Olá, espero que esteja firme mesmo nestes tempos difíceis que passamos.
Como deve saber, esta semana fomos surpreendidos pelo encantamento de Jaider Esbell.
Desde que eu e ele nos encontramos neste mundo, vivemos e construímos juntos caminhos que penso que foram importantes para a cena que se nota hoje. Ele foi um amigo a quem eu chamava de maninho, modo carinhoso de chamar irmão na região onde nasci. Como irmão, nos amamos, brigamos, discutimos, brincamos, viajamos juntos pelo calor e frio do mundo, rimos, choramos, “bagunçamos o coreto” como dizem por aqui, ficamos sem nos falar, voltamos a nos falar, trabalhamos, pulamos em muitos rios e mares, concordamos com muita coisa, discordamos de outras muitas coisas, mas em uma coisa eramos incorruptíveis: no desejo de construir uma arte onde pessoas indígenas pudessem ter voz ativa e chances de quem sabe chegar ao topo, lugar onde nunca estivemos antes.
Jaider chegou a esse lugar e o que para os brancos é considerado sucesso (ou a melhor fase de sua carreira, como li em matérias de jornais), para nós dois esse fake-sucesso-branco, foi dia a dia tornando-se um peso. Infelizmente ficou pesado demais para ele, mas poderia ter sido para qualquer um de nós artistas indígenas.
Reprodução
Jaider Esbell teve sua carreira marcada por conquistas importantes para a arte indígena contemporânea.
A cobrança de respostas para salvar a arte, a pressão por não falhar em nossa caminhada ou com nossos parentes indígenas, a ininterrupta fome de quem nos vê como uma novidade devorável no mercado, tudo isso que é considerável sucesso e o auge da carreira é um muro que nos cerca e nos tira do que é mais importante: uma vida saudável.
No momento em que sentimos as mãos do mundo ocidental nos puxar, eu me retirei para desacelerar e pensar sobre o que estava acontecendo. Primeiro foram as redes sociais, que voltei e revoltei, pois, me ligavam, mandavam mensagens como uma exigência de que era preciso estar online o tempo todo, e pior, disponível o tempo todo. Depois deletei meu número e comprei um número novo de celular só para amigos ou para quem eu quisesse dar atenção. Poucas semanas atrás deletei de novo minhas redes sociais a fim de sair dessa pressão em estar sempre disponível e sendo obrigado a responder como “descolonizar o mundo”.
Como se isso fosse nossa responsabilidade, salvar o mundo sozinhos. Como se não fosse uma responsabilidade de todos. Ah, não! Nós somos obrigados a salvar um mundo que nunca nos quis, mas no momento que precisam nos recorrem e exigem que estejamos à disposição. Demorou trinta e dois anos para o mundo me dar atenção, eu sei que muitos dos abraços e beijos hoje, só fazem parte da etiqueta social dos brancos. Antes disso só recebíamos desprezo desse mundo. Esse sangue indígena que guarda rancor, mas, ao mesmo tempo quer amar o mundo, nos faz aceitar essa etiqueta branca.
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Estive com Jaider a semana passada, conversamos pouco, pois nossos e-mails estavam lotados, nossa caixa de mensagem estava lotada, nossos horários estavam lotados. Mesmo todo dia juntos, do café da manhã à hora de dormir, por uma semana inteira conversamos pouco. E nas poucas conversas nossas reclamações eram as mesmas, a vontade de socar a cara da próxima pessoa que nos pedisse uma webreunião. Jaider estava cansado. Eu estou cansado. Nós estamos cansados.
O que é postado nas redes sociais não representam o quanto de dor estamos passando diariamente. O Jaider Esbell fora do online não era o postado. O Denilson Baniwa fora do online não é de longe o que vocês veem em lives. Quantas lives eu fiz forçando estar bem para não deixar ninguém preocupado. Quantas lives literalmente eu fiz doente, com febre, com dor. Mas isto não era postado.
E eu, e com certeza Jaider não fazemos isso pra agradar branco ou pra ficar famoso, o motivo principalmente era pra construir um caminho para outros indígenas, construir possibilidades para os nossos. Éramos o espelho para quem é indígena ainda sonha em ser artista ou ser qualquer coisa diferente da realidade horrorosa que jovens e crianças indígenas vivem hoje. Nos forçamos a estar disponíveis para um mundo que enquanto baniwa eu acredito: para aqueles que ainda irão nascer.
Mas isso pesa. Deste modo, peço com muito respeito ao Jaider e aos artistas indígenas passados-presentes-futuros que cuidemos que esse caminho aberto por nós nunca seja interditado, nunca deixe o mato cerrar. Que nós, eu e você limpemos o caminho sempre e que num futuro próximo seja mais fácil de caminhar nele. Cuidemos da memória de Jaider Esbell. E principalmente, cuidemos para que seja mais leve o caminhar, o nosso e de outras pessoas.
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Pois entendendo que se o sucesso e topo a que tanto lutamos, tem como resultado a tragédia, sinto que preciso pensar ainda mais sobre que tipo de arte indígena eu tenho que construir. E se a recepção que o mundo da arte ocidental nos deu, levou um de nós ao grave fim, preciso pensar ainda mais em que tipo de relação quero manter com a arte ocidental.
Eu vou desacerelar ainda mais, até o ponto que seja um cooper e não um triathlon. Meu trabalho continuará em honra de Jaider Esbell, assim como era em memória de tantos outros parentes indígenas antes de mim. Se é pela arte que resistiremos, vai ser pela arte. Mas da minha parte ela não será para satisfazer a fome de nenhum glutão da arte.
Com carinho e admiração.
Denilson Baniwa
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