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Steven Spielberg e a pergunta: Afinal, Abraham Lincoln teria sido escravocrata ou libertador?

Num filme que se propõe biográfico, entretanto, devemos estar atento ao que ele contenha de realidade dentro da ficção, pois o verdadeiro Lincoln não está ali
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

“Lincoln”, o filme americano de trama que se propõe histórico-bibliográfico dirigido por Steven Spielberg foi baseado no livro “Team of Rivals: The Political Genius” de Doris Goodwin. Ele abrange exclusivamente os quatro últimos meses de vida de Abraham Lincoln. Aclamado pela crítica foi indicado para sete Globos de Ouro. Finalmente, e o que mais interessa para a “indústria da cultura” de Hollywood, o filme foi um enorme sucesso comercial, tendo arrecadado mais de 300 milhões dólares em bilheteria.

Num filme que se propõe biográfico, entretanto, devemos estar atento ao que ele contenha de realidade dentro da ficção, pois o verdadeiro Lincoln não está ali. 

Ele poderá ser encontrado dentro de seus próprios escritos e nas memórias de W. Herndon, seu antigo sócio no escritório de advocacia, onde Lincoln representava os interesses das grandes ferrovias e dos civis que poderiam pagar pelos seus serviços. Conforme ele, “Lincoln tinha um motorzinho incansável: a ambição”. “É verdade que nenhum grande homem é modesto, mas ele possuía entranhada uma forte arrogância intelectual e presunção inconsciente de sua superioridade”.

Num filme que se propõe biográfico, entretanto, devemos estar atento ao que ele contenha de realidade dentro da ficção, pois o verdadeiro Lincoln não está ali

Wikipédia
O ex-presidente americano Abraham Lincoln

Abraham Lincoln lia pouco, mas de forma objetiva. “A política era seu Paraíso, a metafísica, seu Inferno”. Ele leu e releu mais de uma vez Shakespeare e estudou todos os comentários legais de Blackstone sobre as peças do teatrólogo inglês.  Por outro lado, ele não suportava romances, nem mesmo biografias.

Vemos no filme um Lincoln crente em Deus, quando na verdade, o futuro Presidente dos Estados Unidos da América não somente rejeitou o cristianismo como escreveu um opúsculo intitulado “Infidelidade”, onde tentava mostrar que a Bíblia era falsa e Jesus era filho de um homem como outro qualquer. Seu amigo e chefe na advocacia, Hill, conseguiu tomar-lhe o manuscrito e o destruiu, de acordo com Gore Vidal. Mais tarde, durante o mandato Presidencial, Lincoln foi pressionado a incluir Deus em seus discursos. “No fundo, Lincoln era um fatalista, um materialista da escola de Demócrito e Lucrécio”.

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Segundo Herndon, por volta de 1835, ainda solteiro, Lincoln contraiu sífilis. Seu amigo suspeitava que ele houvesse contaminado sua esposa Mary Todd com a doença. E isso poderia explicar a morte prematura dos três filhos do casal. Enquanto Lincoln ainda vivia, Mary Todd apresentou sinais de loucura e, após sua morte, a autópsia revelou uma deterioração no tecido cerebral, compatível com paresia. Se Lincoln possuía a consciência de que, inadvertidamente, passara sífilis para a mulher e que contaminara seus três filhos, seus ataques de melancolia profundos tornam-se compreensíveis e insuportavelmente trágicos. 

A guerra Mexicano-Americana foi o primeiro grande conflito impulsionado pela ideia de “Destino Manifesto”, a crença de que os Estados Unidos tinham um direito dado por Deus: o destino de expandir as fronteiras do país de “costa a costa”. Como resultado, os Estados Unidos ampliaram o seu território em cerca de um quarto, enquanto México perdeu aproximadamente metade do seu. Lincoln como membro do Congresso em 1846, opusera-se a guerra com o México, um posicionamento minoritário. 

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Fez da tribuna um lindo discurso que o atormentaria treze anos mais tarde: “Qualquer povo, em qualquer lugar, que tenha vontade e poder, tem o direito de se sublevar e de derrubar o governo vigente e de formar um novo governo de acordo com seus desejos”. “Qualquer porção desse povo que tenha condições pode fazer sua revolução no território que habita e apropriar-se dele.”

Quando o Sul resolveu seguir o conselho do Congressista Lincoln, o Presidente disse que não poderia,  que seu pensamento havia evoluído, que esquecessem o que o Congressista Lincoln havia pronunciado. 

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Ao contrário do que pensa a maior parte das pessoas e o filme leva isso até as últimas consequências, na história real, a questão central da Guerra Civil americana jamais foi a abolição da escravatura. O fulcro da questão era a Secessão ou a preservação, ou não da União, que, sem dúvida favorecia, no pacto federativo, os Estados do Norte. 

Disse Lincoln: “Se a escravatura não está errada, então nada mais está errado… mas se puder salvar a União sem libertar nenhum escravo, farei isso. Se puder salvar a União libertando alguns e não tocando em outros, farei isso”.

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Na realidade, no terceiro ano de sua administração, Lincoln libertou todos os escravos nos Estados que haviam se rebelado contra a União, mas manteve a escravatura nos Estados fronteiriços que haviam permanecido leais a ela. O mundo não entendeu bem, mas Lincoln sabia o que fazia. Primeiro a União, depois os escravos.

No começo de sua administração, Lincoln adquiriu por preço de banana terras pantanosas na América Central para lá enviar os negros libertos. A uma delegação de negros ele declarou: “Vocês e nós somos de raças diferentes. Separa-nos uma diferença maior que a existente entre quaisquer outras raças… A vossa raça passa por grandes sofrimentos enquanto a nossa raça sofre devido à presença de vocês.”

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Mas os negros não estavam dispostos a deixar um país que eles haviam ajudado a construir e já conheciam as mortes por paludismo, febre amarela e outras doenças que haviam acometido os negros pioneiros nos pântanos da América Central. A tentativa de convencimento de Lincoln falhou e ele já não tinha forças para obrigá-los a partir.

Como “animal político” Lincoln era extraordinário e o filme trata de representá-lo como um comprador de votos, um articulador de conveniências. Ele possuía o senso do quando esperar e de quando e onde agir. Tinha o dom de formular ideias cuja hora chegara, aparentemente, naquele exato momento. Quando a guerra de secessão americana estava chegando ao fim ele disse: “Nenhum lado esperava que essa guerra tivesse a magnitude e a duração que ela atingiu. Nenhum previa que a causa do conflito pudesse cessar ao mesmo tempo, ou antes, que o próprio conflito cessasse. Ambos os lados queriam um triunfo mais fácil e um resultado menos radical e surpreendente… Era impossível que Deus atendesse às preces dos dois lados — e nenhuma delas foi inteiramente atendida”. 

Como ele estivesse prevendo os próximos meses para si mesmo: “Tenho o pressentimento de que não vou sobreviver à rebelião. Quando ela chegar ao fim o meu trabalho estará concluído”. Os Estados Unidos da América permaneceria uno, indivisível. 

O trabalho estava concluído, quando uma bala do revólver de certo Booth terminou com o Presidente Lincoln.

*Carlos Russo Jr é Colaborador da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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