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Primárias: derrota do governo foi consequência do fraco progressismo de Fernández

As tentativas da Frente de Todos para atenuar a situação das maiorias, para “pôr dinheiro no bolso do povo”, foram tímidas e escassas
Daniel Campione
América Latina em Movimento
Buenos Aires

Tradução:

A Frente de Todos experimentou os efeitos adversos de encarnar um progressismo muito minguado, agravados por uma dissociação entre a realidade e o discurso que não escapou à percepção coletiva.

Apatia, descrença, pessimismo, foram algumas das palavras utilizadas com mais frequência para sintetizar o estado de ânimo dos eleitores em relação à votação de 12 de setembro. O não comparecimento ou não ir por expressões que enfatizam a “antipolítica” apareciam como vias de escape para estes sentimentos.

Em meio a uma profunda crise, o oficialismo perdeu as primárias abertas, simultâneas e obrigatórias (PASO). Não é de surpreender, se se pensa na pobreza atingindo 50% da população, nas cifras de desemprego de dois dígitos e na crescente precarização do trabalho.

A isso é preciso acrescentar a perda de poder aquisitivo dos salários e aposentadorias que leva vários anos consecutivos e os programas sociais muito abaixo de um salário mínimo, já por si muito baixo. As políticas destinadas a frear a inflação foram um fracasso, enquanto os aumentos de preços se acumulavam sobre os alimentos e outros bens essenciais. Os efeitos da pandemia, que foram acompanhados pela queda geral da economia, acrescentaram dramatismo à situação.

Diante dessas angustiantes circunstâncias, o governo dedicou-se principalmente a administrar o que existe. Mexer nos interesses dos poderosos não fez parte de seu receituário de medidas. Quando tentou foi com ações muito limitadas de que retrocedeu em todo ou em parte, como na “contribuição extraordinária uma única vez”, que terminou com alíquotas baixas e afetando só pessoas físicas. Ou a expropriação de Vicentín, abandonada diante das primeiras objeções e seguido de uma política de concessões ao complexo agroexportador.

Políticas destinadas a atenuar as consequências da “peste” como a Renda Familiar de Emergência foram abandonadas, em benefício do equilíbrio fiscal. Discursou-se sobre destinar a políticas sociais os mais de 4.000 milhões de dólares recebidos em direitos especiais de giro mas em seguida admitiu-se que seriam utilizados para pagar a dívida externa. Dívida ilegítima e impagável em relação à qual a gestão de Alberto Fernández optou por uma negociação interminável com o Fundo Monetário Internacional, buscando estirar os vencimentos mais para a frente na base do pagamento total da dívida.

Nessas circunstâncias, as tentativas do governo para atenuar a situação das maiorias, para “pôr dinheiro no bolso do povo”, foram tímidas e escassas. As paritárias se reabriram e voltaram a fechar-se com aumentos de todo modo abaixo da inflação de 50% que se espera para este ano. Foi feita alguma arrecadação contra a inflação que só conseguiu reduzir um pouco as taxas da mesma, acima dos 3% mensais. Os programas sociais continuaram chegando a muitos menos daqueles que necessitam deles e com valores cada vez mais insuficientes.

Sobre o tema:
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Os anúncios de reabertura de fábricas produtivas, os alardes de que foram recuperados postos de trabalho perdidos, a inauguração de obras públicas sem efeitos decisivos, não bastaram para diminuir o descontentamento generalizado, que se tornou cada vez mais perceptível. Os planos para comprar geladeiras ou celulares em prestações podem até parecer brincadeira, quando o dinheiro não chega nem para consumos mais urgentes.

Indicar os efeitos desastrosos da gestão de Mauricio Macri é a expressão de uma verdade incontestável, mas não exime o governo de responsabilidades acerca de um nível de vida que desceu ao nível já muito baixo de dezembro de 2019.

A nítida aceleração da vacinação dos últimos meses não supre a desatenção frente aos efeitos econômicos da pandemia. E as “soluções” meramente verbais acerca do compromisso com os que menos têm e o propósito de criar trabalho genuíno não desmentem a penosa experiência cotidiana da maioria da população.

