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Por que, segundo Marx, escrever a história da sociedade exige superar a luta de classes?

O filósofo defendia, para o futuro, “uma fase superior da sociedade comunista”, sem a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Alto Boquete

Tradução:

“Não é certo que Marx já não satisfaz nossas necessidades. Pelo contrário, nossas necessidades ainda se adequam à utilização das ideias de Marx.”
Rosa Luxemburgo, 1903 [1]

Ao se referir aos problemas de método no estudo de grandes autores do passado, Gramsci aponta a necessidade de distinguir entre as obras que o autor “terminou e publicou” e aquelas que “deixou inéditas por não estar consumadas, e depois foram publicadas por algum amigo ou discípulo, não sem revisões, reconstruções, cortes, etc., não sem uma intervenção ativa do editor”.

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A esse respeito, acrescenta que não se pode considerar definitivo, mas só como material ainda em elaboração, ainda provisório; não se pode excluir essas obras, principalmente se passaram muito tempo em período de elaboração sem que o autor se decidisse nunca a terminá-las, teriam sido parcial ou totalmente repudiadas pelo próprio autor, e consideradas não satisfatórias[2].

Este comentário de Gramsci se refere fundamentalmente aos tomos II e III do Capital, editados após a morte do autor por Friedrich Engels. O caráter do vínculo intelectual e cordial existente entre Marx e Engels é expressado no próprio fato de que este reconhecesse sempre o gênio de Marx, e apelasse à sua autoridade nos debates nos quais lhe correspondeu defender à filosofia da práxis fundado por seu companheiro durante os doze anos em que o sobreviveu.

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Assim, em seu prólogo à primeira reedição do Manifesto Comunista que ambos redigiram em 1848, após a morte de Marx em 1883, Engels aponta que a ideia central que inspirara “todo o Manifesto” a saber, que o regime econômico da produção e a estruturação social que dele deriva necessariamente em cada época histórica constitui a base sobre a qual se assenta a histórica política e intelectual dessa época, e que, portanto, toda a história da sociedade – uma vez dissolvido o primitivo regime de comunidade do solo – é uma história de lutas de classes, lutas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, próprias às diferentes fases do processo social, até chegar à fase presente, em que a classe explorada e oprimida – o proletariado – não pode emancipar-se da classe que a explora e oprime – da burguesia – sem emancipar para sempre à sociedade inteira da opressão, da exploração e das lutas de classes; essa ideia cardeal foi fruto pessoal e exclusivo de Marx [3].

O filósofo defendia, para o futuro, “uma fase superior da sociedade comunista”, sem a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho

David Jones/Flickr
Os trabalhadores são os que devem decidir democraticamente acerca das questões relativas à produção

Hoje, as observações de Gramsci ganham em valor diante do trabalho de resgate e educação de textos inéditos de Marx que se iniciara em 1939 com a publicação dos Grundrisse – o esboço elaborado entre 1867 e 1883, em campos como as ciências naturais e a etnologia, dá conta, por exemplo, da obra do jovem filósofo japonês Kohei Saito. 

Os dois livros mais conhecidos de Saito são Karl Marx’s Ecosocialism. Capitalism, Nature, and the Unfinished Critique of Political Economy, (Monthly Review Press, 2017) e El Capital en la Era del Antropoceno, publicado originalmente em japonês em 2020, e em espanhol em 2022 por SINEQUANON/Barcelona. Este último desenvolve no aspecto político o proposto no primeiro com relação ao aporte de Marx à análise de crise socioambiental gerada pela intensidade do saque simultâneo dos recursos naturais e humanos das sociedades contemporâneas para a acumulação incessantes de ganhos, em particular após a transição – dentre 1914 e 1945 – da organização colonial do mercado à internacional que vemos desintegrar-se hoje. 

