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Teoria de Freud que antecipou ascensão de Hitler se liga perigosamente com Brasil de 2022

Construção psicológica que filósofo faz da imagem do líder possui notável coincidência com fascismo, ao menos em relação à constituição pública
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Theodor Adorno demonstrou como a teoria de Sigmund Freud sobre a psicologia das massas, desenvolvida em 1921, antecipou de maneira impressionante as dinâmicas envolvidas na ascensão de Hitler, assim como a compreensão do fenômeno dos agitadores fascistas do pós-Segunda Guerra Mundial.

Passadas mais de seis décadas desde sua publicação, o ensaio de Adorno se mostra de relevância assombrosa para a compreensão dos eleitores e seguidores bolsonaristas do Brasil de 2022.

Adorno principia nos falando sobre a natureza e o conteúdo dos discursos e panfletos de agitadores fascistas:


1.      O material de propaganda fascista preocupa-se pouco com questões políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora das declarações dos agitadores são baseadas mais em cálculos psicológicos que na intenção de conseguir seguidores por meio da expressão racional de objetivos racionais.

O termo “incitador da turba” é em boa medida adequado, já que expressa a atmosfera de agressividade emocional irracional, propositadamente promovida por nossos pretensos hitleristas. Se é desrespeitoso chamar as pessoas de “turba”, é precisamente o objetivo do agitador transformar essas mesmas pessoas em uma “turba”, isto é, uma multidão inclinada à ação violenta sem nenhum objetivo político sensato, e criar a atmosfera do pogrom. 

2.      O método dos agitadores é verdadeiramente sistemático e segue um padrão rigidamente estabelecido de “dispositivos” definidos. Isso não se liga apenas à unidade fundamental do propósito político – a abolição da democracia mediante o apoio de massa contra o princípio democrático –, mas mais ainda à natureza intrínseca do conteúdo e da apresentação da própria propaganda. Os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são intermináveis repetições. De fato, a reiteração constante e a escassez de ideias são ingredientes indispensáveis da técnica toda.

“Como seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.”

*

Na medida em que a rigidez mecânica do padrão é óbvia e ela mesma expressão de certos aspectos psicológicos da mentalidade fascista, não se pode evitar o sentimento de que o material de propaganda de tipo fascista forma uma unidade estrutural com uma concepção comum total, consciente ou inconsciente, que determina cada palavra que é dita. Essa unidade estrutural parece se referir à concepção política implícita tanto quanto à essência psicológica. 

Adorno se propõe a centralizar a atenção no sistema psicológico em si – e pode não ser inteiramente acidental que o termo invoque a associação da paranoia –, o qual compreende e gera esses elementos.

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Tal quadro de referência foi fornecido por Freud em seu livro “Psicologia das massas e análise do eu”, publicado em 1922, muito antes que o perigo do fascismo alemão parecesse ser agudo.

Freud claramente previu a origem e a natureza dos movimentos fascistas de massa em categorias puramente psicológicas. Se é verdade que o inconsciente do analista percebe o inconsciente do paciente, pode-se também presumir que suas intuições teóricas são capazes de antecipar tendências ainda latentes em um nível racional, mas se manifestando em um nível mais profundo.

Não foi por acaso que, após a Primeira Guerra Mundial, Freud voltou sua atenção para o narcisismo e os problemas do eu em sentido específico.

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A questão da psicologia de massa está relacionada ao novo tipo de aflição psicológica tão característico da época que, por razões socioeconômicas, testemunha o declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza. Embora Freud não se tenha preocupado com as mudanças sociais, pode-se dizer que ele revelou nos confins monológicos do indivíduo os traços de sua crise profunda e a vontade de se submeter inquestionavelmente a poderosas instâncias (agencies) coletivas externas. Freud apontou tendências históricas por meio do desenvolvimento de seu próprio trabalho, da escolha de seus temas e da evolução dos conceitos-guia.

“Isso é precisamente o que Freud quer fazer. Ele busca descobrir quais forças psicológicas resultam na transformação de indivíduos em massa. ”

O método do livro de Freud consiste numa interpretação dinâmica da descrição da mente de massa. Em primeiro lugar, entre esses conceitos está o de Sugestão, que, aliás, explica o encanto exercido por Hitler e assemelhados sobre as massas. 

