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Rússia: Eurásia não é mais "um objeto de colonização" pela "Europa civilizada"

Kirill Barsky, do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, fez declaração durante Fórum Econômico Oriental (FEO), realizado entre 5 e 8/9
Pepe Escobar
The Cradle
Líbano

Tradução:

O Fórum Econômico Oriental (FEO), reunido em Vladivostok entre 5 e 8 de setembro, é um dos eventos anuais indispensáveis para nos manter atualizados sobre o complexo processo de desenvolvimento, não apenas do Extremo Oriente Russo mas também dos principais avanços da integração eurasiana.

Refletindo um 2022 imensamente turbulento, o tema da reunião de Vladivostok é “Rumo a um Mundo Multipolar”. O próprio presidente russo Vladimir Putin, em uma curta declaração aos participantes dos governos e do empresariado de 68 países, deu o tom do encontro: 

“O obsoleto modelo unipolar vem sendo substituído por uma nova ordem mundial embasada nos princípios da justiça e da igualdade, bem como no reconhecimento do direito de todos os estados e povos a seu próprio caminho soberano de desenvolvimento.  Poderosos centros políticos e econômicos estão tomando forma aqui na região do Pacífico Asiático, atuando como força propulsora nesse processo irreversível”.

Nessa fala à sessão plenária do FEO, a Ucrânia mal foi mencionada. A resposta de Putin ao ser perguntado sobre a questão foi: “Esse país é parte do Pacífico Asiático?”.

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A fala foi, em grande medida, estruturada como uma séria mensagem ao coletivo ocidental, e também como aquilo a que o importantíssimo analista Sergey Karaganov chama de “a maioria global”. Dentre diversos pontos, estes talvez sejam os mais importantes:  

  • A Rússia é um estado soberano e irá defender seus interesses.
  • A “febre” das sanções ocidentais vem ameaçando o mundo – e as crises econômicas não terminaram após a pandemia. 
  • Todo o sistema das relações internacionais mudou. Há uma tentativa de manter a ordem mundial por meio da mudança das regras.
  • As sanções contra a Rússia vêm destruindo empresas por toda  a Europa. A Rússia vem conseguindo lidar com agressões econômicas e tecnológicas por parte do Ocidente.
  • A inflação vem quebrando recordes nos países desenvolvidos. Na Rússia, os índices são de cerca de 12%.  
  • A Rússia desempenhou seu papel nas exportações provenientes da Ucrânia, mas a maior parte dos carregamentos foi para países da União Europeia, e não para países em desenvolvimento. 
  • O bem-estar  do ‘Bilhão Dourado’  vem sendo ignorado. 
  • O Ocidente não está em posição de ditar os preços do petróleo à Rússia.
  • O rublo e o yuan serão usados para pagamentos do petróleo.
  • O papel do Pacífico Asiático aumentou consideravelmente.

Resumindo: A Ásia é o novo epicentro do progresso e da produtividade tecnológicos.

Kirill Barsky, do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, fez declaração durante Fórum Econômico Oriental (FEO), realizado entre 5 e 8/9

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Não mais um “objeto de colonização” 

Tendo lugar apenas duas semanas antes de uma outra reunião anual de grande importância – a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), a ser realizada em Samarcanda – não é de admirar que as principais discussões do FEO girem em torno da crescente intercalação econômica entre o a OCX e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

Este tema é tão crucial quanto o desenvolvimento do Ártico Russo: que abarca 41% de seu território total e consiste na maior base de recursos da federação, espraiando-se por nove regiões e abrangendo a maior Zona Econômica Especial (ZEE) do planeta, ligada ao porto livre de Vladivostok. O Ártico vem sendo desenvolvido com base em diversos projetos de importância estratégica de processamento de recursos minerais, energéticos, hídricos e biológicos. 

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É, portanto, perfeitamente adequado que a ex-ministra das relações exteriores da Áustria, Karin Kneissel, que se autodescreve como uma “historiadora entusiástica”, gracejou sobre ser fascinada com a maneira como a Rússia e seus parceiros asiáticos vêm lidando com o desenvolvimento da Rota do Mar: “Uma de minhas expressões favoritas é a de que as empresas aéreas e os dutos estão se deslocando rumo ao leste. E venho dizendo isso há vinte anos”. 

Em meio a uma pletora de mesas-redondas explorando todos os temas, desde o poder do território, as cadeias de fornecimento e a educação global até “as três baleias” (ciência, natureza, seres humanos), é possível afirmar que a principal discussão no fórum, no dia 06/09, centrou-se no papel da OCX.

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Além dos membros plenos – Rússia, China, Índia, Paquistão, quatro países centro-asiáticos (Casaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão), mais o membro mais recente que é o Irã, nada menos que onze outras nações expressaram seu desejo de se filiar, desde o Afeganistão, que é observador, até a Turquia, parceira de diálogo.

Grigory Logvinov, o secretário-geral adjunto da OCX, ressaltou que o potencial econômico, político e científico dos participantes que se constituem no “centro de gravidade” da Ásia – mais de um-quarto do PIB mundial, 50% da população do planeta – ainda não foi totalmente aproveitado.

