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ToggleAlguns minutos depois das onze da manhã, da quarta-feira de 7 de dezembro de 2022, vários canais de TV começaram a transmitir uma mensagem do Presidente da República.
Com o rosto congestionado e a voz insegura, Pedro Castillo, após recriminar o Congresso por seu comportamento obstrucionista, suas contínuas tentativas de derrubá-lo sem causa legítima e sua abstenção de legislar para as maiorias, anunciou lendo umas folhas de papel:
Assista na TV Diálogos do Sul
“Tomamos a decisão de estabelecer um governo de exceção, orientado a restabelecer o Estado de Direito e a democracia, a cujo efeito se ditam as seguintes medidas:
– Dissolver temporariamente o Congresso da República e instaurar um governo de emergência excepcional.
– Convocar no mais breve prazo eleições para um novo Congresso com faculdades constituintes para elaborar uma nova Constituição em um prazo não menor que nove meses.
– A partir desta data e até que se instaure um novo Congresso da República se governará mediante decretos leis.
– Se decreta o toque de recolher no nível nacional a partir do dia de hoje, quarta-feira, 7 de dezembro de 2022, desde às 22 horas até as 4 horas do dia seguinte.
– Se declara em reorganização o Sistema de Justiça, o Poder Judicial, o Ministério Público, a Junta Nacional de Justiça e o Tribunal Constitucional.
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– Todos que possuam armamento ilegal deverá entrega-lo à Polícia Nacional em um prazo de 72 horas. Quem não o fizer comete delito sancionado com pena privativa de liberdade que se estabelecerá no respectivo decreto-lei.
A Polícia Nacional, com o auxílio das Forças Armadas, dedicará todos os seus esforços ao combate da delinquência, da corrupção e do narcotráfico, a cujo efeito serão dotados os recursos necessários.
Apelamos a todas as instituições da sociedade civil, associações, rondas camponesas, juntas campesinas, juntas de defesa e a todos os setores sociais a respaldar esta decisão que nos permitirá traçar o rumo de nosso país ao desenvolvimento sem discriminação alguma.”
TeleSur
A imputação a Pedro Castillo do delito de rebelião (“o que se levanta em armas para variar a forma de governo”) é inadmissível
Estado de Direito
Antes de que o Presidente terminasse esta mensagem, os canais de TV, inclusive o do Estado, como se tivessem postos de acordo, já tinham em suas telas os comentários contra e as declarações de certos personagens, apelando a defender o Estado de Direito.
Pouco depois, alguns ministros e outros funcionários de alto nível disseram: “Como Periquito, eu me quito” e renunciaram aos seus cargos, invocando sua adesão ao Estado de Direito.
Por sua parte, a Mesa Diretora do Congresso da República, às 12h25, convocou o plenário para as 13h30 deste dia, com a finalidade de tratar a vacância da Presidência da República, que estava previsto para às 15h00. Às 13h49 a votação terminou com a aprovação de vacância por 101 votos, ou seja, 14 votos mais dos que se necessitava para aprovar esta medida. Não houve debate.
Às 14h50, o Presidente Pedro Castillo foi detido na Prefeitura de Lima. A promotora da Nação, Patricia Benavides, que esteve ali, disse que Castillo havia cometido o “presumido delito de rebelião, regulado pelo artigo 346 do Código Penal, por quebrantar a ordem constitucional”. Na fotografia desta cena se vê Patricia observando com desdém e triunfalismo ao plebeu sentado numa cadeira.
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Às 15h52, Dina Boluarte jurou ao Congresso, assumindo o cargo de Presidenta da República.
Assim terminou a crise política desse dia.
Como, exceto alguns, todo mundo se escuda atrás do Estado de Direito, ao qual declaram seu amor eterno, vale a pena perguntar se este foi respeitado nesta sucessão acelerada de acontecimentos já históricos.
O Estado de Direito é nada mais que a organização e a atividade da sociedade e do Estado como seu encarregado de gerir os serviços públicos, sujeitando-se ao ordenamento jurídico estabelecido pelo pacto social e registrado na Constituição. Portanto, todos, cidadãos e governantes, estão obrigados a limitar seus atos a este ordenamento. Ainda mais, os funcionários do Estado “o fazem com as limitações e responsabilidades que a Constituição e as leis estabelecem” (Constituição, art. 45º).
