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Primárias servem de alerta ao peronismo; ainda há tempo de salvar Argentina do abismo

Nem tudo está definido. O sinal é amarelo. Faltam 60 dias. Tempo para reflexões em muitas esferas do governo e a autocrítica que lhes é exigida
Helena Iono
Diálogos do Sul Global
Buenos Aires

Tradução:

As eleições primárias (PASOS) presidenciais e legislativas na Argentina, realizadas no domingo passado, não são definitivas; antecedem as finais de 22 de outubro com um possível segundo turno em novembro. Os resultados presidenciais, deram preferência à chapa da extrema-direita “La Libertad Avanza” (30%) com candidato único Javier Milei“Juntos por el Cambio” (28,3%) com vencedora interna, a porta-voz da direita, Patricia Bullrich“Unión por la Pátria” (27,3%) do governo peronista-kirchnerista atual com Sérgio Massa, atual ministro da economiaOutras chapas minoritárias também participaram, mas restam essas três com chances para a final que decidirá o destino do povo argentino. Não há que menosprezar que dos 35 milhões de eleitores, votaram só 24 milhões (68,5%), com 4,8% de brancos; ou seja, a abstenção (31,5%), foi enorme: 11 milhões não foram votar.

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As PASO não decidem, mas deram um inesperado sinal de alerta a todas as forças políticas. A vitória de Milei não foi prevista pela maioria das estatísticas, salvo num prognóstico político emitido pela vice-presidenta Cristina Kirchner em maio: “Estamos num momento difícil, mas creio que vão ser eleições totalmente atípicas. Será uma eleição de terços. Mais importante que atingir o teto é o piso. O importante é conseguir entrar no segundo turno.” O resto dos políticos, incluindo os líderes da União pela Pátria (UP), não se preparou, nem captou o nível de insatisfação social, inclusive nos ambientes familiares, para levar a batalha cultural e contrarrestar as absurdas propostas de Milei. Minimizou-se o efeito das novas redes sociais, de tiktoks reacionários sobre as emoções do eleitor juvenil de 16 anos – que não viveu a tragédia de 2001 e não assimilou os ensinamentos da memória histórica da ditadura; ou dos que a viveram, mas ainda passam fome e não tem dinheiro para chegar ao fim do mês.

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De fato, a enorme votação em Milei criou uma terceira tendência política, resultando numa derrota e crise de hegemonia opositora do “PRO-Juntos por el Cambio”, cujos votos escoaram para os ditos libertários (L.A.), os da falsa anti-política. Ambas tendências representam os mesmos interesses do poder econômico-financeiro concentrado, da oligarquia, dos EUA, do FMI e do lawfare. Ambas cultivam o ódio, a violência e chamam abertamente a “acabar com o kirchnerismo”, e reivindicam a mão firme da ditadura. Mas, Milei grita mais forte; não com o vazio de um “futuro melhor”, mas com “loucuras concretas”; recolhe a rebeldia de uma juventude despolitizada pelas fake news, descontente, individualista, desorientada pelo slogan da anticorrupção, do anarquismo anti-Estado; a bronca contra os problemas não resolvidos, da economia, da inflação galopante, da dolarização dos preços e da insegurança em geral; tudo, herdado da era Macri e ainda não resolvido no governo de Frente de Todos (FT), atual União pela Pátria.

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Milei venceu na maioria das 24 províncias do país. Em 5 ganhou a UP, em 3 o JxC, e no resto, onde LA tinha baixa votação para governadores, Milei venceu para presidente. Inclusive, o paradoxo é que teve maioria em províncias governadas por JxC (Mendoza, San Juan e Jujuy) e pela UP (Terra do Fogo, Catamarca e Tucuman). O voto a Milei é dirigido a uma imagem; esta, recolheu o voto dos desiludidos com todas as forças políticas (da direita à esquerda). Não são todos votos homofóbicos, anti-identitários, anti-aborto, pelo livre uso das armas, pela venda de órgãos, como propõe o fascista Milei. Nem todos os seus votantes são adeptos à violência fascista, mas representam estratos sociais marginalizados pelo sistema, anarquistas, de classe média acomodada, similares aos que sustentaram o nazi-fascismo europeu. Desde setores empobrecidos do comércio, faxineiras, entregadores de compras, trabalhadores sem carteira, até mesmo funcionários públicos, professores mal pagos e cientistas do CONICET (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas).