Kirill Barsky, do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, explicou que a OCX, nos termos de sua carta, é, na verdade, o modelo da multipolaridade, comparado ao pano de fundo dos “processos destrutivos” desencadeados pelo Ocidente.

O que nos leva à agenda econômica do processo de integração eurasiano, com a União Econômica Eurasiana (UEEA) configurada como o principal parceiro da OCX.

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Barsky vê a OCX como “o núcleo da estrutura eurasiana, formando a agenda da Grande Eurásia no âmbito de uma rede de organizações de parceria”. É aí que entra a importância da cooperação com a ASEAN.

Barsky não poderia deixar de invocar Mackinder, Spykman e Brzezinski – que viam a Eurásia como “um objeto a ser usado conforme os desejos dos estados ocidentais, confinados no continente, longe das costas oceânicas, para que o mundo ocidental pudesse dominar em um confronto global entre terra e mar. A OCX, da forma como foi desenvolvida, consegue triunfar sobre todos esses conceitos negativos”.

E aqui chegamos a uma ideia largamente compartilhada, de Teerã a Vladivostok:

A Eurásia não é mais “um objeto de colonização” pela “Europa civilizada”, mas volta a ser um agente da política global.

 

'A Índia quer um século XXI asiático' 

Sun Zuangnzhi, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, discorreu sobre o interesse da China na OCX. Ele centrou-se em realizações: nos 21 anos que se passaram desde sua fundação, o que era um mecanismo para o fortalecimento da segurança entre a China, a Rússia e estados centro-asiáticos evoluiu para se converter em “mecanismos de cooperação multissetoriais e de múltiplos níveis”.

Em vez de se “converter em um instrumento político”, a OCX deveria capitalizar seu papel de fórum de diálogo para estados com uma história de conflitos difíceis – “as interações às vezes são difíceis” – e focar a cooperação econômica nas áreas de “saúde, energia, segurança alimentar e redução de pobreza”.

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Rashid Alimov, anteriormente secretário-geral da OCX e hoje professor no Instituto Taihe, ressaltou as “altas expectativas” das nações centro-asiáticas, o cerne da organização. A ideia original permanece – embasada na indivisibilidade da segurança em nível trans-regional na Eurásia.

Bem, nós todos sabemos como os Estados Unidos e a ONU reagiram quando, no final do ano passado, a Rússia propôs um diálogo sério sobre a “indivisibilidade da segurança”. 

Como a Ásia Central não possui uma saída para o mar, é inevitável, como ressaltado por Alimov, que a política externa do Uzbequistão privilegie o engajamento na aceleração do comércio interno à OCX. Rússia e China podem ser os principais investidores e, agora, o Irã também tem um importante papel a desempenhar. Mais de 1200 empresas iranianas estão trabalhando na Ásia Central”.

A conectividade, mais uma vez, tem que aumentar: “O Banco Mundial vê a Ásia Central como uma das economias menos conectadas do mundo”.

Sergey Storchak, do banco russo VEB, explicou o funcionamento do “consórcio inter-bancos da OCX”. Os parceiros usaram uma “linha de crédito do Banco da China” e pretendem assinar um acordo com o Uzbequistão. O consórcio inter-bancos da OCX será administrado pelos indianos em base rotativa – e eles têm a intenção de acelerar as operações. Na próxima cúpula a ter lugar em Samarcanda, Storchak espera que seja traçado um mapa de percurso para a transição para o uso de moedas nacionais no comércio regional.

Kumar Rajan, da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Jawaharlal Nehru expressou a posição indiana, indo direto ao ponto: “A Índia quer um século XXI asiático. É necessária uma cooperação estreita entre a Índia e a China. Juntas, elas podem fazer o século asiático acontecer”. 

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Rajan observou que a Índia não vê a OCX como uma aliança, mas sim como um compromisso com o desenvolvimento e a estabilidade política da Eurásia.

Ele colocou a importantíssima ideia de que a conectividade gira em torno de a Índia “trabalhar com a Rússia e a Ásia Central no Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS) e em um de seus principais nós, o porto de Chabahar no Irã: “A Índia não tem conectividade física direta com a Ásia Central. O CITNS conta com a participação de uma linha de navegação iraniana com uma frota de 300 embarcações, conectando-se a Mumbai. O Presidente Putin, na recente reunião realizada no Cáspio, se referiu de forma direta ao CITNS”. 

É de importância crucial que a Índia não apenas apoie o conceito russo de Parceria da Grande Eurásia, mas que também se engaje na criação de um acordo de livre comércio com a UEEA: o primeiro-ministro Narendra Modi, por sinal, esteve presente no fórum de Vladivostok no ano passado.

