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Transfobia de JK Rowling remete a ideais nazistas | Entrevista com Carol Fitzpatrick

Segundo jornalista especializada em cultura pop, autora não se importa em receber apoio de grupos neonazis: “desde que ajude a desumanizar pessoas trans”
George Ricardo Guariento
Diálogos do Sul Global
Taboão da Serra

Tradução:

Neste texto você encontra:

No dia 13 de março, a autora da franquia de livros Harry Potter,
J.K. Rowling, iniciou uma polêmica em suas redes sociais ao implicitamente negar que a Alemanha nazista perseguiu pessoas transgênero.

Entre as violências do regime, estão o infame saque e incêndio do Instituto Magnus Hirschfeld de Sexologia, em Tiergarten, Berlim, em maio de 1935, quando foram destruídas décadas de pesquisa sobre os cuidados à saúde de transgêneros.

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A discussão no X começou após um perfil publicar um tuíte questionando o crescente alinhamento de indivíduos como Rowling a neonazistas. Ao invés de defender sua posição, a escritora tentou desviar o foco, sugerindo que a existência de vítimas trans no holocausto poderia ter sido “um sonho febril”. Após a avalanche de questionamentos, a britânica começou então a ameaçar processar aqueles que a contestavam.

(Imagem: Captura de tela / X)

O histórico transfóbico de J.K. Rowling

As ações de J.K. Rowling se mostram como mais uma tentativa de suprimir a verdade histórica e promover uma agenda anti-trans, ao invés de buscar um diálogo construtivo e baseado em fatos.

A criadora de uma das maiores franquias da literatura fantástica tem um histórico de comentários transfóbicos, emitidos em diversas ocasiões. Em junho de 2020, ela questionou o uso do termo “pessoas que menstruam”, ignorando a inclusão de homens transgênero e pessoas não binárias neste grupo.

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Em setembro do mesmo ano, lançou o livro “Sangue Revolto”, sob o pseudônimo Robert Galbraith, cujo título remete a um psiquiatra associado a terapias de conversão sexual. A obra ainda apresenta um personagem que reforça estereótipos sobre pessoas trans.

Durante o ano de 2022, Rowling demonstrou apoio a um usuário do X banido por dizer preferir ter aids a apoiar a comunidade trans, e ainda anunciou a criação de uma história fictícia de uma youtuber supostamente vítima de perseguição por ser transfóbica.

Por que J.K Rowling insiste no erro?

A negação de que o regime nazista na Alemanha perseguiu pessoas trans mostra o terraplanismo de J.K. Rowling sobre um aspecto crucial desse período na história. E ela não está sozinha.

Essas declarações, inseridas em uma narrativa contínua de falas criminosas da autora no decorrer dos anos, contribuíram para perpetuar a violência contra uma das minorias que mais morrem no mundo

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As principais vozes anti-trans em todo o mundo ecoam e amplificam os discursos de Rowling, chegando ao ponto de advogarem pela erradicação de pessoas transgêneros e o fim de todos os cuidados relacionados a esse grupo. 

O recente envolvimento de Rowling na negação do Holocausto em relação aos indivíduos trans apenas aviva as chamas que queimaram livros sobre pessoas trans há um século.

Entrevista com Carol Fitzpatrick

“Quando as pessoas mostram que estão do lado dela ou que não se importam com seus ataques, ela continua ganhando força e sensação de impunidade para seguir perseguindo minorias”, afirma Fitzpatrick (Foto: Arquivo pessoal)

Conversamos com a jornalista trans Carol Fitzpatrick, especializada em Cultura Pop. Com mais de 100 mil seguidores nas redes sociais, Fitzpatrick aponta as incoerências de J.K Rowling – que usa o ódio contra mulheres trans como pauta feminista – e usa sua voz para amplificar o debate contra a autora e fãs tóxicos da franquia Harry Potter.

A jornalista destaca que o discurso da autora “se assemelha a ideais nazistas” e observa que grupos neonazistas se sentem à vontade para se associar aos movimentos apoiados pela criadora de Harry Potter. Embora isso não signifique necessariamente que Rowling apoie o movimento neonazista, Fitzpatrick chama atenção para o fato de as declarações agradarem pessoas que se identificam com essas ideologias.