As tentativas da Frente de Todos para atenuar a situação das maiorias, para “pôr dinheiro no bolso do povo”, foram tímidas e escassas

Frente de Todos
O Presidente Alberto Fernandez da Argentina e a vice Cristina Kirchner.

Enquanto isso, como já foi dito mais de uma vez por quem assina estas linhas, a campanha eleitoral da Frente de Todos pareceu desenvolver-se em outra dimensão. Candidatos que tentaram seduzir com frívolos sorrisos, relatos sobre o número e composição de suas famílias, e comentários festivos divorciados da angustiante realidade. Muito pouco em matéria de projetos que estimulem alguma mudança e quase nenhum anúncio de iniciativas para reverter os resultados da dupla crise que alquebra a sociedade argentina. Chatice conceitual que deixa de lado um debate sobre os grandes temas nacionais.

Apatia, desencanto, pessimismo foram palavras usadas para caracterizar o ânimo com relação às eleições, desde muito antes da votação de ontem. O voto dos desiludidos castigou o governo de várias maneiras. A baixa participação nas eleições foi uma delas. Muito mais de 30% do eleitorado não foi votar.

O voto na oposição de direita constituiu um refúgio para muitos – um destino lamentável na hora de expressar inconformidade. Será preciso perguntar-se porque tantos cidadãos não encontraram outro caminho para manifestar-se. O esforço dos candidatos oficialistas para apresentar uma imagem “descafeinada” do masnismo, com ministros mais preocupados em “tranquilizar a economia” do que em atender necessidades reais desempenhou sem dúvida um papel nesse aparente esquecimento do que significou o neoliberalismo puro e duro do governo anterior.

A esquerda viu aumentar seu eleitorado, sem chegar a um incremento que marque um salto qualitativo na repercussão de suas propostas. Foi a única voz no momento de questionar o pagamento da dívida, denunciar as políticas de ajuste e fazer propostas para afetar os enormes lucros dos poderosos ou aumentar de modo drástico o salário mínimo. As elevadas cifras alcançadas em algumas províncias da Patagônia, em San Juan e o pico de Jujuy, com um primeiro postulante indígena e trabalhador, proporcionam expectativas favoráveis para o futuro imediato.

O apoio a setores de ultradireita na Cidade Autônoma de Buenos Aires, e em muito menor grau na Província de Buenos Aires, é um sinal de alerta, sem deixar de ser, pelo menos por enquanto, um fenômeno localizado que pode diluir-se em uma onda passageira.

 A Frente de Todos perdeu claramente na província de Buenos Aires e em vários distritos em que costuma impor-se – como Chaco e La Pampa – entre outros exemplos possíveis, em ambos os casos com diferenças muito nítidas contra ela. Vale lembrar que o masnismo foi unificado, sem as cisões que o afetaram nas eleições legislativas anteriores, o que agrava a pobreza do resultado.

 Como não podia deixar de ser, os grandes meios festejam o resultado sem reservas. Uma subida significativa nos valores da bolsa será uma notícia quase certa no fechamento dos mercados de hoje. Uma coincidência óbvia entre os observadores é o debilitamento da figura presidencial. Já correm especulações sobre mudanças no gabinete como parte de uma ofensiva kirchnerista para tomar as rédeas da situação. A expectativa dos poderes permanentes é em troca manietar o governo, para impor-lhe a cota de “moderação” e “seriedade” que o impeçam de afastar-se sequer um átimo das imposições do grande capital e dos organismos financeiros internacionais. E esperam, claro, a ratificação da derrota em novembro. 

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Cabe lembrar que estamos diante do resultado de eleições primárias. De agora às eleições gerais de novembro pode haver mudanças num ou noutro sentido. Do que não se pode duvidar é que a Frente de Todos sofreu os efeitos adversos de encarnar um progressismo muito minguado, agravado por uma dissociação entre a realidade e o discurso que não escapou à percepção coletiva.

 A construção de uma alternativa popular ampla, que busque a atenção das maiorias sem tentações sectárias nem desvios de reformismo, continua sendo um assunto pendente.

* Tradução de Ana Corbisier 


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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