Em todas as nuançadas intervenções citadas acima, alguns temas são constantes. Após o desastre do Afeganistão e o fim da ocupação americana naquele país, o papel estabilizador da OCX não pode ser suficientemente enfatizado. Um ambicioso mapa de percurso é um imperativo – a ser provavelmente aprovado na cúpula de Samarcanda. Todos os atores envolvidos passarão gradualmente a usar moedas bilaterais em seu comércio exterior. E a criação de corredores de trânsito vem levando à integração progressiva dos sistemas nacionais de circulação.


Faça-se a luz

Uma mesa-redonda de importância chave sobre o “Portal para um Mundo Multipolar” expôs detalhadamente o papel da OCX, esboçando a maneira pela qual a maior parte das nações asiáticas são “amigáveis” ou “benevolamente neutras” quando se trata da Rússia após o início da Operação Militar Especial na Ucrânia. 

As possibilidades de expansão da cooperação por toda a Eurásia, portanto, permanecem praticamente ilimitadas. A complementariedade das economias é o principal fator. Essa expansão levaria, entre outros desdobramentos, a um Extremo Oriente Russo como nó multipolar, a ser transformado no “Portal Russo para a Ásia” por volta da década de 2030.

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Wang Wen, do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros ressaltou a necessidade de a Rússia redescobrir a China – encontrando a “confiança mútua nos níveis intermediários e das elites”. Ao mesmo tempo, verifica-se uma espécie de corrida global para a o ingresso nos BRICS, indo desde Arábia Saudita, Irã e Afeganistão até a Argentina;

“Isso significa um novo modelo de civilização para as economias emergentes, como China e Argentina, porque elas desejam ascender de forma pacífica (…) creio que estamos na nova era da civilização”. 

B. K. Sharma, da Instituição do Serviço Unido da Índia, voltou a Spykman e à sua rotulação do país como um estado litorâneo. Isso ficou para trás: a Índia hoje conta com múltiplas estratégias, que vão desde o a conexão com a Ásia Central até a política do “Agir Rumo ao Leste”. De modo geral, é uma questão de voltar-se para a Eurásia, uma vez que a Índia “não é competitiva e precisa se diversificar para conseguir um melhor acesso à Eurásia com o apoio logístico da Rússia”. 

Sharma ressalta que a Índia leva muito a sério a OCX, os BRICS e o RIC, e vê a Rússia como desempenhando “um papel importante no Oceano Índico”. Ele trata de forma mais nuançada a perspectiva do Indo-Pacífico: a Índia não quer o Quad como uma aliança militar, preferindo a “interdependência e a complementaridade entre Índia, Rússia e China”. 

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Todas essas discussões se interconectam com dois temas recorrentes em diversas das mesas-redondas de Vladivostok: energia e o desenvolvimento dos recursos naturais do Ártico.

Pavel Sorokin, Ministro-Adjunto da Energia russo, negou a tese de uma tempestade ou de um tufão nos mercados de energia: “É muito diferente de um processo natural. Trata-se de uma situação criada pelo homem”. A economia russa, ao contrário, é vista pela maioria dos analistas como, de forma lenta, mas segura, planejando seu futuro de cooperação Ártico-Asiática – incluindo, por exemplo, a criação de uma sofisticada infraestrutura de carregamentos de Gás Natural Liquefeito (GNL). 

O Ministro da Energia Nikolay Shulginov assegurou que a Rússia, de fato, irá aumentar sua produção de gás levando em conta o crescimento das entregas de GNL e a construção do Poder da Sibéria-2 chegando até a China: “Iremos não apenas ampliar a capacidade do gasoduto como também expandir a produção de GNL, que tem mobilidade e excelente aceitação no mercado global”.

Quanto a Rota do Mar do Norte, a ênfase recai na construção de uma frota moderna e poderosa de quebradores de gelo – usando inclusive energia nuclear. Gadzhimagomed Guseynov, Ministro-Adjunto do Desenvolvimento do Extremo Oriente e do Ártido afirma de forma categórica: “O que a Rússia tem que fazer é tornar sustentável a Rota do Mar do Norte como uma importante rota de trânsito”.

Há um plano de longo prazo, com horizonte de tempo até 2035, de criar infraestrutura para a navegação segura segundo “as melhores práticas árticas” de aprendizado passo a passo. A NOVATEK, segundo seu vice-presidente Evgeniy Ambrosov, vem conduzindo, nos últimos anos, nada menos que uma revolução em termos de navegação ártica e construção de navios.

Kniessel, ex primeira-ministra austríaca, lembrou que ela não percebia o grande quadro geopolítico em suas discussões, em seus tempos de atividade na política europeia (ela hoje vive no Líbano): “Eu escrevia sobre a passagem da tocha do Atlanticismo para o Pacífico. Companhias aéreas, dutos de combustíveis e transporte marítimo vêm se deslocando para o Oriente. O Extremo Oriente é, na verdade, a Rússia Pacífica”.

Pensem os atlanticistas o que pensarem, a última palavra, no presente momento, talvez fique com a Vitaly Markelov, do conselho diretor da Gazprom: “A Rússia está pronta para o inverno. Haverá aquecimento e luz para todos”. 

Pepe Escobar |The Cradle
Tradução: Patricia Zimbres


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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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