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“Se política de privatizações continuar, teremos um colapso do sistema de saúde em SP”

Para o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, enquanto Brasília lava suas mãos com relação à Saúde, governo Doria “empurra com a barriga”
Amaro Augusto Dornelles
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

A gestão na Saúde pública do Brasil está à beira das Fossas Marianas, o mais profundo abismo oceânico – a 10.984 metros da superfície*. O governo Federal lava as mãos (com desinfetante): em plena escalada coronavírus, em 11 de março último, o Ministério da Saúde anunciou ter habilitado apenas 10% dos mil leitos prometidos para o país no final de janeiro, quando o surto era restrito à China. 

No estado de São Paulo, o mais rico da União, depois de quase três décadas de gestão do PSDB, o vírus da terceirização do trabalho de profissionais da saúde vem debilitando atendimento público, colocando em risco a vida de quem não tem outra alternativa para buscar tratamento. 

O governo municipal acaba arcando com a maior responsabilidade sobre a gestão do sistema, por estar mais próximo do cidadão. O problema é que Prefeitura da capital segue à risca o modelo tucano governar: a prioridade é para resolver os problemas fiscais. Saúde pública, a vida da população, tudo é secundário. Assim como acontece nos planos Federal e estadual, a ordem é terceirizar o que for possível; e o impossível também, se colar.

Fuga do precipício

A saúde de Sampa definha a olhos vistos. Por isto, resolvemos conversar com Eder Gatti Fernandes, 37 anos, no segundo mandato como presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Simesp (desde 2014), a fim de entender o que vem se passado com a saúde de São Paulo, que este ano elege seu novo governante.

Fiel à tradição de combatividade do Simesp, Fernandes mostrou as consequências da terceirização dos serviços de saúde desde o governo FHC, avaliando atuação das gestões de Luiza Erundina (PT), Paulo Maluf (PDS-PPR-PPB), Celso Pitta (PPB), (Marta Suplicy (PT), José Serra (PSDB), Gilberto Kassab (PSD), Fernando Haddad (PT), João Dória (PSDB) e Bruno Covas (PSDB). 

Em tempos de polarização política jamais experimentada, a avaliação do presidente do Sindicato dos Médicos busca a correção do caminho para escapar do precipício, com uma análise técnica e apartidária de tudo o que vem sendo feito.

*Leste das ilhas Marianas, delimita ‘fronteira’ entre as placas tectônicas do Oceano Pacífico com as Filipinas

Para o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, enquanto Brasília lava suas mãos com relação à Saúde, governo Doria “empurra com a barriga”

Agência Sindical / Youtube reprodução
Eder Gatti Fernandes, 37 anos, no segundo mandato como presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Simesp

Confira a entrevista

Diálogos do Sul: Qual teu balanço da gestão tucana na Prefeitura de São Paulo (2017/2020), depois dos 15 meses de João Dória, que passou a bola pra Bruno Covas, de olho no governo do Estado?

Eder Gatti Fernandes: A gestão Bruno Covas se caracteriza pelo enxugamento do serviço público.  E isso não é só na saúde, é a tônica de todas as áreas…

A prática vem de mais de 20 anos de gestão do PSDB no estado, o conhecido “Tucanistão Paulista”…

Exato, temos várias medidas que afetaram serviços essenciais, privando a população de seus direitos mais elementares. Este é o principal legado. O serviço de atendimento móvel de urgência, SAMU, é exemplo característico da gestão Covas. Tinha várias ambulâncias esparramadas por todo o município que foram fechadas pra economizar. E agora eles terceirizam o serviço de urgência.

Quais as consequências do “choque de gestão”?

Com a redução disponibilidade de ambulâncias e profissionais – não temos acesso aos números oficiais – mas várias unidades modulares, acho que eram 56 bases do SAMU, foram fechadas. O serviço passou por uma ‘readequação’ com piora nas condições de trabalho e no atendimento à população. O serviço tinha determinada estrutura, passou pelo fechamento de unidades, e agora passa por processo de terceirização. 

As Organizações Sociais, OSs.