Ao abordar o posicionamento dos fãs de Harry Potter e a influência dos atores da saga críticos à escritora, a jornalista destaca que muitos dessa comunidade não estão cientes das posições de Rowling. Contudo, Fitzpatrick ressalta a importância dos posicionamentos contrários à autora, incluindo a partir dos próprios atores da saga, para diminuir  influência de Rowling sobre como a obra é vista.

Carol acredita que, para vencer o discurso de ódio de Rowling, a informação é crucial. Ela observa que o boicote à obra Harry Potter pode ser eficaz, mas também enfatiza a importância de informar o público sobre as ações da escritora.

A jornalista não se mostra surpresa com a negação do holocausto por parte de Rowling e aponta que desde 2020 houve um aumento da frequência e gravidade dos ataques contra a população trans.

Na conversa, também abordamos o impacto de Harry Potter na comunidade LGBTQIA+. Segundo Fitzpatrick, a saga foi um refúgio para muitos jovens da comunidade, que, no entanto, contam hoje com mais opções de conteúdos inclusivos. Neste sentido, ela explica que a saga perdeu espaço entre os LGBTQIA+ justamente devido às posições de Rowling.

Leia a entrevista na íntegra: 

George Ricardo: Gostaria primeiramente de pedir para você se apresentar ao nosso público.

Carol Fitzpatrick: Eu sou Carol, tenho 28 anos, sou uma pessoa trans apaixonada por música e quadrinhos. Sou jornalista especializada em cultura pop e, embora não seja militante, acho importante utilizar a minha voz e os espaços que ocupo para me posicionar e defender algumas pautas que considero importantes.

Essa última declaração da autora, negando a existência do Holocausto para pessoas trans, tem a ver com essa constante tentativa de apagar a presença de pessoas trans da história, correto? As autoridades estão sendo coniventes com ela?

A gente não pode esquecer que muitas falas e comportamentos da JK já se assemelhavam com alguns ideais neonazistas, tanto que um grupo de neonazis se sentiu confortável para aparecer na passeata de um movimento que ela apoia, o Let Women Speak (Deixe as mulheres falarem, em tradução livre). Isso não é o suficiente para eu afirmar que a própria JK goste ou apoie o movimento neonazista de alguma forma, mas o discurso dela tem agradado pessoas que realmente se consideram neonazis e que estão atacando vários perfis que se posicionaram contra a JK. E, aparentemente, ela não se importa em receber esse tipo de apoio desde que ajude a desumanizar pessoas trans.

Não sou especialista no governo de lá, mas o Reino Unido está claramente em um momento de retrocesso na questão dos direitos de pessoas trans, deixando essa população ainda mais desamparada. Por isso, alguns feitos, mesmo que pequenos, merecem ser reconhecidos e comemorados. Quando a polícia reconheceu as ofensas de JK contra a jornalista trans India Willoughby como um “incidente de ódio”, foi um passo enorme, pois agora ninguém pode negar que ela tenha sido transfóbica. E reconhecer a transfobia é essencial para poder combatê-la. Fico muito feliz pelo feito da Índia e espero que a situação mude por lá.

Sendo uma jornalista e criadora de conteúdo que aborda a cultura pop, além de ser uma mulher trans que tem denunciado as atitudes transfóbicas de J.K. Rowling e de seus seguidores, você acredita que os fãs dos livros e filmes estão alinhados com os pensamentos retrógrados da autora?

Não acredito que todos os fãs estejam alinhados com os pensamentos da autora porque muitos não têm conhecimento da perseguição que ela está promovendo ou nem mesmo a conhecem. 

Por isso, sempre reforço que quem cria conteúdo sobre Harry Potter tem dever de informar ao público sobre os atos da autora e os estereótipos negativos que já estavam presentes nos livros, pois o público tem o direito de saber o que está consumindo e apoiando diretamente. 

Por outro lado, existem mesmo fãs que apoiam o discurso da autora e que até começaram a gostar da obra por se identificar com os ideais transfóbicos. Muitos grupos usam símbolos de Harry Potter para atacar pessoas trans nas redes sociais e isso acaba manchando a comunidade toda.

Atores da saga como Daniel Radcliffe (Harry), Emma Watson (Hermione), Rupert Grint (Rony), Evanna Lynch (Luna) foram alguns que se posicionaram contra a intolerância da escritora. Você acredita que esses posicionamentos são importantes contrapontos às falas da autora e podem influenciar mais os jovens do que as próprias palavras dela?

Antes de responder, é importante lembrar que Evanna mudou seu posicionamento e fez comentários bastante transfóbicos ao se colocar do lado de JK. 

