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STJ decide que polícia não pode enquadrar por “atitude suspeita”, prática indutora de racismo

Maioria das abordagens policiais ocorrem nas periferias e, quando são realizadas nas regiões centrais, focam principalmente jovens negros e pobres
Gil Luiz Mendes
Ponte Jornalismo
São Paulo (SP)

Tradução:

A polícia não pode dar baculejo, enquadro ou geral — como são conhecidas popularmente as abordagens ou “buscas pessoais” feitas pelos agentes públicos — apenas baseada nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita” de alguém, conforme decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Em seu voto, o relator do acórdão (decisão tomada por um grupo de magistrados, no caso ministros do STJ), ministro Rogerio Schietti Cruz, afirma que as maiores vítimas das abordagens policiais são pessoas pobres e negras e afirma que isso pode levar a sérias violações de direitos.

Leia a decisão judicial aqui.

Abase legal para os enquadros da polícia está no Código de Processo Penal: o artigo 244 afirma que a busca pessoal pode ser feita sem necessidade de autorização da justiça apenas se o policial tiver “fundada suspeita” de que a pessoa carregue uma arma ou outro objeto ligado a um crime. Segundo o voto do ministro Schietti, a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, a decisão do STJ cria uma “gera uma jurisprudência importante para evitar abusos nas revistas e abordagens policiais, que, em geral, são marcadas por discriminação e racismo”.

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Segundo ele, a maioria das abordagens policiais ocorrem nas periferias e, quando são realizadas nas regiões centrais, também focam principalmente jovens negros e pobres. “Em geral, fazem as abordagens e revistas pessoais sem qualquer suspeita específica ou indício com relação às pessoas abordadas e revistadas. Atuam genericamente, reforçando estereótipos com relação aos possíveis suspeitos de crimes”, afirma.

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Um estudo feito por Jéssica da Mata, advogada da ONG Innocence Project Brasil e pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo), que deu origem ao livro A Política do Enquadro (Revista dos Tribunais), apontou que, na cidade de São Paulo, jovens negros de 15 a 17 anos são sete vezes mais abordados pela polícia em relação ao restante da população.

Na cidade do Rio de Janeiro, 63% dos negros contam que já foram enquadradas pela polícia em algum momento de suas vidas, embora correspondam a 48% da população, conforme a pesquisa Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Os dois estudos são mencionados na decisão do STJ.

Maioria das abordagens policiais ocorrem nas periferias e, quando são realizadas nas regiões centrais, focam principalmente jovens negros e pobres

Ilustração – Ponte Jornalismo
Na cidade de São Paulo, jovens negros de 15 a 17 anos são sete vezes mais abordados pela polícia em relação ao restante da população




Enquadro e racismo

“Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas — pode fragilizar e tornar írritos [irritados] os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade”, afirmou o ministro Rogerio Schietti Cruz no texto do acórdão.

“A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais – em verdadeiros ‘tribunais de rua’ – cotidianamente constrangem os famigerados ‘elementos suspeitos’ com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela”, descreveu o ministro do STJ.

Comentando uma entrevista da atriz Taís Araújo em que ela falava sobre o medo das abordagens que seu filho pode vir a sofrer por ser um menino negro, o ministro escreveu: “O que se percebe, portanto, é que, a pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais – em verdadeiros ‘tribunais de rua’ – cotidianamente constrangem os famigerados “elementos suspeitos” com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhe graves marcas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela”.

O relator do acórdão também destaca a ineficiência do método de investigação e patrulhamento baseada na abordagem aleatória de pessoas na rua sob a alegação de suspeita de algum tipo de delito. Usando como referência dados das secretarias de segurança, o ministro mostra que os enquadros só servem para constranger pessoas pobres. 

“Mesmo que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, as estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade”.


Emicida, O Rappa e Silvio de Almeida

Em outro momento do seu voto, o relator torna a citar aspectos culturais que descrevem, segundo o ministro, a questão do racismo que há nas ações policiais, mencionando referências da cultura negra.

“Na simbiose entre realidade e ficção, ou, como teria dito Oscar Wilde (a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida), o rapper Emicida, sensibilizado pela trágica morte do músico Evaldo Rosa dos Santos (“80 tiros te lembram que existe pele alva e pele-alvo”) é acompanhado, em exortação e revolta contra a triste realidade da população negra, pela arte de Marcelo Yuka, compositor e ex-integrante do grupo O Rappa”, e em seguida usa uma parte da letra da canção Todo Camburão Tem um pouco de Navio Negreiro:

“Tudo começou quando a gente conversava naquela esquina. Veio os zomens e nos pararam. Documento por favor, favor, favor. Mas eles não paravam. Qual é negão? Qual é negão? O que que tá pegando?”.

No embasamento do seu voto e voltando as colocar o racismo estrutural como a causa das violações de direitos cometidas em baculejos, Cruz usa um trecho do livro O que é Racismo Estrutural, do professor e filósofo Silvio de Almeida. “Não há como falar sobre o tema da abordagem policial, no Brasil, sem tratar tanto das origens das instituições policiais no país quanto de racismo, definido por Silvio de Almeida, em sua acepção estrutural, como ‘[…] uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional’”.

Gil Luiz Mendes, Ponte Jornalismo.



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