Freud em vez de inferir das descobertas descritivas habituais que as massas são inferiores per se e assim tendem a permanecer, ele se pergunta, no espírito do verdadeiro Iluminismo: o que transforma as massas em massas?

*

Freud rejeita a hipótese fácil de um instinto social ou de rebanho, que para ele denota o problema e não sua solução. 

Além das razões puramente psicológicas que dá para essa rejeição, poder-se-ia dizer que Freud está em terreno seguro também do ponto de vista sociológico. A comparação direta de formações de massas modernas com fenômenos biológicos dificilmente pode ser considerada válida, uma vez que os membros das massas contemporâneas são indivíduos, filhos de uma sociedade competitiva e individualista, condicionados a se manter como unidades independentes e autossustentáveis; eles são continuamente advertidos de que devem ser “duros” e prevenidos contra a rendição. Mesmo que se assumisse que instintos arcaicos sobrevivam, não se poderia simplesmente apontar para essa herança. Afinal, por que homens modernos revertem a padrões de comportamento que contradizem flagrantemente seu próprio nível racional e a presente fase da civilização tecnológica esclarecida?

Isso é precisamente o que Freud quer fazer. Ele busca descobrir quais forças psicológicas resultam na transformação de indivíduos em massa.

“Se os indivíduos no grupo estão combinados em uma unidade, deve haver, seguramente, algo para uni-los, e esse vínculo poderia ser precisamente o que é característico de um grupo. ”

Essa indagação, porém, equivale a uma exposição do ponto fundamental da manipulação fascista. Pois o demagogo fascista, que tem de obter o apoio de milhões de pessoas para objetivos altamente incompatíveis com seu próprio auto interesse racional, só pode fazê-lo criando artificialmente o vínculo que Freud está buscando. Se o método dos demagogos é realista – e seu sucesso popular não deixa dúvidas de que o seja –, poder-se-ia lançar como hipótese que o vínculo em questão é exatamente o mesmo que o demagogo tenta produzir sinteticamente; na realidade, que ele é o princípio unificador por trás de seus vários dispositivos.

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Freud crê que o vínculo que integra os indivíduos em uma massa é de uma natureza libidinal. Hitler, aliás, estava bastante atento à fonte libidinal da formação da massa por rendição, quando atribuiu características especificamente femininas e passivas aos participantes de seus comícios, e apontou assim também para o papel da homossexualidade inconsciente na psicologia de massa. O que é peculiar às massas é, de acordo com Freud, não tanto uma qualidade nova quanto a manifestação de qualidades antigas normalmente escondidas.

Construção psicológica que filósofo faz da imagem do líder possui notável coincidência com fascismo, ao menos em relação à constituição pública

Petri Damstén – Flickr

A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor de se submeter à autoridade e de ser ele próprio a autoridade

“Do nosso ponto de vista, não precisamos atribuir tanta importância ao aparecimento de novas características. Seria suficiente dizer que em um grupo, o indivíduo é posto sob condições que lhe permitem se livrar das repressões de seus instintos inconscientes.”

Isso faz justiça ao simples fato de que aqueles que acabam por submergir nas massas não são homens primitivos, mas exibem atitudes primitivas contraditórias com seu comportamento racional normal. Ainda assim, mesmo as mais triviais descrições, não deixam dúvidas sobre a afinidade de certas peculiaridades das massas com traços arcaicos. 

Menção particular deveria ser feita aqui ao potencial atalho de emoções violentas enfatizado por todos os autores de psicologia de massa, um fenômeno que, nos escritos de Freud sobre culturas primitivas, leva à suposição de que o assassinato do pai da horda primitiva não é imaginário, mas corresponde à realidade pré-histórica. Em termos de teoria dinâmica também pode ajudar a explicar algumas das manifestações da mentalidade fascista que dificilmente poderiam ser compreendidas sem a suposição de um antagonismo entre diversas forças psicológicas. 