Competências
A Constituição não lhe confere ao Presidente da República a faculdade de dissolver o Congresso e de editar decretos-leis; mas tampouco permite ao Congresso comportar-se saindo da legalidade, como o fez depois da declaração de Pedro Castillo.
Em efeito, a Mesa Diretora do Congresso da República não podia adiantar a hora da sessão do plenário, segundo o artigo 69º-A, do Regulamento do Congresso; e se o fazia, com a maioria requerida (4/5 do número legal de congressistas), devia ter citado o Presidente da República com a antecipação suficiente para sua defesa. Não o citaram.
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Além disso, o debate e a votação da vacância deviam sujeitar-se ao pedido formulado e ao acordo dos congressistas de 1º de dezembro para admiti-lo. Era como uma demanda: o juiz não pode resolver sobre ponto não pedido; se o faz, sua decisão é nula. Aos congressistas não lhe importaram para nada estas regras absolutas e, de entrada, votaram sem debate e sem a presença do Presidente, por sua vacância, motivada pela declaração que este havia feito de dissolver o Congresso, como se disse nas considerações da resolução Nº 001-2022-2023-CR aprovada, que fizeram publicar em seguida no portal informático do Congresso.
E o Estado de Direito?
Supõe-se que a Promotora da Nação deve conhecer a Constituição e o Código Penal. Ficou sabendo do seu conteúdo?
A imputação a Pedro Castillo do delito de rebelião (“o que se levanta em armas para variar a forma de governo”, Código Penal, art. 346º) é inadmissível. O presidente da República não se havia levantado em armas, só havia feito uma declaração transmitida ao público pela TV. Tampouco havia dissolvido o Congresso da República, nem impedido a reunião dos congressistas. Se o tivesse feito, não poderiam declarar vaga à presidência. Não havia subscrito nenhuma norma em respaldo do que disse e, portanto, não havia usurpado funções que não lhe competiam. Há algum artigo do Código Penal que tipifique como ilegal a declaração que fez? Nenhum. Revisem esse Código os entendidos.
Se deve ter presente, além disso, que segundo o artigo 117º da Constituição, “O Presidente da República só pode ser acusado, durante seu período, por traição à pátria; por impedir as eleições presidenciais, parlamentares, regionais ou municipais; por dissolver o Congresso, salvo os casos previstos no artigo 134º da Constituição (a censura a dois conselhos de ministros), e por impedir sua reunião ou funcionamento, ou os do Jurado Nacional de Eleições e outros organismos do sistema eleitoral”. E Pedro Castillo, sendo Presidente da República, não havia incorrido em nenhuma dessas suposições, embora houvesse declarado que dissolveria o Congresso. E então, em virtude de que norma o têm retido em uma prisão?
Não leram, a Promotora da Nação e o juiz que ordenou sua detenção, o artigo 2º-24-d da Constituição? “Ninguém será processado nem condenado por ato ou omissão que ao tempo de cometer-se não esteja previamente qualificado na lei, de maneira expressa e inequívoca, com infração punível”.
Se me dirá, claro, estas infrações são parte constitutiva do Estado de Direito no Peru, que é informal para estar a tomar com a esmagadora informalidade nas ruas; em outros termos, aqui a superestrutura política maneja ao seu gosto a superestrutura jurídica. Já vai dissipando-se a névoa que cobriu essa procissão limenha de acontecimentos políticos e se começa a ver a causa imediata que levou Pedro Castillo a fazer essa declaração, o apoio que lhe prometeram ou que foi fictício e a razão da pressa louca dos congressistas que o vagaram.
Uma primeira conclusão desta intriga é a aceleração da agonia política dos congressistas e seus grupos, pretensos esquerdistas, que votaram pela derrubada de Pedro Castillo ou se abstiveram (Mateus, o evangelista, teria escrito sobre eles: “Por seus frutos podres os conhecereis”, 7,15); outra conclusão é que a ingênua imolação de Pedro Castillo o reafirma, no entanto, como um líder das grandes maiorias sociais de nosso país.
Jorge Rendón Vásquez | Colaborador da Diálogos do Sul em Lima, Peru.
Tradução: Beatriz Cannabrava.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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