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Nessa perspectiva, Saito diz que a visão dominante do marxismo no século XX teve “duas características: o determinismo das forças produtivas e o eurocentrismo”, já presentes no Manifesto de 1848. Para Saito, essas características foram superadas pelo Marx maduro que emerge da leitura de seu caderno de apontamentos posteriores a 1867. Assim, diz, o eurocentrismo foi descartado a partir do estudo detalhado do potencial transformador das sociedades periféricas do sistema colonial – em particular as da Índia e da Rússia.

Por sua parte, a visão das forças produtivas como meio de crescimento econômico sustentado cedeu a uma análise detalhada dos impactos destrutivos desse crescimento sobre a relação metabólica entre a espécie humana e o seu entorno natural e, com isso, sobre o que hoje chamamos de sustentabilidade do desenvolvimento humano. Com isso, diz Saito, ao desertar do determinismo das forças produtivas e abandonar, por conseguinte, o eurocentrismo, a Marx não lhe restava mais remédio que renegar da visão da história como progresso. Havia que refazer por completo o materialismo histórico. 

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Nessa linha de reflexão, Saito propõe dois elementos do maior interesse. Um consiste em encarar a crise socioambiental em sua relação com a do sistema mundial. Outro, em destacar o papel que nessa crise desempenha o chamado “Sul global”, no qual os problemas socioambientais do capitalismo se combinam com os do caráter dependente do mesmo. Atendendo a estes fatores, coloca que “a única forma de reparar a fratura no metabolismo entre o homem e a natureza” consiste em “transformar drasticamente o trabalho para permitir uma produção de acordo com os ciclos da natureza”.

A transformar do trabalho é decisiva para superar a crise ambiental, diz Saito, pois esta conecta ao homem e a natureza. Essa transformação, agrega, corresponde àquilo “que propunha Marx em seus últimos anos”: reformular a produção para que estivesse governado pelo valor de uso, reduzir toda aquela que só procurasse valor de câmbio inútil, diminuir as horas de trabalho e deter a divisão do trabalho que arrebata a criatividade aos trabalhadores. E, em paralelo, avançar na democratização do processo produtivo.

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Os trabalhadores são os que devem decidir democraticamente acerca das questões relativas à produção. Não importa que a tomada de decisões seja mais lenta. Da mesma forma, devem ser revalorizadas socialmente as atividades essenciais, úteis para a sociedade e de baixa carga ambiental. 

Assim, Saito assume a contradição entre o crescimento sustentado que demanda a produção de valor de câmbio e a produção de valor de uso que garanta a sustentabilidade do desenvolvimento humano, e dá a sua proposta o nome de “comunismo decrescentista”. No processo, descarta e recarga o materialismo histórico da humanidade, aquela “ideia cardinal” que “foi fruto pessoal e exclusivo do Marx”, como assinalara Engels

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Tudo isso será discutido uma e outra vez ao longo do desenvolvimento da crise que todos encaramos. O fundamental é que o livro de Saito leva a um plano superior de complexidade o desenvolvimento da ecologia política que nos traz de volta – em uma história espiral, nunca linear – aquela visão a que se referiu Marx em 1875, de “uma fase superior da sociedade comunista”, na qual quando haja desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho, e com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não seja somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos, cresçam também as forças produtivas e corram jorro cheio os mananciais da riqueza coletiva, só então poderá ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá escrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo suas capacidades; a cada qual, segundo suas necessidades! 

Nisto haverá consensos, porque já há convergências maiores em torno do problema fundamental: ter um ambiente distinto vai requerer criar sociedades diferentes, com todos e para o bem de todos os que aspirem a sustentabilidade do desenvolvimento humano. 

Alto Boquete, Panamá, 2 de abril de 2023


Referências

[1] “Estancamento e progresso do marxismo”

[2] Gramsci, Antonio: “Cuestiones de método.” (C. XXII; I.M.S. 76´79). Textos dos Cadernos posteriores a 1931. Antología. Selección y notas de Manuel Sacristán. Siglo XXI editores, México, 1999:386.

[3] Marx, Karl y Engels, Friedrich (1848): Manifesto do Partido Comunista. Prólogo de Engels à edição alemã de 18333. https://www.marxists.org/espanol/m-e/1840s/48-manif.htm

Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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