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Quem era o ‘cônsul’ e a quem interessava matar Marielle? Pistas permanecem soltas

Desde o início, há todo um aparato para abafar o caso, mas ventos ainda não estão favoráveis para fazer a Justiça que deve ser feita, avalia André Martin
Amaro Augusto Dornelles
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Atualizada em 25 jun. 2023, às 15h09

“Acredito que vamos chegar a uma solução do crime” que vitimou a ex-vereadora do Rio de Janeiro (RJ) Marielle Franco (PSOL) em 2018. A declaração foi dada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), recentemente à Agência Pública

De fato, após sete meses de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nesta segunda-feira (24), o ex-PM Élcio de Queiroz fez uma delação premiada, confessou participação no crime e deu margem para novos rumos da investigação. De acordo com a delação, o também ex-PM Roniel Lessa teria sido o autor dos disparos.

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Apesar de, aparentemente, estar resolvida a questão de quem matou Marielle e seu motorista Anderson Gomes, o caso ainda não está solucionado. O principal questionamento gira em torno de quem estaria se beneficiando com o protelamento da revelação de quem mandou matar Marielle.

Uma das pistas nesse sentido ficou ofuscada pela profusão de notícias veiculadas diariamente. É preciso lembrar que ganhou destaque, em todo o país, a gravação na qual o “número um de Bolsonaro” dizia: “Eu sei dessa história da Marielle toda, irmão, sei quem mandou. Sei a p*** toda. Entendeu?”. Trata-se do major reformado Ailton Barros, que já foi preso pelo menos sete vezes pelo Exército, segundo o Superior Tribunal Militar. 

Em 1997, no 17º Grupo de Artilharia de Campanha, Ailton foi preso, em Natal, após tentativa de abuso sexual de uma garota dentro do acampamento militar. Em maio deste ano, foi detido novamente, desta vez em uma trama que pode estar relacionada ao caso Marielle.

Esquema das vacinas

Barros era homem da confiança de Bolsonaro. Recentemente, seis homens ligados ao ex-presidente foram presos sob a acusação de terem inserido informações falsas no ConectSUS para obter vantagens ilícitas, beneficiando o ex-presidente. Entre eles, estavam o tenente-coronel Mauro Cid e o major Ailton Barros.

Leia também: Caso Marielle: 5 anos marcados por indignação, mas esperança por solução permanece viva

Gravações interceptadas pela Polícia Federal revelam que, em áudio enviado a Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Barros diz  ter informações sobre o assassinato de Marielle. A história é sabida, mas um detalhe parece ter passado despercebido: o trecho em que Barros diz que, “de repente, nem precisa falar com o cônsul”.

Faz-se necessária a apresentação de mais um personagem: Marcello Siciliano (PHS). Segundo o portal IG, o ex-vereador do Rio de Janeiro intermediou a adulteração de informações sobre vacinação de Bolsonaro no sistema do Ministério da Saúde. Com o sucesso na fraude, Barros teria pedido a Cid um encontro de Siciliano com o “cônsul”.

Eis o registro da conversa: 

“Siciliano já vem tentando resolver isso há bastante tempo; manda e-mail e ninguém responde, entendeu? Então, ele partiu para a direção do cônsul, que ele entende que é quem dá a palavra final. Mas a gente sabe que nem sempre é assim, né? Então quem resolve o problema do garoto, entendeu? ‘tá nessa história de bucha [de canhão, para ser queimado]. Se não tivesse de bucha, irmão, eu não pediria por ele, tá de bucha. Eu sei dessa história da Marielle toda, irmão, sei quem mandou. Sei a p*** toda. Entendeu?”.

A interpretação da imprensa hegemônica foi de que Barros se referia realmente ao cônsul dos Estados Unidos no Brasil, já que este poderia ajudar a para obter o visto de entrada do ex-vereador nos EUA, uma vez que Marcelo era investigado por suposto envolvimento na morte de Marielle e Anderson. Porém, o professor de Geopolítica da Universidade de São Paulo (USP) André Martin, em entrevista à Diálogos do Sul, sugere mais atenção a esse caso e sugere que a Polícia Federal (PF) deve se deter na descoberta de quem é o tal cônsul.

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O fato é que em sete meses do governo de coalizão do PT, o caso avança pouco. Enquanto os novos ventos do Planalto não sopram para longe a poeira da estagnação, a revelação de Ailton Barros — mesmo que desmentida pelo autor — não deixa de ser uma ameaça para o clã Bolsonaro. Afinal, de onde saiu isso pode ter muito mais.

Além da delação premiada, Barros se postula como candidato ao posto de próximo “arquivo a ser queimado” nesta história de horror. O tema não voltou à tona, por mais que as poucas palavras proferidas fossem capazes de fazer tremer a base do bolsonarismo.

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O Brasil tem uma trágica tradição de ignorar assassinatos políticos, seja sob a forma de acidentes rodoviários, aéreos ou medicamentosos. Mas o Caso Marielle pode fugir dessa sina. A sede de sangue pode ter levado os vampiros, então em vias de tomar o poder, a irem com muita sede ao pote.

Desde o início, há todo um aparato para abafar o caso, mas ventos ainda não estão favoráveis para fazer a Justiça que deve ser feita, avalia André Martin

Marcelo Camargo/Agência Brasil
André Martin: "Até quando a mídia hegemônica vai continuar ignorando os mandantes da execução?"

Beneficiário

Martin se diz pasmo pelo fato de, até hoje, não ter ouvido ninguém começar a discutir o caso Marielle a partir da questão: “quem se beneficiou da morte dela? Ela era adversária política de quem, incomodava politicamente qual grupo?”.

