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Foto: Anura Kumara Dissanayake / X

Sri Lanka: os desafios do presidente marxista Anura Kumara Dissanayake

Vitória de Anura Kumara Dissanayaka, em meio ao auge da extrema-direita no mundo, obriga a analisar o que está acontecendo no Sri Lanka, um país açoitado pelo FMI
Gerardo Szalkowicz
El Salto
La Plata

Tradução:

Ana Corbisier

A iconografia dos festejos depois das eleições no Sri Lanka parecia tirada de outra época. Um mar de bandeiras vermelhas entremeadas com cartazes gigantes com os rostos de Marx e Lênin decoravam a celebração do triunfo de Anura Kumara Dissanayake, líder de esquerda coroado novo presidente desta ilha do sul asiático que despertou a curiosidade internacional em um mundo atravessado pelo auge da extrema-direita.

A última vez que as notícias deste país insular apareceram na imprensa global foi em julho de 2022 para mostrar uma peculiar explosão social, que incluiu a ocupação massiva do palácio presidencial e as imagens de milhares de manifestantes banhando-se na piscina, tocando piano ou fazendo selfies na cadeira do mandatário enquanto este fugia para Singapura.

Dois anos depois da revolta que depôs o Governo, o tsunami político de 22 de setembro deu a vitória a Dissanayaka, da Frente de Libertação do Povo (JVP), com 42,3% dos votos

Seguiu-se um governo interino que buscou reverter o colapso econômico acertando um empréstimo com o FMI e seu receituário de ajuste, que logicamente também fracassou. Agora, dois anos depois daquela revolta, o mal-estar é capitalizado por uma coalizão conduzida por um partido que se reivindica marxista.

O tsunami político de 22 de setembro deu a vitória a Dissanayaka, da Frente de Libertação do Povo (JVP), com 42,3% dos votos. A eleição significou um duro golpe para a elite tradicional e a implosão das duas forças que se alternaram no poder nas últimas décadas: o SLFP do presidente que sai, Ranil Wickremesinghe (teve 17,2%) e o UNP do clã Rajapaksa, que apresentou o sobrinho do mandatário deposto em 2022 e apenas conseguiu 2,5%.

“A lágrima da Índia”

Conhecida como “a lágrima da Índia” por sua forma e localização geográfica, quase pendurada no mapa do subcontinente indiano, a ilha de Ceilão tornou-se independente da Grã-Bretanha em 1948, e em 1972 mudou seu nome para Sri Lanka e se tornou república. Pequena, mas densamente povoada, com pouco mais de 22 milhões de habitantes, destaca-se por suas belas praias tropicais e por ser uma passagem comercial chave nas rotas marítimas do Oceano Índico.

Além das turbulências econômicas, o Sri Lanka enfrenta fortes tensões étnicas que desencadearam uma guerra civil em 1983, e posteriores disputas esporádicas, entre uma maioria cingalesa (principalmente budista) e as minorias tamil e muçulmana.

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Consciente do desafio, Dissanayake comprometeu-se a empoderar as marginalizadas populações tamiles: “Não pode haver progresso real se continuarmos ignorando uma parte do país. Devemos nos unir”.

A hora da esquerda

Dissanayake — conhecido como AKD pela sigla de seu nome completo — nasceu há 55 anos em uma família de pequenos agricultores rurais. Nos anos 80 se filiou ao JVP e participou ativamente em sua ala estudantil em uma universidade pública, onde se licenciou em Ciências Físicas. Desde o ano 2000 é deputado e em 2014 tornou-se o máximo dirigente deste pequeno partido que se reivindica marxista-leninista, tendo participado de insurreições armadas nas décadas de 1970 e 1980, proibido e reintegrado à política institucional em 1994.

Vijay Prashad, historiador e jornalista indiano, conta ao portal El Salto que “ao longo de duas décadas, o JVP tentou influir no curso da política burguesa, estabelecendo alianças com forças de centro-esquerda e tentando impulsionar políticas que ajudassem o povo. Graças a isso, Dissanayake foi um ano ministro em 2004, quando impressionou as pessoas por sua honradez e inteligência”.

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Nessa busca de alianças e ampliação de base eleitoral, o JVP formou em 2019 a coalizão Poder Popular Nacional (PPN) junto a expressões mais moderadas, mas naquelas eleições presidenciais AKD só obteve 3% dos votos. Por isso o caráter de proeza de sua irrupção atual, ao conectar as frustrações populares com um forte discurso anticorrupção.

