O trágico absoluto é relativamente raro na literatura. Trata-se de um trabalho literário rigorosamente fundado no postulado da fatalidade da vida humana. Chega, no extremo, a proclamar que o melhor mesmo é nem nascer e, uma vez, sendo inevitável a vida, morrer cedo.
Os seres humanos destinam-se a passar por sofrimentos e derrotas, quase sempre, imerecidas; os mais sensíveis são as maiores vítimas, enquanto aqueles menos, muitas vezes se alvoram em algozes de outros seres humanos, tão pouco obtêm a felicidade.
Na obra “Quincas Borba”, mais que em qualquer outro romance de Machado de Assis, o mundo não oferece oportunidades àqueles que não se destinam a parasitar outros seres humanos; aos mais ingênuos restará apenas a loucura e a morte na mais completa solidão. Aos espertos e malandros, a ânsia permanente de acumular riquezas e de consumir, consumir sempre num mundo oco de aparências, até o esgotamento.
No trágico absoluto, tanto Machado, quanto Shakespeare, dão razão de sobra a Pascal ao dizer “que Cristo permanece em agonia até o final dos tempos”, conduzido pelas mãos humanas insensíveis.
“Não se comenta Shakespeare, admira-se”, pois “Shakespeare dá a comer e a beber a sua carne e o seu sangue”. Da mesma forma também o fez, para todo o sempre, o autor desta frase, nosso Machado de Assis.
E essa admiração de Machado se concentra, sem dúvida, na ousadia de Shakespeare.
E esta está no rompimento de preconceitos e paradigmas do teatro e dos costumes de seu tempo.
Acontece que à semelhança do que faz o inglês, Machado também extrapolou, de maneira magistral, metafórica e cinicamente os paradigmas de sua época, época negra da escravidão, da desagregação do Império que é substituído por uma República sob a chibata militar, na essência uma continuidade do antigo regime.
Wikimedia Commons
“Quincas Borba”, ilustração
Será nas personagens mais “cotidianas” que surgem os grandes dilemas shakespearianos, tais como os de Hamlet e Ofélia, o sofrimento de Romeu e Julieta, a ganância de Macbeth e de sua esposa… No entanto, onde há o tormento e a ruína, prospera afinal a esperança. Hamlet morre, mas será substituído por Fortimbrás, as famílias Capuleto e Montéquio terminam por se entender, Macbeth perde o reino que havia usurpado.
Sempre, em todas as tragédias shakespearianas coexiste o cômico e o tragos, e, ao final a esperança, nalgum tipo de resolução dos conflitos.
Mas existe um momento de expressão da absoluta descrença nos valores da sociedade construída pelos homens: ele está na tragédia o “Timon de Atenas”!
Neste texto, inspirado e distópico, o universo é acometido de uma violenta praga: a existência humana!
Em “Timon de Atenas”, nenhuma boa ação é perdoada. Nenhum impulso decente deixa de provocar o escárnio e o desdém. A geração de um ser humano não passa de uma provocação idiota voltada à dor e a traição.
De nosso lado, a criação monumental de “Quincas Borba” se irmana ao Timon shakespeariano.
Diferentemente de todos os romances da fase realística de Machado de Assis, somente em “Quincas Borba” ouvimos o mesmo grito de guerra à maldade que a ganância dos homens pode produzir, assim como o peso da ingratidão e a linha tênue, embora feita do mais puro aço, que separa a riqueza da mais miserável pobreza.
Ao presenciar a história de “Timon de Atenas”, a plateia tem o retrato de uma sociedade corrompida, da qual todos nós fazemos parte, e pela qual somos também responsáveis. Home de extremamente generosidade, Timon é um cidadão respeitável de Atenas, pela qual lutara de armas na mão e que não mede esforços em agradar amigos, dissipando sua fortuna em presentes, agrados e em ajudas. Era também um grande mecenas, patrocinava políticos, artistas, filósofos, prostitutas e qualquer um que se dissesse ser seu amigo.
Atenienses ilustres, senadores, desfilam pelo salão de Timon e gravitam em torno dele. O mecenas é cantado, pintado, esculpido, analisado, cultuado e louvado em discursos. A prodigalidade dos elogios ao grande personagem não conhece limites.
Mas sua fortuna findará, ele procurará os amigos, e não receberá nem mesmo uma ínfima parcela da ajuda que, quando rico, tanto ofereceu! Absolutamente nenhuma solidariedade por quem tanto fizera!
Shakespeare expõe a proximidade entre pobres e ricos, separados não pelos valores, mas pelo tamanho da fortuna.
“Timon de Atenas” explode em nós a consciência do egoísmo como uma faceta terrível da corrupção e do cinismo humanos.
