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Segundo turno no Peru: Castillo representa ressurreição da utopia andina; Keiko é a releitura do autoritarismo de Fujimori

A emergência de um novo movimento nacional, popular, periférico, camponês, mestiço e subalterno expressa, com Castillo, uma rebeldia revitalizada. Peru Livre rompeu todos os manuais de campanha moderno
Bárbara Ester
Diálogos do Sul Global
Buenos Aires

Tradução:

Pedro Castillo, o professor do partido Peru Livre, não é só a “surpresa das eleições peruanas”, é também um emergente dos setores populares que desde o retorno à democracia, nos anos 2000, tiveram tentativas falidas de ressurreição. Por sua vez, Keiko Fujimori, da Força Popular, representa a última tentativa do fujimorismo de voltar ao poder depois da década de 1990. 

As clivagens de esquerda e direita não são as mais significativas nesta eleição. Castillo não esgota sua representação nos setores de esquerda, sua divisão de águas mais significativa é a expressão popular e regional. 

A tentativa de apresentar as eleições de junho em chave ideológica não corresponde à realidade, e sim às necessidades do fujimorismo de identificar um inimigo que justifique sua controversa presença na arena política — tal como outrora foi o Sendero Luminoso, o antagonista perfeito de Alberto Fujimori. 

Algo similar ocorreu nas eleições de 2016, quando Keiko arrasou com um discurso duro com a delinquência, mas perdeu por pouco para o aglutinamento popular em torno das consignas “Não a Keiko” e “Fujimorismo Nunca Mais”. Desde então, o fujimorismo desempenhou no Congresso o “jogo da galinha”, estratégia em que cada uma das partes atrasa as concessões até o fim. 

O tudo ou nada terminou confrontando a toda velocidade o Congresso e o Executivo. Os presidentes, o Congresso e ela mesma explodiram, os que não foram afastados do cargo foram processados ou, no pior dos casos, suicidaram-se, como Alan García e o APRA.

A emergência de um novo movimento nacional, popular, periférico, camponês, mestiço e subalterno expressa, com Castillo, uma rebeldia revitalizada. Peru Livre rompeu todos os manuais de campanha moderno

Reprodução/ Twitter
Campanha de Castillo em Carabayllo

A longa crise de representação que o Peru enfrenta aguçou-se com a pandemia e não conseguiu voltar a acalmar-se depois do despertar das mobilizações de 2020. A indignação cidadã era contra a corrupção, contra a classe política e essa ira condensou-se diante de um Congresso, que era visto como o  inimigo principal. 

Castillo é um autêntico representante da valentia desses protestos, saindo do anonimato enquanto dirigente das greves dos professores. A radicalidade de sua proposta não é só seu projeto político inclusivo, mas a forma como construiu sua candidatura, fora de toda a máquina eleitoral ligada aos discursos em público, às bases e à mobilização cidadã. Um dia pegou um cavalo e começou a andar, percorreu regiões, desembarcando também em Lima para encarnar sua gente, a mesma que a grande cidade invisibiliza atrás de seus muros. 

Nas eleições deste ano, as expressões do fujimorismo dividiram-se em três, o que permitiu a Keiko mostrar um perfil mais moderado e afastar-se de seu agir assassino das instituições democráticas. Deste modo, Hernando De Soto e Rafael López Aliaga constituíram a corrente economicista e de ultra direita, respectivamente, permitindo a Keiko situar-se no centro, com um perfil mais moderado. 

Com sua consagração às vésperas do segundo turno, a candidatura de Pedro Castillo obteve uma unidade inusitada, a tal ponto que o próprio Mario Vargas Llosa — até 2021 acérrimo antifujimorista — avalizou a candidatura de Keiko, sendo acompanhado pela maioria do espectro político; uns poucos preferiram não se posicionar. 

Antes de Castillo houve outras tentativas, com Alejandro Toledo “Choledo”, em 2001 e Ollanta Humala, em 2011. Também as candidaturas de Gregorio Santos — de Cajamarca — e Antauro Humala. Todos tiveram em comum o fato de ter tentado representar regionalmente uma aliança dos setores periféricos e tentar construir um modelo de desenvolvimento alternativo. 

O único apoio partidário que Castillo conseguiu foi o dos partidos de esquerda: Juntos pelo Peru, de Verónika Mendoza, e a Frente Ampla, de Marco Arana, que não conseguiram representar os setores populares marginalizados que consagraram Castillo como o candidato mais votado em abril e aceitaram acompanhar o ungido pelo povo. 

Talvez o primeiro a notar a efervescência popular e a potência transformadora da candidatura de Peru Livre tenha sido Evo Morales, não na qualidade de ex-presidente boliviano e sim em função de ter sido nomeado Apu Mallku — cargo simbólico de rei, supervisor dos conselhos de anciãos — por vários povos indígenas dos Andes. 

Castillo é a esperança de ressurreição da utopia andina ou Inkarri, a união das partes desmembradas de Tupac Amaru I e o sinal de um novo tempo em que, sem financiamento, sem maioria parlamentar e a força de pura épica, Davi consiga, por fim, vencer Golias. Para isso, deverá vencer aqueles que por 30 anos foram alguns dos principais cúmplices do fujimorismo: os meios de comunicação. 

Esses meios não só foram chave para garantir o consenso mediante operações psicossociais que conseguiam apresentar estudantes universitários como guerrilheiros nos massacres de Cantuta e Barrios Altos, ou apresentar com o eufemismo de “programas de planejamento familiar” as esterilizações forçadas de mais de 300 mil mulheres e homens, camponeses e indígenas. 

Ainda hoje bombardeiam sistematicamente com informação, opinião e infoentretenimento para erodir a candidatura da mudança. A última pesquisa do Instituto de Estudos Peruano lança luz sobre o assunto: 59% dos entrevistados consideram que os meios de comunicação favorecem a candidatura da filha do ex-ditador, que por um lado busca vitimizar-se em sua condição de mulher e, por outro, promete eliminar a educação sexual nas escolas, desqualificando-a como “ideologia de gênero”. 

Apesar das constantes e múltiplas investidas contra Castillo, até o momento nenhuma pesquisa conseguiu arrebatar “do profe” o primeiro lugar no segundo turno próximo.

A emergência deste novo movimento nacional, popular, periférico, camponês, mestiço e subalterno expressa uma rebeldia revitalizada. Peru Livre rompeu todos os manuais de campanha modernos: não teve uma forte presença em redes sociais e negou-se a participar de debates realizados nos grandes estúdios de TV limenhos, para devolvê-los às praças públicas. 

No próximo dia 6 de junho, no Peru, vão se enfrentar duas coalizões: os de cima e os de baixo. No momento, as dúvidas sobre o recém-chegado não conseguiram superar as certezas sobre o caráter autoritário do fujimorismo e o medo não conseguiu dobrar a rebeldia da utopia. Talvez ainda haja lugar para grandes façanhas.

* Bárbara Ester é socióloga e mestanda em Governo na Universidade de Buenos Aires (UBA)

* *Tradução de Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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