O presidente deixou claro que seu principal desafio é romper o ciclo de ajuste e endividamento externo: “Não vamos continuar sendo escravos do FMI, o povo já não aguenta mais miséria”

Também seduziu o eleitorado prometendo uma bateria de programas sociais, aumentar o salário mínimo, fortalecer os direitos trabalhistas e sindicais, reduzir impostos dos serviços básicos e aumentar a carga tributária dos mais ricos em um país onde 1% possui 31% da riqueza.

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Mas sobretudo deixou claro que seu principal desafio é romper o ciclo de ajuste e endividamento externo: “Não vamos continuar sendo escravos do FMI, o povo já não aguenta mais miséria”, assegurou em seu discurso de posse, e uns dias depois recebeu uma missão do Fundo para renegociar o empréstimo de quase 3.000 milhões de dólares. Depois anunciou a reestruturação da dívida com os possuidores de bônus soberanos e a suavização das condições impostas pelo organismo de crédito.

Como costuma suceder, o auxílio financeiro do FMI e suas “políticas de austeridade” mais do que uma solução têm sido parte do descalabro. Em 2022, golpeado também pelas sequelas da pandemia, Sri Lanka declarou o default de sua dívida externa, que tinha quintuplicado em 15 anos, chegando a 56.000 milhões de dólares. O governo impôs ajustes em saúde e educação, aumento de impostos e cortes vários, que pioraram as condições de vida das grandes maiorias, enquanto a falta de reservas para importar provocaram escassez de alimentos, medicamentos e combustíveis.

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O país se tornou inviável e o mal-estar social transformou-se na rebelião que expulsou do poder a família Rajapaksa. O Parlamento, também desacreditado, impôs o então primeiro-ministro Wickremesinghe para completar o mandato, no que terminou sendo uma gestão marcada pelo acordo com o FMI e mais ajustes.

Expectativas e possibilidades

O novo Governo surge então das ruinas desta hecatombe, com uma pobreza de 25% e um terço da população com insegurança alimentar, segundo o Programa Mundial de Alimentos. Com apenas três representantes parlamentares de seu partido, o novo presidente dissolveu o Congresso e adiantou as eleições legislativas para 14 de novembro.

Vijay Prashad resume os dilemas que enfrenta: “O primeiro desafio será ampliar o bloco parlamentar para poder implementar sua agenda. Em segundo lugar, surge a pergunta sobre o que fará com os pagamentos da dívida externa, tendo em conta que a quarta parte dos ingressos de Sri Lanka se destina aos possuidores de bônus. Deixará de pagar? Pedirá mais empréstimos? E, em terceiro lugar, qual será sua agenda de desenvolvimento? Cobrirá as necessidades imediatas da população ou apostará nos investimentos, pensando no médio e longo prazo? A primeira opção poderia ter vantagens imediatas, mas a segunda poderia manter a esquerda no poder durante uma geração”.

“A esquerda da região está muito enfraquecida, no entanto a vitória do PNP é uma injeção de ânimo e, se conseguir mudar a dinâmica dominada pelo FMI, terá boa repercussão: poderia ter resultados imediatos na região”

Outra incógnita é como jogará AKD na disputa geopolítica global. Na semana passada recebeu o chanceler da Índia, com quem acertou aprofundar a cooperação bilateral. Também será chave conseguir o apoio da China.

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Prashad explica que “a esquerda da região está muito enfraquecida, no entanto, a vitória do PNP é uma injeção de ânimo e, se conseguir mudar a dinâmica dominada pelo FMI, terá boa repercussão: uma política alternativa real poderia ter resultados imediatos na região”.

A grande pergunta é se será um Governo que aplique algumas reformas moderadas ou se fará honra a seu horizonte ideológico e se animar a avançar em transformações de fundo. Como vai manobrar entre as expectativas de mudança e os condicionamentos do FMI?

A rebeldia tornou-se de direita? Intitula-se um livro já clássico de época do jornalista Pablo Stefanoni que analisa o auge da ultradireita global. Mas a realidade parece diversa, e a experiência de Sri Lanka — como antes França ou Colômbia — demonstra que a rebeldia provocada pelas políticas de ajuste e precarização também pode voltar a ser conduzida pela esquerda.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Gerardo Szalkowicz

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