Sim. E a consequência é privação, maior demora no atendimento essencial de urgência e emergência e, consequentemente, mortes. Não temos acesso aos números, repito. Nos baseamos em denúncias de médicos, técnicos de enfermagem enfermeiros e motoristas. Eles reclamam ter ficado mais longe das ocorrências: houve piora nas condições de trabalho no atendimento à população. Houve medida muito semelhante nos anos anteriores, quando Dória era prefeito. Foi uma medida de desestruturação no serviço de urgência. 

No município de São Paulo, temos Assistência Médico Ambulatorial, AMAs, unidades de urgência de baixa complexidade. Sempre fomos críticos ao modelo, mas ele sempre foi uma forma de acesso da população ao serviço de saúde. Quando era prefeito, Dória veio com uma proposta de fechar os AMAs. Para tanto, ele precisava ampliar muito unidades de saúde da família, o que seria ótimo. Só que ele veio com a proposta de primeiro fechar as AMAs, (mais de 100 segundo a imprensa). E um dia, quem sabe, ampliaria a Saúde da Família. 

Quando as AMAs foram fechadas, a população ficou sem acesso. Isso resultou em movimento de resistência tanto dos sindicatos quanto da comunidade em defesa da reabertura dessas unidades. Em várias delas, a Prefeitura foi obrigada a reabrir as AMAs por pressão popular. Enfim, as características dos governos Bruno Covas e João Dória são contínuas, são uma só: busca a redução de serviços e terceirizações, com objetivo único e exclusivo de reduzir custos. 

A terceirização vem se dando através das Organizações Sociais, OSs. Elas são confiáveis? 

As OSs são complexas, não vêm de agora. O início é tucano. O Projeto veio por lei federal na gestão FHC, casada com a lei de responsabilidade fiscal, regulamentada pelo então governador do Estado, Mário Covas. Elas surgiram depois da Constituição, para garantir a existência do Sistema Único de Saúde, SUS, durante os anos 1990 e na primeira década de 2000 — para ampliar o serviço público sem inflar a burocracia estatal. 

O Estado brasileiro caminhava para o estado mínimo (FHC) e esta foi a solução encontrada. Tenho muitas críticas com relação a isso. Mário Covas implantou o sistema no estado de São Paulo, fez organizações como a Sociedade Paulista para Desenvolvimento da Medicina Social, SPDM, que cresceu muito nesse período. 

Chegou a ‘entregar’ bons resultados?

Hoje ela é uma OS tradicional. O que não significa que também não tenha muitos problemas: são alvo de diversas críticas de médicos que procuram nosso Sindicato. Mas os problemas de atendimento à saúde cresceram de maneira absurda na gestão Paulo Maluf (PPR) – de 1993 a 1997 — com seu Plano de Atendimento à Saúde, PAS — que destruiu o SUS, iniciado pela prefeita Luiza Erundina (PT). 

O programa andou pra trás, terceirizando toda a assistência à saúde na gestão posterior, de Celso Pitta. Depois veio Marta Suplicy (PT), que começou a reestruturar o SUS em São Paulo e a abrir espaço para as OSs na atenção primária. Quando José Serra e Gilberto Kassab chegaram à prefeitura, (2005-2009) foi o grande bum: uma explosão de OS na cidade: cerca de 55% da gestão da saúde ficou na mão delas, assim como toda a estratégia da Saúde da Família. 

Quando veio a gestão Haddad, era preciso fazer um chamamento público pra acomodar as OSs nos serviços, pois a regulamentação delas exigia processo de chamamento público. Era como se precisasse abrir edital de concorrência pública para que elas pudessem assumir as unidades. O governo Haddad loteou o município em 25 unidades e fez chamamentos públicos por região, não por unidade; as OSs assumiram bairros inteiros. Eram contratos de R$ 100 milhões. 

Até hoje se ouve críticas a tais iniciativas…

O governo do PT fez o que era necessário ser feito, pois, tinha um limite de tempo, que era 2015 pra fazer isso. Ele organizou, mas também sedimentou o processo. Agora ninguém tira isso. O problema é que hoje OS virou business, negócio. Diz que é instituição sem fins lucrativos e sai concorrendo a chamamentos públicos. Começou a aparecer aqui em São Paulo organizações até então desconhecidas, como Iabas. No estado têm Sócrates Guanazes (BA), entre outras, além das OSs tradicionais, como SPDM, Santa Marcelina, Sírio Libanês, Albert Einstein. Organização Social está aí há muito tempo, não foi criação do Dória nem do Bruno Covas. Elas podem ser usadas para administrar serviços de Saúde ou para destruir serviços de saúde. 

