Mercosul e a criação da Unasul.
Uma vez mais, entretanto, como na lenda de Penélope, o continente latino-americano desfez tudo de novo depois da crise econômica internacional de 2008 e, em particular, depois da mudança da doutrina estratégica dos Estados Unidos, com o governo de Donald Trump, que patrocina golpes de Estado e governos ultra liberais, ao mesmo tempo que pratica – paradoxalmente – o protecionismo e o nacionalismo econômico in domo suo. Mas parece que tudo está andando cada vez mais rápido, porque já existem fortes indícios de que esta nova onda liberal será ainda mais breve do que a anterior, como é o caso – fora da América do Sul – da vitória de Lopez Obrador no México, e da enorme reação popular contra o governo ultraliberal de Mauricio Macri, na Argentina.
A Argentina, aliás, é o caso mais longevo e paradigmático dessa verdadeira “gangorra sul-americana”. O programa econômico do governo de Maurício Macri, por exemplo, reproduz quase integralmente as idéias ultraliberais do economista Domingo Cavallo, que já haviam sido provadas nos governos de Carlos Menem(1989-1999) e de Fernando de la Rua (1999-2001), antes dos governos peronistas de Nestor Kirchner (2003-2007) e de Cristina Kirchner (2007-2015), que desembocaram, por sua vez, no retorno do liberalismo, com a vitória eleitoral de Maurício Macri em outubro de 2015.O apoio parlamentar de Maurício Macri permitiu que ele aprovasse, sem maiores problemas, as famosas reformas da Previdência e da legislação trabalhista, mantendo rigorosa política de austeridade fiscal e de privatizações do que ainda restava nas mãos do Estado argentino.
Apesar de tudo isso, a política econômica do governo Macri tem produzido resultados desastrosos. Em 2018, a economia argentina sofreu uma queda de 2,5% e, em 2019, o PIB do país deverá ter outra queda de 3,1%, segundo as previsões mais otimistas. Com uma taxa de inflação de cerca de 46%, uma taxa de desemprego próxima dos 10%, e com 32% da população abaixo da linha de pobreza, a Argentina se transforma, pouco a pouco, num país subdesenvolvido, coisa que nunca havia sido. Pelo contrário, no início do século XX, a Argentina era uma das seis economias mais ricas do mundo e, mesmo até a década de 1940, seguiu sendo o país mais rico e homogêneo de toda a América do Sul. E foi só depois dos anos 50 que a Argentina perdeu o impulso econômico da sua Idade de Ouro (1870-1930), enfrentando, desde então, um prolongado processo de fragmentação social e política cada vez mais profundo e radical, que avança na forma de um movimento pendular e repetitivo, que ora aponta na direção liberal, ora na direção do peronismo, mas com a destruição mútua, por cada uma das partes, na rodada anterior.
O Brasil entrou nessa mesma “gangorra”, mas só a partir da crise econômica da década de 1980, que foi sucedida por três governos neoliberais entre 1990 e 2002, e por três governos híbridos, mas mais próximos de um “desenvolvimentismo progressista”, com forte viés de inclusão social e de afirmação da soberania internacional do país, entre 2003 e 2015. E voltou à agenda liberal depois do golpe de Estado de 2015/16, de forma ainda mais radical do que no período de FHC, com a proposta econômica do ministro Paulo Guedes e de sua equipe de velhos alunos da Escola de Chicago. Na verdade, sua reiterada defesa da necessidade de “destruir” completamente a herança desenvolvimentista, lembra muito mais as posições do economista liberal Eugenio Gudin, defendidas no debate que manteve nos anos 1940 com o empresário industrialista Roberto Simonsen, a respeito do papel “correto” do Estado, do mercado e do planejamento no desenvolvimento brasileiro.