 Enfim, não todos são os da anti-política, mas do fracasso da política, incluindo a do progressismo. A inexplicável ausência de um Estado mais eficiente com maior participação em áreas essenciais (na energia elétrica e gás, na segurança sócio-policial, no abastecimento alimentar, e nos transportes) pode conduzir ao voto do anti-Estado. É também um fracasso devido à falta de comunicação pública e coletiva por parte do governo e das instituições. Vencem as redes sociais, com fake-news e tiktoks desestabilizadores. Vence o silêncio nas ruas, nos lares e nas vizinhanças. É uma falência da democracia abstrata, sem consulta nem participação popular diária nas decisões de governo. A que existe é a democracia parlamentar, da alternância: uma vez progressistas, outra vez, conservadores; até chegar um Milei antidemocrático que grita mais forte e diz que vai fechar o Congresso, convocar plebiscitos para anular leis (como a do “Aborto Legal, gratuito e seguro”), transgredindo a Constituição. A verdadeira democracia, em profundidade e extensão dos direitos à vida, continua pendente; não existe.

Nem tudo está definido. O sinal é amarelo. Faltam 60 dias. Tempo para reflexões em muitas esferas do governo e a autocrítica que lhes é exigida

Foto: Reprodução/Twitter
O inesperado resultado das PASO, preocupa, mas não paralisa

O presidente mexicano Lopez Obrador disse numa recente coletiva de imprensa ao argentino Tognetti: “Não se pode contentar a todos!”. “Eu faço uma crítica fraterna aos governos progressistas. Não se pode titubear. É preciso ancorar-se. Há que representar um ou outro. A política de esquerda deve ser a de representar algo ou alguém. Há que representar a todos, mas há que dar prioridade aos pobres e mais necessitados” … “As forças progressistas do mundo devem ter como prioridade, como objetivo principal, buscar a felicidade do povo, a justiça social”. Mas também: “Recolher o melhor da história e não se dar por vencidos.”

 Nem tudo está definido. Por enquanto o sinal é amarelo. Faltam 60 dias. É aí onde entra a reflexão em muitas esferas do governo e a autocrítica que lhes é exigida por vários quadros, dirigentes da CTA e vários sindicatos, e da militância da UP (União pela Pátria). A candidatura interna de Juan Grabois nas PASOs, alcançando quase 6% dos 27% de Sérgio Massa, deixa outro aviso crítico, de que venceu o prazo para executar o programa de governo prometido em 2019; e radicalizar, além dos pontos e limites das negociações com o FMI (tão delongado pelo ex-ministro Gusman, soltando a batata quente nas mãos de Massa), dar voz ao kirchnerismo, às propostas pela estatização da agroexportadora Vicentin, pela formação de um ente estatal de distribuição e controle de preço dos alimentos; as bases populares e os sindicatos. Faltam somente 60 dias para a UP reverter a situação e impedir a queda do país ao abismo. 

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Após as PASO, Milei já se veste midiaticamente de presidente com propostas arrepiantes e inaplicáveis: acabar com os Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, das Mulheres e outros; redução drástica das obras públicas; cerrar e privatizar o CONICET, privatizações várias, dolarizar a economia, e acabar com o Banco Central. Enfim, o mesmo esquema de Bolsonaro que caotizou o Brasil, na contracorrente da história, renegando a soberania nacional (monetária e energética). Quando diz que fará um ajuste fiscal mais profundo do que o do FMI, e “acabará com esse horror de justiça social”, e com essa “atrocidade dos que dizem que onde há uma necessidade, há um direito, mas se esquecem de que alguém tem de pagar”, cai a máscara do mito e define seu abraço com o poder concentrado e a alta burguesia. 