Em Serviços de Saúde, onde tem servidores públicos, o governo aposenta o quadro funcional e acomoda o terceirizado qualquer lugar. Isso leva a um processo de precarização não só do trabalho, mas do serviço em si. Em São Paulo ainda não há terceirização de forma agressiva como a legislação permite. Nas unidades de OSs da capital você não acha o médico de família terceirizado: isso não existe ainda. Mas o processo de chamamento público coloca que as leis trabalhistas devem ser respeitadas. 

Ué, ainda existe isto?

As [novas] leis trabalhistas são imorais, legalizam o que antes era ilegal, como a terceirização, o trabalho intermitente, enfim toda essa forma de precarização do trabalho agora é algo legal. Pode ser que no futuro isso aconteça. E a organização social vai ser uma ferramenta para abrir espaço. O que antes era ocupado por servidor público, vai para terceirizados. 

A Unidade Básica de Saúde, UBS, Alto de Pinheiros acaba de ser assumida por uma OS. O que se pode esperar do atendimento? 

Do segundo semestre de 2019 para cá Bruno Covas está acabando com o atendimento primário com administração própria da prefeitura. Isto vem gerando muito estresse e há incerteza do que será feito com eles [funcionários]. Em minha avaliação, a qualidade do serviço vai piorar. Parte-se de um patamar que já vem passando por um processo de desgaste crônico. 

Eles não renovam o quadro profissional, fica um quadro enxuto. Normalmente, a prefeitura abre mão de pessoas que já estão há muito tempo na carreira, não renova os quadros com seu novo modelo para dar espaço à OS. Assim, o gestor público fica distante do profissional. Antes o servidor era da Prefeitura, da burocracia municipal. Com a terceirização, você coloca intermediários. O município não consegue controlar a qualidade do serviço, ele é contratado de uma entidade de direito privado. O risco é enorme destas unidades piorarem o serviço prestado.

Como está a distribuição de medicamentos?

Os medicamentos considerados básicos são de responsabilidade municipal. Os de alto custo ficam por conta do estado. O Município distribui remédio para pressão, diabetes, psiquiátrico (que não seja muito caro). E o governo Federal compra e distribui medicamento para combater a Aids, os antirretrovirais. 

Acho que a dificuldade que os municípios enfrentam — além do problema organizacional muito grande — é reflexo desse processo de enxugamento da máquina pública: o próprio sucateamento a que o governo se impõe. Não tem como você querer que o processo dê certo se ele está enxugando profissional cada vez mais. 

Mas o principal motivo é que não se tem dinheiro destinado a tais programas. Não se compra porque não se tem dinheiro. Isto se reflete também na precarização dos hospitais municipais. 

Dia desses fizemos um ato em frente à maternidade na Zona Oeste, na Maternidade Mário Degni, região do Butantã. O hospital está sempre lotado por falta de pessoal. Não contratam ninguém. O plantão que era para ter quatro obstetras, tem dois; dois dermatologistas, têm um. É arriscado, pessoas podem morrer. Se aparecer, por exemplo, dois partos emergenciais, não dá para fazer. Porque para fazer uma cesariana é preciso de dois obstetras. 

Pelo andar da carruagem municipal para onde vamos?

Se a política continuar como ela está, certamente vamos ter um colapso no sistema de saúde. Isto não é apenas no plano municipal. Vale para os governos estaduais e Federal também. Enquanto Brasília lava suas mãos com relação à Saúde, trabalha com teto de gastos, o governo do estado empurra com a barriga. 

O governo municipal acaba arcando com a maior responsabilidade sobre a gestão do sistema por estar mais próximo do cidadão. Só que estamos diante de uma Prefeitura que tem seus problemas fiscais e não acredita que a Saúde seja importante. Então vemos a saúde definhar. É um governo que já falou que não vai renovar o quadro funcional, está terceirizando tudo o que pode. Se continuar nesta pegada, sim, o SUS vai entrar em colapso numa futura gestão Bruno Covas. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Amaro Augusto Dornelles

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