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Pelosi em Taiwan: Reação da China pode ser implacável contra alta tecnologia dos EUA

Está claro que, como nas relações Rússia-EUA em fevereiro passado, cruzou-se o Rubicão também na esfera EUA-China
Pepe Escobar
The Cradle
Líbano

Tradução:

Eis como termina, vez ou outra, a “Guerra Global ao Terror”, GGT, (ing. GWOT): não em estrondo, mas em gemido.

Dois mísseis Hellfire R9-X lançados de um drone MQ9 Reaper na varanda de uma casa em Cabul. O alvo era Ayman Al-Zawahiri, que tinha a cabeça a prêmio – recompensa de 25 milhões de dólares. O líder outrora invisível da ‘histórica’ Al-Qaeda desde 2011, está afinal morto.

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Todos nós que passamos anos de vida, especialmente ao longo dos anos 2000, rastreando Al-Zawahiri e escrevendo sobre ele, sabemos como a ‘inteligência’ americana tentou todos os truques do manual – e fora do manual – para encontrá-lo. OK. Al-Zawahiri jamais se expôs na varanda de casa alguma, menos ainda em Cabul.


Mais um agente descartável

Por que agora? Simples. Porque já não é útil – e ultrapassou em muito a data de validade. Teve o destino carimbado como espalhafatosa ‘vitória’ da política externa – momento requentado do ‘Osama bin Laden’ de Obama, que a maior parte do Sul Global sequer registrará. Afinal, a percepção reinante é de que a GWOT de George W. Bush há muito tempo sobrevive, como câncer em metástase, na ‘ordem internacional’ tipo ‘eu-mando-você-obedece’, e na verdade “baseada em sanções econômicas”.

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Corta para 48 horas depois: centenas de milhares em todo o ocidente já estavam colados à tela do flighradar24.com (até que o site foi derrubado), rastreando o “SPAR19” – jato da Força Aérea Americana que transportava a presidenta da Câmara de Deputados dos EUA (ing. speaker) Nancy Pelosi – que cruzava lentamente a província de Calimantã de leste a oeste, o Mar de Celebes, voava em direção ao norte, paralelo ao leste das Filipinas, até que fez uma curva fechada, forte, para oeste, e tomou o rumo de Taiwan, em espetacular desperdício de combustível de jato, só para fugir do Mar do Sul da China.


Nada de “momento Pearl Harbor”

Agora comparemos: de um lado isso; de outro, centenas de milhões de chineses que não estão no Twitter, mas no Weibo; e uma liderança em Pequim, impermeável à histeria pós-moderna pré-guerra fabricada pelo Ocidente.

Quem quer que entenda a cultura chinesa sabia que jamais haveria momento “míssil em varanda de Cabul” no espaço aéreo em Taiwan. Que jamais se repetiria qualquer “momento Pearl Harbor”, perene sonho molhado dos neocons. Simplesmente os chineses não operam desse modo.

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Dia seguinte, justo quando a presidenta narcisista da Câmara de Deputados dos EUA, orgulhosíssima da própria proeza, recebia a medalha da Ordem das Nuvens Auspiciosas, por tão bem promover as relações bilaterais EUA-Taiwan, o Ministro das Relações Exteriores chinês emitiu comentário sóbrio: a reunificação de Taiwan com o continente é um inevitabilidade histórica.

Assim se mantém o foco estratégico, no longo jogo.

O que acontece a seguir já havia sido telegrafado, um tanto escondido em matéria do Global Times. Aqui, os dois pontos chaves:

Ponto 1: “A China verá [o movimento dos EUA] como ação de provocação autorizada pelo governo Biden, não como decisão pessoal de Pelosi”.

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Exatamente o que o Presidente Xi Jinping dissera pessoalmente ao leitor de Teleprompt inquilino da Casa Branca, em telefonema tenso, semana passada. E ali se falava da derradeira linha vermelha.

Xi está afinal chegando exatamente à mesma conclusão à qual o presidente russo Vladimir Putin também chegou, no início deste ano: os EUA são “não capazes para acordos”, e não faz sentido esperar que respeitem a diplomacia e/ou o Estado de Direito nas relações internacionais.

O ponto 2 diz respeito às consequências, e deixa ver um consenso entre os principais analistas chineses, que reflete o consenso no Politburo: “A crise Rússia-Ucrânia acaba de expor ao mundo a consequência de encurralar uma grande potência (…) A China acelerará firmemente seu processo de reunificação e declarará o fim do domínio, pelos EUA, sobre a ordem mundial”.

Está claro que, como nas relações Rússia-EUA em fevereiro passado, cruzou-se o Rubicão também na esfera EUA-China

Foto: La Cuna
Exportação de areia natural para Taiwan está proibida; o item é commodity essencial para a indústria eletrônica




Xadrez, não Damas

Como muitos previram que aconteceria, a matrix sinofóbica nem considerou a reação de Xi ao fato em solo – e nos céus – em Taiwan, reação que veio completada com retórica que expunha a “provocação dos reacionários norte-americanos” e a “campanha incivilizada dos imperialistas”.

Nessa fala, quase se vê o presidente Xi, em papel de presidente Mao. Não que lhe falte razão, mas a retórica é pro forma. 

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O fato crucialmente decisivo é que Xi, pessoalmente, e também o Partido Comunista da China (PCC), foram humilhados por Washington; foram tratados com desdém, suas palavras foram desconsideradas – isso, nessa grande escala, é imperdoável na cultura chinesa, e a situação foi agravada por uma vitória tática dos EUA.