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Quem comanda Milei? Grupos de empresários e investidores financeiros BlackRock, Fundação Atlas, Templeton e o Fundo Abutres. Agora, a porta-voz da campanha do poder hegemônico, a atuante mídia hegemônica (Clarín/La Nación/TN) deve optar por seguir apostando na imagem de Milei, que nunca governou, ou Patricia Bullrich e JxC, que já governou para o FMI e deu provas de eficiência em reajustes, cortes e repressões. Mais que dedicar-se a explicar o “fenômeno Milei”, é importante argumentar e contrapor-se a desmontar a narrativa da loucura da plataforma libertária. Milei diz que vai privatizar a CONICET para economizar nos gastos do Estado. Ignorância total, pois o custo de CONICET é 0,3 do PBI. Milei busca um efeito político e psicológico sobre o desconhecimento popular acerca do CONICET, que foi sempre um instrumento de soberania tecno-científica; inclusive na pandemia. Tal ataque é um alerta para a comunicação de governo. Só a TV Pública informa o que fez e faz a CONICET. De toda forma, é inútil dedicar tanto tempo a responder ao show midiático de Milei, detendo-se na pauta programática libertária.

Há expectativas de que a líder Cristina Kirchner reapareça; de que os porta-vozes presidenciais usem o dever e a prerrogativa de ser governo para concretizar e explicar novas e urgentes medidas, e fazer a própria narrativaPara isso, estão não só os canais progressistas, TV Pública e C5N, mas também o direito à rede nacional de TV/rádio. Medidas concretas e urgentes, para hoje, não para o futuro! Esse é o foco. O deputado nacional e dirigente da CTA (Central dos Trabalhadores Argentinos), Hugo Yasky, disse: “Se o governo de Alberto Fernández houvesse movido os salários, recuperando a distribuição da riqueza, hoje não estaríamos falando de Milei”. Propôs “outorgar já uma soma fixa de 75 mil pesos para todos os trabalhadores, sem exceção, e aplicar um suplemento (similar) para aposentados”. 

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A simultânea função crucial de Sérgio Massa como Ministro da Economia e candidato presidencial pela UP pode incrementar dificuldades ou importância à sua campanha. O fato é que conta com o apoio e o eleitorado da vice-presidenta Cristina Kirchner, cuja proscrição, por parte da Corte Suprema de Justiça, impediu sua candidatura; esta, a única sustentável numa liderança peronista de massas, capaz de dar expectativas, absorver votos de confiança para este governo estender prazos, e cumprir metas. O legado da herança maldita da dívida de 45 bilhões de dólares com o FMI, contraída por Macri, não se resolveu com as ambiguidades subalternas ao FMI e as demoras de Guzman. Cristina, maior sábia sobre o que é o FMI, não se esquivou do pagamento da dívida; disse que havia que pagá-la, mas impondo condições contra novos ajustes prejudiciais ao povo. Há que ver se se logrará.

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Massa vem negociando para obter um reembolso crucial de 7,5 bilhões de dólares do FMI na semana próxima. As recentes medidas econômicas do governo, de aumento do valor de desvalorização de 20% no câmbio do dólar oficial fixada até outubro e um aumento dos juros a 118% anual, criaram um desfavorável aumento inflacionário e indiscriminado de preços. O FMI impôs uma desvalorização de 100% e depois reduziu para 60%. No entanto, a Argentina conseguiu um acordo de 20% e evitou um maior oportunismo político do FMI no contexto eleitoral. Mas mesmo esse suposto mal menor acelerou uma enorme alta inflacionária. O efeito de uma espécie de golpe de estado provocado por um golpe de mercado diminuiu, mas o problema continua. O ministro e candidato explica numa entrevista à TN, e num ato recente de campanha, que entrando o dito reembolso, serão anunciadas várias medidas econômicas; entre elas, se esperam aquelas propostas pelas Centrais sindicais sobre a soma salarial fixa. Disse: “o futuro é com mais universidades, inversões em educação.” “Para os que não têm direitos trabalhistas, o Estado promoverá ações”. Prometeu nos próximos dias novidades de registro dos trabalhadores autônomos; cheque família e Auxílio Universal por filhos; medidas aos aposentados; acordos com empresas para diminuir os preços; congelamento do preço da gasolina, e alguns produtos de supermercado, até 31 de outubro. Leia.