Mas sim, todos os posicionamentos são importantes e fazem a diferença, para o bem e para o mal. Quando alguém com tanto alcance e relevância se posiciona contra ela, a comunidade se sente mais segura e a autora perde força até mesmo entre as empresas que trabalham com seus produtos. Tanto que, quando foi feito o especial de 20 anos da saga, a JK não foi convidada. 

Mas, quando as pessoas mostram que estão do lado dela ou que não se importam com seus ataques, ela continua ganhando força e sensação de impunidade para seguir perseguindo minorias. Prova disso é que seus discursos não afetaram as vendas de Hogwarts Legacy e ela foi convidada para ser produtora da nova série de HP.

Considerando que a autora utiliza seu poder e dinheiro provenientes da série de livros e filmes, você acredita que a única forma de vencê-la é promovendo um boicote mundial aos seus conteúdos? Quão viável você acha essa abordagem, considerando que a franquia ainda é muito lucrativa?

Eu acredito que a única maneira de vencê-la é promovendo informação. Eu não deixei de comprar os produtos dela porque queria realizar um boicote, mas porque entendi a crueldade dos atos dela e percebi que muitos de seus preconceitos já estavam claros na história que amei por muitos anos. 

Eu não tenho vontade ou coragem de consumir qualquer produto assim e tenho certeza que, quanto mais pessoas souberem de todos esses detalhes, mais pessoas vão deixar de consumir. E, se mesmo sabendo de tudo isso, elas quiserem continuar consumindo… bem, isso diz muito mais sobre elas do que sobre mim, não é mesmo? Principalmente se fizerem questão de me enviar os comprovantes fiscais ou fotos dos produtos adquiridos, como muitos fazem.

Dentre todas as falas criminosas de J.K., alguma delas te surpreendeu? E por que você acha que páginas especializadas no universo de Harry Potter no Brasil se calam diante das falas dela?

Eu fiquei surpresa apenas com o primeiro comentário transfóbico dela (em 2020), pois, na época, não esperava isso desta autora. Depois disso, o aumento da frequência e da gravidade dos ataques me revoltaram, mas não me surpreenderam de forma alguma. 

Alguém que não tem medo de inventar mentiras sobre um grupo marginalizado para promover ainda mais ódio contra ele, obviamente não teria vergonha de incitar homofobia.

Um jornalista LGBT+ chamado Christian Gonzatti disse uma vez em uma coluna do UOL que “Para muitas crianças e adolescentes LGBTQIA+, o universo mágico de Harry Potter foi um refúgio imaginário das violências cotidianas”. Ele via também a situação de Hermione Granger como uma metáfora para como ele era tratado por ser um menino afeminado. Ele relata ainda que, posteriormente, como pesquisador, descobriu várias pessoas que tinham a mesma sensação. Ao ter contato com as declarações da autora em 2020, passou a se questionar se quem gostava de Harry Potter seria cúmplice de sua transfobia. Você acredita que seja cabível tal associação, ou a falta de conhecimento sobre a figura da autora pode levar jovens LGBTs a entrar nesse mundo ignorando o resto?

Adoro e admiro o trabalho do Chris. Por isso, sei que a pesquisa dele é embasada em dados reais, até porque a minha vivência na época também comprova essa constatação da importância de HP para a comunidade LGBTQIA+. Mas é importante lembrar que estamos falando de uma situação do passado, que não é mais real. Se você visitar qualquer feira de cultura pop com público majoritariamente LGBTQIA+ (como a Poc Con, que acontece em junho em SP), dificilmente encontrará produtos de Harry Potter. A comunidade, em sua grande maioria, ainda é unida e não faz sentido dar espaço para uma saga excludente e que virou símbolo de ódio.

Hoje em dia, a saga ganhou muito mais força no meio cis-het e, felizmente, as novas gerações têm muito mais opções de conteúdos abertamente inclusivos e acolhedores. Claro que ainda podem se interessar por HP por outros motivos, mas não é lá que vão encontrar o acolhimento que a minha geração encontrou.

Edição: Guilherme Ribeiro
Atualizado em 22/03/2023 às 13h25.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

George Ricardo Guariento Graduado em jornalismo com especialização em locução radiofônica e experiência na gestão de redes sociais para a revista Diálogos do Sul. Apresentador do Podcast Conexão Geek, apaixonado por contar histórias e conectar com o público através do mundo da cultura pop e tecnologia.

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