Assim sendo, a resposta virá, inevitável, e será clássica resposta à Sun Tzu: calculada, precisa, dura, de longo prazo e estratégica. Não será resposta tática. E demorará, porque Pequim ainda não está pronta numa série de domínios, principalmente tecnológicos. 

Putin teve de esperar anos para que a Rússia estivesse em condições de agir de forma decisiva. O tempo da China chegará.

Por enquanto, o que está claro é que, como nas relações Rússia-EUA em fevereiro passado, cruzou-se o Rubicão também na esfera EUA-China.


O preço dos danos colaterais

Logo depois daquele míssil naquela varanda em Cabul, o Banco Central do Afeganistão embolsou espantosos $40 milhões em dinheiro, como “ajuda humanitária”.

Foi o preço da operação Al-Zawahiri, intermediada pela agência de inteligência paquistanesa, atualmente alinhada com os EUA, a Inter-Services Intelligence, ISI. Saiu barato.

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O drone MQ-9 Reaper carregando os dois Hellfire R9X que mataram Al-Zawahiri teve de sobrevoar o espaço aéreo paquistanês. Decolou de uma base americana no Golfo Pérsico, atravessou o Mar Arábico, e sobrevoou o Baloquistão para entrar no Afeganistão, pelo sul. De brinde, os norte-americanos podem ter ganho alguma Inteligência Humana (ing. Humint).

O acordo de 2003 – segundo o qual Islamabad facilita corredores aéreos para voos militares dos EUA – pode ter expirado, com o desastre da retirada americana em agosto passado. Mas pode ter sido revivido.

Que ninguém espere investigação profunda sobre o que exatamente o ISI – historicamente muito próximo do Talibã – tenha dado a Washington, em bandeja de prata.


Negociações duvidosas

É a deixa para um telefonema intrigante, semana passada, entre o todo-poderoso Comandante do Estado-maior do Exército Paquistanês, General Qamar Javed Bajwa, e a Secretária de Estado adjunta dos EUA, Wendy Sherman. Bajwa fez lobby para que o Fundo Monetário Internacional, FMI, libere o mais rapidamente possível um empréstimo crucial, sem o qual o Paquistão não pagará sua dívida externa.

Se o ex-primeiro-ministro Imran Khan ainda estivesse no poder, jamais teria permitido tal telefonema.

O enredo engrossa, pois a morada de Al-Zawahiri em Cabul, num bairro chique, pertence a um conselheiro próximo de Sirajuddin Haqqani, chefe da rede “terrorista” (na definição dos EUA) Haqqani e atualmente Ministro do Interior do Talibã. A rede Haqqani, desnecessário acrescentar, sempre foi íntima do ISI.

E então, há três meses, tivemos o chefe do ISI, Tenente-General Nadeem Anjum, reunido com o Conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, em Washington – supostamente para repor nos trilhos e em funcionamento a tal velha, conjunta, clandestina maquinaria antiterrorista.

Mais uma vez, a única questão são os termos da “oferta que não se pode recusar” –, a qual pode estar ligada à ajuda do FMI. Nessas circunstâncias, Al-Zawahiri não passou de dano colateral insignificante.


Sun Tzu apresenta seu modelo ‘seis lâminas’

Na sequência da escapadela da presidenta Pelosi, da Câmara de Deputados dos EUA, até Taiwan, os danos colaterais multiplicar-se-ão como as lâminas de um míssil R9-X.

A primeira etapa é o Exército de Libertação Popular (ing. PLA), que já iniciou exercícios de fogo vivo, com bombardeios massivos na direção do Estreito de Taiwan, ao largo da província de Fujian.

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As primeiras sanções também estão em vigor, contra dois fundos taiwaneses. A exportação de areia natural para Taiwan está proibida; o item é commodity essencial para a indústria eletrônica – de modo que a medida fará subir o ponteiro aferidor de dor nos setores de alta tecnologia da economia global.

A CATL chinesa, maior fabricante mundial de células de combustível e baterias de íons de lítio, está adiando indefinidamente a construção de uma enorme fábrica de 5 bilhões de dólares e 10 mil funcionários, que fabricaria baterias para veículos elétricos em toda a América do Norte, fornecendo para Tesla e Ford, dentre outros.

Assim sendo, as manobras à Sun Tzu que se seguirão virão concentradas essencialmente: num bloqueio econômico progressivo a Taiwan; na imposição de uma zona parcial de interdição de voo; em severas restrições ao tráfego marítimo; na guerra cibernética; e no Grande Prêmio: fazer gemer a economia dos EUA.


A guerra contra a Eurásia

Para Pequim, jogar o jogo longo significa acelerar o processo envolvendo uma série de nações em toda a Eurásia e além da Eurásia, comercializando commodities e produtos manufaturados nas respectivas próprias moedas nacionais.

Estarão testando progressivamente um novo sistema que verá o advento de uma cesta de moedas BRICS+/OCX/União Econômica Eurasiana, e num futuro próximo, uma nova moeda de reserva.

A escapadela da Speaker foi concomitante com o enterro definitivo do ciclo “guerra ao terror” e metástase conhecida como “guerra à Eurásia”.

Pode ter fornecido, involuntariamente, a última engrenagem que faltava para turbinar a complexa maquinaria da parceria estratégica Rússia-China. 

E isso é o que se vê da capacidade “estratégica” da classe dominante política dos EUA. Dessa vez, não haverá míssil contra varandas capaz de apagar a nova era.

Pepe Escobar, The Cradle, Beirute.
Tradução: Vila Mandinga.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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