Na visão do docente, a declaração de Airton Barros, dizendo que Siciliano é bucha, boi de piranha, não significa que ele seja o responsável: “todos devem ser investigados”, diz. E ainda questiona, de maneira enigmática, cifrada, quem é o tal “cônsul”? “Quem é essa criatura? Essas são perguntas que a Polícia Federal teria de responder”. Seria esse cônsul literalmente o diplomata estadunidense? Para Martin, aí entram as conjecturas.

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Martin aponta que Marielle era a antípoda da candidatura de Flávio Bolsonaro e, olhando mais atentamente, ele, “o provável ‘cônsul’, seria o maior beneficiário pela ausência da Marielle na disputa contra ele para o cargo de senador [em 2018]”. O professor segue crítica: “disso ninguém fala. Trata-se de uma indicação importante para uma investigação. E agora observamos muitos elementos que apontam para o ex-clã presidencial”, diz Martin.

Operação Abafa

A pergunta que não quer calar, sugere o professor, é: até quando a mídia hegemônica vai continuar ignorando os mandantes da execução, de acordo com o interesse do clã?

Para o especialista em Geopolítica, isso significaria que o establishment brasileiro, os donos do poder, não teriam outra figura política para expressar sua posição, a não ser Bolsonaro. 

“É por isso que ele não sai da mídia – e nem vai sair até o fim da questão. Estamos exatamente nesse limbo: não se quer chegar até as últimas consequências — que seria a prisão de todos. Todos têm crimes suficientes para ir para a cadeia.”

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Para o professor, “a democracia brasileira está nessa encruzilhada: ou consegue avançar para fazer Justiça e isso termina com a prisão dos bolsonaristas, ou vamos ficar com eles o tempo todo, desmentindo evidências, impedindo investigações e criando problemas”.

“Por que não se investigou lá atrás, desde o início? Seria por que, chegando-se aos autores, aos mandantes, Bolsonaro não poderia sequer concorrer à presidência?”, questiona Martin.

Militares 

Ele recorda que há outros cadáveres também, como o de Adriano da Nóbrega, chefe do “Escritório do Crime”, ligado a Bolsonaro. “Essa história é muito complicada e expõe toda a podridão que chegou ao poder em 2018. Trama muito sinistra”, denuncia.

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Para o especialista, não se pode esquecer do ministro José Múcio Monteiro, da ‘Defesa da Farda’, com tantos generais na berlinda. Questão delicada, pondera: “tanto no 8 de janeiro — já se sabe que há muitos militares envolvidos — como nesse caso da ‘Operação Abafa’, também têm possivelmente muitos fardados envolvidos”. 

“Isso vai ser um problema político, além de jurídico. E é por isso que as coisas têm seu timing. Não creio que as coisas se resolvam muito rápido”, avalia. Na análise política, ensina, “é preciso fazer a leitura correta da correlação de forças. E os ventos ainda não estariam favoráveis ao campo democrático para se fazer a Justiça que deve ser feita”.

Assessor executado

A execução de Marielle se deu em 14 de março de 2018. Segundo o jornal El País, da Espanha, o vereador Siciliano poderia ter tramado o assassinato junto com o ex-policial militar e miliciano Orlando de Oliveira de Araújo. 

Siciliano, à época com 46 anos, prestou depoimento como testemunha, junto com outros vereadores. Dois dias depois, no domingo, 8 de abril, Carlos Alexandre Pereira Maria, de 37 anos, então colaborador parlamentar do político do PHS, foi executado dentro do seu carro. O crime foi interpretado como queima de arquivo.

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Até hoje, apenas duas pessoas foram acusadas pelos homicídios da vereadora e do motorista: o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Queiroz. 

Eles foram presos preventivamente em março de 2019 e aguardam julgamento. Lessa é suspeito de ter feito os disparos. Já Queiroz teria dirigido o carro usado na emboscada. Ambos negam as acusações.

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Ronnie Lessa foi expulso da Polícia Militar do Rio de Janeiro após ser condenado na Justiça por ocultação e comércio ilegal de armas — após 117 fuzis terem sido apreendidos na casa de um amigo seu. A dupla aguarda julgamento com júri popular, que ainda não tem data para ocorrer.

Pistas falsas e obstruções

Só teremos certeza de que os dois indivíduos são efetivamente os executores depois que forem julgados”, disse à BBC Brasil Jurema Werneck, representante da Anistia no Brasil, que acompanha o caso Marielle. As investigações não apontaram ainda se Lessa e Queiroz agiram sozinhos ou por ordem de alguém.

Dino mandou a PF abrir um novo inquérito para investigar os assassinatos. A instituição passou a auxiliar na apuração dos homicídios, que estão a cargo das autoridades fluminenses. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), anunciou novos integrantes da força-tarefa à frente do caso.

Trata-se da quarta troca — em cinco anos — dos promotores responsáveis pelo caso Marielle. O inquérito também já passou pelas mãos de cinco delegados da Polícia Civil do Rio. Segundo apuração da BBC Brasil, as investigações têm sido marcadas por pistas falsas, reviravoltas e tentativas de obstrução — sem que nunca tenha sido encontrada a arma do crime ou revelada sua origem ou das munições empregadas.

“Esperamos que o Governo Federal cumpra o seu dever e garanta que serão respondidas as perguntas que restam, porque são muitas”, diz Jurema Werneck.

Amaro Augusto Dornelles e Vanessa Martina Silva


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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