Como sempre conviveu com a fartura, a pobreza derruba Timon com força brutal e ele busca na misantropia e na loucura sua ruptura com o mundo, na busca da própria morte.
Talvez um dos monólogos mais significativos do ódio à sociedade dos homens e à cidade que o traíra pode aqui se expressar:
Timon: “Ah, muralhas de Atenas, vou olhar pra vocês pela última vez. Vocês, que cercam esses lobos, caiam por terra e deixem Atenas ao deus-dará. Mulheres chafurdem na bacanal. Crianças, não obedeçam mais ao pai. Escravos e idiotas arranquem do plenário os veneráveis membros murchos do Senado e assumam o poder. Virgens em flor convertam-se. Falidos do mundo, “uni-vos” – em vez de pagar as dívidas, puxem da navalha e rasguem a garganta dos credores. Trabalhadores assalariados roubem seus patrões, que são ladrões de mão grande, que roubam também, mas com o apoio da lei. Empregadas, já pra cama do patrão – a patroa ainda não voltou do bordel”.
“Que a luxúria e a libertinagem penetrem sutilmente na medula dos jovens, pra que eles nadem contra a corrente da virtude e se afoguem na perdição. Que sarnas e pústulas plantem-se fundo nos corações atenienses, e que a colheita seja a lepra geral. Que o hálito infecte o hálito, e que a amizade destile puro veneno”.
“Não levo dessa cidade execrável nada mais que a nudez do corpo. Que ela fique nua também, debaixo de mil maldições. Timon vai pra floresta, onde a fera mais desumana é mais humana que a humanidade. Que os deuses amaldiçoem os atenienses, dentro e fora dessas muralhas. Que a vida de Timon faça o seu ódio ser eterno. Contra todos os homens do mundo, no Olimpo e no Inferno. Amém”.
Rubião, herdeiro do filósofo “humanitarista” Quincas Borba, “fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista”.
Eis o primeiro parágrafo de “Quincas Borba”. Machado de Assis já introduz a história do ingênuo professor de Barbacena que, inesperadamente, recebe a herança do amigo, cuja morte é descrita em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. A fortuna vem com a incumbência exclusiva do herdeiro de cuidar do cachorro Quincas Borba, cão com o mesmo nome do finado dono.
Rubião se dá a todos que lhe cruzam no caminho com boa vontade, amizade, generosidade extrema.
A história do triângulo formado por Rubião e pelo casal Cristiano e Sofia Palha, conhecidos em um trem vindo da falida cafeicultura de Vassouras, se baseia na sedução de Rubião por Sofia e num adultério que não se realiza, pois ela o considera um caipira, sem o apelo sexual de um jovem da corte.
O casal Palha, todo o tempo, é unicamente movido pela ambição material e pelo desejo da ascensão social. O uso do amor e da sedução servem exclusivamente para a exploração moral e material do outro, que os considerava amigos.
“E assim se dá, porque depois de ter toda sua fortuna sugada pelo casal Palha e por outros falsos amigos, Rubião é descartado por todos.”
Cristiano Palha é um ‘zangão da praça’, o tipo de especulador financeiro, que surge no Brasil início dos anos 1870.
Na realidade, tanto o casal Palha, quanto o advogado e aventureiro político de nome Camacho, encarnam os valores de uma nova ordem, a da união da política e do capital financeiro, enriquecidos não apenas com especulações financeiras e com a exploração de tipos ingênuos como Rubião, mas também com as patranhas político-militares da Guerra do Paraguai, fonte de tantos corruptos e corruptores, fardados ou não.
O processo de depauperação é sequenciado pelo enlouquecimento de Rubião. Em sua loucura mantém as fortunas que esvaíra por seus dedos, sugadas pelos “amigos”. Enquanto Timon de Atenas busca na loucura de sua misoginia o ódio a todos os seres humanos, Rubião se acredita imperador, e torna-se objeto de escárnio até mesmo de uma criança, a qual salvara no auge de sua fortuna.
Falido, doente, enlouquecido, nosso Rubião não busca a fuga e morte na mata como Timon o fizera; ele retorna a Barbacena onde morrerá ao lado de seu cachorro, Quincas Borba, que era tudo o que lhe restara da vida. Até mesmo sua morte ocorre às portas de uma igreja que não se abre, afinal, ele era um arruinado.
A solidariedade humana somente se pode encontrar entre os mais humildes servos (atenienses), ou junto à velha comadre de Barbacena.
Afinal, como disse o Pintor, personagem da tragédia shakespeariana, “a não ser entre a gente simples e ingênua, está fora de uso cumprir-se com a palavra dada.”
Diríamos também, toda a dignidade humana, até os dias de hoje.
Carlos Russo Jr é colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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