Agrego aqui, algo que já havia dito no artigo anterior sobre a inauguração do gasoduto Nestor Kirchner. A China, como membro do FMI, advertiu que se o acordo sobre a dívida demorar, autorizará a Argentina a usar o swap para poder pagar os vencimentos da dívida. “Com relação aos recursos chineses, a Argentina possui um swap cambial com a China no valor de 130 bilhões de yuans, equivalente a US$ 19 bilhões. Essa troca, que foi renovada por Massa e Pesce em sua recente viagem a Pequim pelos próximos três anos, representa hoje 60% das reservas brutas do Banco Central.” Leia. O ministro da economia, Massa, revelou como o FMI pressionou a que não se construísse o gasoduto a fim de garantir a diminuição do gasto público. A sua linha é a já proposta pela vice-presidenta e realizada por Nestor Kirchner: a da renegociação com o FMI, para poder pagar, “mas para que nunca mais volte à Argentina”, como acaba de afirmar.

Não é casual que Milei exponha sua decidida oposição, numa eventual eleição presidencial, às relações com a China, o Brasil, ao BRICS e ao Mercosul. Leia no Pátria Latina. Carregado de uma verborragia anti-comunista, ao excluir relações econômicas com a China, uma das maiores potências do mundo atual, Milei expressa desconhecer que as mesmas são hoje inevitáveis para o desenvolvimento humano global, independentemente das ideologias. A chancelaria da República Popular da China não hesitou em contestá-lo. Impedir as relações comerciais com a China, apoderar-se do lítio, do gás e do cobre, impedir a entrada da Argentina no BRICS são os temas centrais dos EUA nos bastidores da campanha de Milei e Patricia Bullrich.

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Enfim, o inesperado resultado das PASO, preocupa, mas não paralisa. Os resultados pouco favoráveis à UP e às forças políticas do peronismo não significam que ele está morto. A cúpula e a direção peronista não chegaram a tempo a boa parte dos excluídos. Debilidade nem sempre é traição. É falta de direção. O golpe judicial-midiático é mais sutil e imperceptível que o militar. Mas, golpe é golpe. Os promotores do atentado à vice-presidenta Cristina Kirchner, estão intactos. A repressão e inconstitucionalidade em Jujuy estão presentes. O ambiente político-social disseminado é de ódio e violência desestabilizadora. A ira do poder hegemônico cobiçando o lítio e odiando a inauguração do gasoduto em Vaca Morta é latente. Nessas condições, ocorreram as PASO.

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Mas, o peronismo como movimento está vivo. Há prenúncios de que a tradição operário sindical peronista, a luta dos organismos dos Direitos Humanos, das mães e avós da Praça de Maio pela “Memória, Verdade e Justiça”, das mulheres de lenços verdes do “Nenhuma a Menos”, se colocará em movimento. Poderá haver reações fortes desta base social para pressionar e apoiar o governo ao mesmo tempo, para evitar o abismo na Argentina. A CTERA (Confederação dos Trabalhadores da Educação) exige a imediata reabertura das paritárias salariais diante do abrupto aumento inflacionário. Ao mesmo tempo, há muito debate sobre como levar a batalha cultural e comunicacional nos bairros, fábricas e centros de estudo e trabalho. Um dado fundamental que não deve cair no esquecimento, é que Axel Kicillof, candidato à reeleição como governador da Província de Buenos Aires, a mais populosa da Argentina, obteve 36,4% dos votos para a UP; superior em quantidade e qualidade ao que representa Milei. O voto ao Kicillof, ex-ministro da economia de Cristina Kirchner, que se destacou pelo seu combate ao FMI e aos fundos abutres no G20 de 2015, é um dos melhores dirigentes políticos do peronismo hoje, executor de projetos de Estado com mobilização popular. O jornalista Fernando Boroni faz um excelente chamado à liderança da UP, a seguir o exemplo de Axel Kicillof que foi eleito governador em 2019, com 55% de votos, movendo-se com o seu histórico carro (Clio), organizando 250 comícios nos bairros da Província, interagindo com os pobres. Tarefa essencial para romper o silêncio dos humildes e dignificá-los com uma transformação verdadeira combatendo a pobreza e a desigualdade social.

Helena Iono | Colunista na Diálogos do Sul, direto em Buenos Aires.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Helena Iono Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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