Deve-se pensar aqui acima de tudo na categoria psicológica da destrutibilidade, que Freud discutiu em seu “O mal-estar na civilização”.

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Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização. É pouco adequado definir as forças da rebelião fascista simplesmente como poderosas energias do isso que se livram da pressão da ordem social existente. Em vez disso, essa rebelião empresta suas energias em parte de outras instâncias psicológicas que são forçadas a servir ao inconsciente.

“Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização. ”

Freud enfatiza o fato de que, em grupos organizados como o Exército ou a Igreja, ou não há menção alguma a amor entre seus membros, ou ele é expresso apenas de maneira sublimada e indireta, por meio da mediação de alguma imagem religiosa, pelo amor da qual os membros se unem e cujo amor abrangente eles devem imitar em sua atitude mútua. 

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Parece significativo que na sociedade atual, com suas massas fascistas artificialmente integradas, a referência ao amor esteja quase completamente excluída. 

Hitler afastou-se do papel tradicional do pai amoroso e substituiu-o inteiramente pelo papel negativo da autoridade ameaçadora. O conceito de amor foi relegado à noção abstrata de Alemanha e raramente mencionado sem o epíteto de “fanático”, pelo qual mesmo esse amor obtinha um tom de hostilidade e agressividade contra aqueles que ele não englobava. Um dos princípios básicos da liderança fascista é manter a energia libidinal primária em um nível inconsciente, de modo a desviar suas manifestações de uma forma adequada a fins políticos. Quanto mais a manipulação da massa se torna o único fim, mais completamente o amor desinibido tem de ser reprimido e moldado em obediência. Muito pouco há, no conteúdo da ideologia fascista, que pudesse ser amado.

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O padrão libidinal do fascismo e toda a técnica dos demagogos fascistas são autoritários. O pai primitivo é o ideal do grupo, e governa o eu no lugar do ideal do eu. A hipnose pode, com justiça, ser descrita como um grupo de duas pessoas; a esse respeito permanece como uma definição para sugestão – uma convicção que não é baseada em percepções e raciocínios, mas em um vínculo erótico.

Isso na verdade define a natureza e o conteúdo da propaganda fascista. Ela é psicológica por causa de seus fins autoritários e irracionais, que não podem ser alcançados por meio de convicções racionais, mas apenas pelo hábil despertar de “uma porção herança arcaica” do sujeito. A agitação fascista está centrada na ideia do líder, não importando se ele lidera de fato ou se é apenas o mandatário de interesses do grupo, porque apenas a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo. 

Essa é a raiz da – de outro modo enigmática – personalização da propaganda fascista, seu incessante propagandear de nomes e supostos grandes homens, em lugar da discussão de causas objetivas. 

 “A agitação fascista está centrada na ideia do líder, não importando se ele lidera de fato ou se é apenas o mandatário de interesses do grupo, porque apenas a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo. ”

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A construção psicológica que Freud faz da imagem do líder é corroborada por sua notável coincidência com o tipo fascista de líder, pelo menos no que se refere à sua constituição pública. A fim de permitir a identificação narcisista, o líder tem de aparecer como absolutamente narcisista, e é desse insight que Freud deriva o retrato do “pai primitivo da horda”, que poderia igualmente ser Hitler, Mussolini ou um Bolsonaro.

“Mostrando-se como um super-homem, o líder deve ao mesmo tempo realizar o milagre de aparecer como uma pessoa comum, da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio.”

Mesmo os impressionantes sintomas de inferioridade do líder fascista, sua semelhança com atores canastrões e psicopatas insociais são assim antecipados pela teoria de Freud. 

Por causa daquelas partes da libido narcisista do seguidor que não foram investidas na imagem do líder, mas permanecem ligadas ao próprio eu do seguidor, o super-homem deve ainda se assemelhar ao seguidor e aparecer como sua “ampliação”. 

A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor de se submeter à autoridade e de ser ele próprio a autoridade. Isso corresponde a um mundo no qual o controle irracional é exercido, apesar de ter perdido sua convicção interna em função do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.

“As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos. Elas se reconciliam com essa contradição por meio da presunção de que elas próprias são o opressor cruel.”


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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