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Um café e Resistência: os planos de J.J. Torres antes de ser assassinado pela Operação Condor

Exilado na Argentina, o general trabalhou desde 1971 na organização da resistência boliviana, formando o Exército de Libertação Nacional
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
Florianóolis (SC)

Tradução:

Março de 1976: Um golpe militar

A situação política argentina se definira. A democracia desmoralizada caíra apenas com um berro dado pelos comandantes militares de turno. Isabel de Peron, eleita pelo povo argentino, foi pelos militares embarcada para Madri, um exílio dourado, ao lado do amante, ladrão e assassino Lopes Rega, fundador das “Triple A”, cópias dos “comandos de caça aos comunistas”, da ditadura brasileira  de 1964.

Foi o princípio de tempos negros que seriam para sempre tingidos com o sangue do povo argentino e de tantos mais latino-americanos que se encontravam por aquelas terras.

As Forças Armadas haviam, afinal, conseguido seu intento, assumindo todo o poder e realizado, a exemplo da “Shoah”, o holocausto instituído pelos nazistas com a banalização do terror, que deixou na Argentina mais de 30 mil mortos.

Idealizado por Paulo Cannabrava, documentário vai resgatar trajetória do boliviano JJ Torres

A grande maioria dos brasileiros que tinham deixado o Chile de Pinochet rumo à Argentina já haviam, por sorte, partido para o exílio em outros países, principalmente para a Europa. Pedro Alexandrino, entretanto, ainda estava por lá.

Foi após o golpe militar argentino que Alexandrino conheceu um personagem singular, superior, realmente um homem de coração puro e de índole inabalável. Conheceu-o como Jota Jota. Trazido por um companheiro em comum, Jota Jota já era um senhor, o que contrastava com a juventude da grande maioria dos militantes, com a força física de seus cinquenta anos. De sua descendência indígena, herdara uma baixa estatura num corpo sólido e forte; sorriso franco e humilde de quem confraterniza com a vida e com os homens, mesmo nas mais difíceis situações. Este senhor era o General Juan José Torres, ex-presidente da Bolívia.

Para falarmos de Torres precisamos visitar, mesmo que de passagem, os nossos conhecimentos sobre a Bolívia do princípio dos anos 70. Governava então nosso país vizinho o General Ovando, sendo Torres o Comandante em Chefe das Forças Armadas. Ovando alinhava-se, então, a uma geração de generais patriotas e anti-imperialistas e progressistas como o do Peru, Alvarado e do Panamá, Omar Torrijos.

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Sob a coordenação da CIA e dos interesses das companhias de mineração e petróleo, Ovando, após muitos confrontos sangrentos, foi deposto do poder; no entanto, o General Torres encabeçou uma heroica resistência contra a direita do Exército, venceu-a e assumiu o governo boliviano.

Torres, que possuía uma posição à esquerda do próprio General Ovando, em suas primeiras determinações convocou uma Assembleia Popular, com representantes dos mineiros, camponeses, militares, professores e estudantes, para legislar em favor do paupérrimo e explorado povo andino. Também consolidou a nacionalização da Gulf Oil, iniciada por Ovando!

Bem, nosso objetivo não é falarmos da história boliviana, mas antes de voltarmos a Alexandrino, ainda é preciso que se frise que todo o governo popular de Torres sobreviveu apenas dez meses. A direita, tendo à frente o fascista corrupto e fantoche do imperialismo americano, o coronel Hugo Banzer, derrubou o governo de Torres e inaugurou uma ditadura terrorista que sobreviveu por nove longos anos.

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Torres, com sua família, exilou-se na Argentina, mas ao contrário de tantos outros, jamais encarou o exílio como ponto final de militância ou de repouso d’armas. Desde 1971 trabalhou na organização da resistência boliviana, formando o Exército de Libertação Nacional, que colocou sob o comando de seu lugar-tenente Major Rubens Sanches, que operou nas selvas da Bolívia até a sua morte.

Quando Jota Jota travou contato com Alexandrino, o incansável lutador trabalhava também na articulação de uma Junta Coordenadora Revolucionária, que deveria abrigar militantes desde o Uruguai até a Bolívia.

Mas as perspectivas desta Junta eram desesperadoras. A última reunião que tiveram Alexandrino e Jota Jota ocorreu no último dia do mês de maio. Pensavam, então, em retornar na clandestinidade a seus países: Alexandrino para o Brasil e o general, para a Bolívia. Havia uma alternativa de eludirem-se os bloqueios fronteiriços, seguindo a rota do contrabando. Enfim, agendaram novo encontro.

Exilado na Argentina, o general trabalhou desde 1971 na organização da resistência boliviana, formando o Exército de Libertação Nacional

Reprodução
O assassinato de J.J. Torres era um favor prestado entre crápulas: do general argentino Videla para o coronel boliviano Banzer




3 de junho de 1976

Alexandrino recorda-se daquela manhã fria, quando antes de ir para o trabalho, deveria tomar o café da manhã com Jota Jota.

Próximo ao café, localizado na avenida Entre Rios, em Buenos Aires, comprou como todas as manhãs um “La Prensa”. Uma foto do general-ditador argentino encimava a primeira página. Abaixo, a foto de Juan José Torres, sequestrado, torturado e morto a tiros, no dia anterior.

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O assassinato do resistente era um favor prestado entre crápulas: do general argentino Videla para o coronel boliviano Banzer, no que viria a ser conhecida como uma ação da Operação Condor.

O café estava a dois passos. Alexandrino tinha absoluta certeza de que nada aconteceria se ele entrasse e tomasse seu café, engolindo o sabor amargo que o cálice do destino tantas vezes já lhe trouxera: a perda de mais um amigo, de mais um companheiro. Lembrou-se do princípio de um verso de Pablo Neruda: “Perdemos um de nós neste mundo. Onde estavas?”.

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Triste, com lágrimas nos olhos que insistiam em se despregar, caminhou até a parada de ônibus mais próxima.

Atrás de si estavam dois operários e um deles possuía um “La Prensa” na primeira página e comentava com o amigo: “Mira, chê, no tiene este tal de Videla una cara de perro hambriento?*”.

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Seria um sorriso ou um rito facial que percorreu o rosto triste de Alexandrino? Nunca o saberemos, mas ainda hoje ele diz que naquele momento soube que a ditadura argentina jamais duraria tanto quanto a brasileira. O povo argentino a jogaria na lata de lixo!

Obs.1: Jorge Rafael Videla foi primeiro ditador do golpe de 1976. Foi em 2010, condenado à prisão perpétua. Morreu em 2013, no cárcere da prisão. Foi encontrado morto sentado no vaso sanitário de sua cela, impregnado de fezes diarreicas.

Obs.2: trata-se de uma passagem semi-autobiográfica do autor. O nome Pedro Alexandrino é uma homenagem ao sítio em que faleceu abandonado o libertador da América Espanhola, Simão Bolívar, no séc. XIX.

Nota: Em 1983, o corpo de Jota Jota foi transportado para a Bolívia e enterrado com honras de Chefe de Estado.

Carlos Russo Junior | Colunista na Diálogos do Sul.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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