Não há dúvida de que o ministro Guedes e sua equipe colocam-se ao lado de Eugenio Gudin, na sua defesa comum da “vocação primário-exportadora” da economia brasileira – o que significaria, nesta altura do século XXI, um verdadeiro salto para trás, para começar tudo de novo, com o objetivo, ou utopia, de transformar o Brasil numa imensa Nova Zelândia. Um projeto muito parecido com o dos presidentes paulistas da República Velha, e com o do governo argentino de Maurício Macri em anos mais recentes. A diferença é que hoje, no Brasil, essa agenda liberal aparece hoje sustentada por uma aliança e um governo formado por grupos de extrema-direita, de militares aposentados, seitas religiosas fundamentalistas, milícias privadas, clubes de tiro e senhoras rezadeiras, financiados pelas elites tradicionais, tutelados pela grande imprensa conservadora e sustentados, em última instância, pelo governo norte-americano.
Esse verdadeiro Frankenstein talvez explique porque o desastre brasileiro esteja acontecendo de forma mais rápida do que na Argentina, o que aumenta a probabilidade de que o Brasil acabe prisioneiro da mesma “gangorra” que condena o país vizinho, e a própria América do Sul, a fazer e desfazer a mesma coisa dezenas de vezes, praticamente sem sair do lugar – ou pior ainda, baixando cada vez mais de lugar. Com a diferença de que, se isto se repetir no Brasil, o processo de desintegração deverá ser muito mais rápido e perverso do que na Argentina, porque o Brasil parte de um nível de desigualdade e pobreza muito maior do que tinham nossos vizinhos no século passado. Neste caso, o mais provável é que o Brasil entre num longo processo de “estagnação secular e precoce” ou, o que é pior, numa prolongada depressão econômica, interrompida por pequenos “soluços expansivos”, incapazes de conter o avanço da desintegração social, que deverá ser cada vez mais violenta e cruel com a imensa maioria da população brasileira, que é a mais pobre e desprotegida. De qualquer maneira, esse será o país que encontrar(ao)emos ? pela frente, e será o desafio gigantesco dos novos governantes brasileiros que venham a ser eleitos em 2022 para substituir o atual capitão-presidente, ou qualquer outro personagem de extrema-direita que possa vir a ocupar seu lugar.
Mas atenção, porque o Brasil ainda não está condenado definitivamente a repetir a “gangorra argentina”, nem precisa necessariamente recorrer ao seu mesmo modelo desenvolvimentista do passado. No caso de vitória de alguma coalizão de forças progressistas, é muito difícil antecipar desde já as medidas de política econômica que deveriam ser implementadas para afastar o país do caos, mas uma coisa é óbvia: com as dimensões e a heterogeneidade do Brasil, é uma completa sandice propor uma “refundação neozelandesa” de um país que tem todas as condições de “construir um caminho alternativo dentro da América do Sul, de alguma forma similar ao da economia norte-americana, que conseguiu combinar indústrias de alto valor agregado com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, sendo ao mesmo tempo auto-suficiente do ponto de vista energético.
Para isto, antes que nada, o Brasil terá que mudar radicalmente a sua postura internacional, em particular com relação aos Estados Unidos, que se considera com pleno direito ao exercício da sua soberania dentro de todo o “hemisfério ocidental”. Ou seja, do nosso ponto de vista, a luta por um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil terá que começar por uma nova estratégia de poder internacional. Mas se este for o caminho escolhido pelos brasileiros, não há como enganar-se: os novos governantes eleitos em 2022 terão que colocar uma pá de cal em cima da vergonhosa política externa deste governo de extrema-direita, e começar um novo tipo de relacionamento com os Estados Unidos, que será sempre, ao mesmo tempo, de complementaridade, competição e conflito, sobretudo dentro da América do Sul e com relação aos fluxos e recursos do Atlântico Sul. De qualquer forma, e em qualquer caso, o fundamental é que o novo governo brasileiro se oriente sempre, e em primeiro lugar, pela bússola dos seus próprios objetivos sociais, econômicos e geopolíticos Conscientes de que terão pela frente um caminho muito estreito e complicado, e que este caminho tomará muito tempo para se consolidar. Mas ao mesmo tempo, com a certeza de que este é o tempo que tomaram todos os grandes países para construir o seu próprio futuro sem ser humilhados, nem envergonhar-se jamais de si mesmo e do seu passado.
(*) Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do grupo de pesquisa “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep). Publicou, “O Poder Global e a Nova Geopolitica das Nações”, Editora Boitempo, 2007 e “História, estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2014.
Artigo escrito originalmente para o Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)