Em um de seus contos tardios denominado “O País das Quimeras”, o Narrador nos diz que “eram as Utopias e as Quimeras que partiam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições” e retornavam aos palácios maravilhosos das Musas!
Ainda que as Utopias eram as “consoladoras companhias que distraem de todas as misérias e pesares” aos pensadores e aos que sentem amor pela natureza e pelos seres humanos.
A primeira publicação de Machado (1864) foram poesias: as “Crisálidas”. E nele surge o verdadeiro bálsamo para corações torturados, os corações utópicos, a “Musa Consolatrix”:
“Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.
Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.
Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta
Quando Machado completou 25 anos, estreou na revista “O Espelho” como crítico teatral e operístico! O princípio da impressionante carreira literária de um artista múltiplo: jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo! Nosso escritor maior tornou-se um dos filhos diletos de todas as Musas!
De braços dados com Clio, Euterpe e Tália (Musas da História, da Música Lírica e da Comédia), os primeiros quinze anos de Machado de Assis foram anos de intenso aprendizado de óperas e sinfonias.
E, desde então, Machado sempre associará óperas e composições musicais à psicologia de seus personagens e à sua visão de mundo. As referências mais claras começam a aparecer em “A mão e a luva”, ainda na fase romântica, alcançando sua maior intensidade em “Dom Casmurro”, alcançando seu trabalho final, o “Memorial de Aires”.
Espaço Cultural Proust
Machado de Assis
“Opera Mundi”, ou a metáfora da Criação do Mundo, foi inserida de forma genial em “Dom Casmurro”.
O narrador Bentinho, que se tornara conhecido pelo apelido dado de Dom Casmurro, é o personagem central do romance, e será a ele que um velho tenor operístico, que já não tinha voz para ser ouvido em teatros, vivia a falar das injustiças da terra e dos céus.
Sem nunca voltar a ser contratado, o tenor saia entre os amigos a distribuir aquilo que considerava uma iniquidade contra sua pessoa, considerando-se uma vítima da sociedade.
Num jantar, que na pobreza vem colher na casa de Bentinho, lhe diz:
“A vida é uma ópera, uma grande ópera”. E conta-lhe uma interessantíssima metáfora da criação.
Vivemos uma permanente encenação em que o tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários; isto quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do baixo e dos mesmos comprimários, num palco onde “há coros numerosos, muitos bailados e a orquestração, excelente”.
Deus é o Poeta, o Autor do libreto.
Já a partitura, a música, é de Lúcifer, jovem Maestro de muito futuro, que aprendeu tudo o que sabia no próprio Conservatório do Céu.
Na realidade, Lúcifer era um sério rival de outros Arcanjos muito bem posicionados perante Deus, como Miguel, Rafael e Gabriel. Lúcifer, de todos os modos, não tolerava a precedência que aqueles tinham na distribuição dos prêmios concedidos pela Potestade. No entanto, a bem da verdade, também pode ser que a música celestial fosse demasiadamente doce e mística em seu insistente barroquismo, aliás por que não dizer aborrecível, a um gênio essencialmente trágico, como o de Lúcifer.
De tal forma que Lúcifer tramou uma rebelião, que, entretanto, foi descoberta a tempo, e ele terminou expulso do Conservatório.
Tudo parando por aí se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua Eternidade. Lúcifer, agora Satanás, levou, entretanto, aquele manuscrito consigo para o inferno. E com o objetivo de mostrar que valia mais que os outros Arcanjos, ou, quem o poderia afirmar, para se reconciliar com o Céu, compôs a partitura e logo que a acabou foi leva-la ao Padre Eterno.
-“Senhor, não desaprendi as lições recebidas disse-lhe; aqui tem a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se achardes digna das alturas, me readimitis com ela a Vossos pés”.
-“Não, retorquiu o senhor, não quero ouvir nada”, mal humorado.
Satanás suplicou ainda sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, e de tanto lengalenga, consentiu com que a ópera fosse executada, mas fora do Céu!
Criou, então, um teatro especial, este nosso planeta, a Terra!
E inventou uma companhia inteira de Ópera, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
Persistente, depois da criação da “Opera Mundi” e retornando ao Empíreo, Satanás insistiu:
– “Senhor, ouvi agora alguns ensaios!”
– “Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto, saiba que estou pronto a dividir contigo os direitos de autor”.
No reino da Terra, estabeleceu-se então, não uma luta, mas uma parceria perfeita. Deus e Satanás!
“Foi talvez uma má ideia de Deus essa recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado”.
“Com efeito, há lugares em que o verso vai para direita e a música para esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está beleza da composição, fugindo à monotonia e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão”.
“Aliás, no decorrer da história da humanidade, temos visto que certos motivos cansam à força de repetição”.
Também há obscuridades. O Maestro apela e abusa das Massas corais, encobrindo muitas vezes o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são, aliás, tratadas com grande perícia. “Tal é a opinião dos imparciais”.
Já os amigos do Maestro, Satanás, querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Tudo vai bem contanto que “não se mude o andar da carruagem”.
Outros, por seu lado, admitem certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com avançar da Ópera é provável que estas sejam preenchidas e explicadas, e que aquelas desapareçam inteiramente, desde que o Maestro não se negue a emendar a obra, quando não corresponda de todo ao pensamento sublime do Poeta.
Ainda outro, os mais próximos do Poeta, de Deus, juram que o libreto foi sacrificado, e a partitura corrompeu o sentido da letra e, posto seja bonita em alguns lugares e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama.
Dizem também que o grotesco, por exemplo, não está no texto do Poeta; é uma excrescência feita para imitar as “Mulheres Patuscas de Windsor”. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a Grande Ópera, a “Opera Mundi”, nem essa farsa e nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da Ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição. Mas, evidentemente, Shakespeare é um plagiário.
Finalmente, conclui o tenor ao final do jantar oferecido por Dom Casmurro:
— “Esta peça durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica”. Enquanto isto,“Deus recebe em ouro, Satanás em papel.”
Esta é a Opera Mundi machadiana, filha direta das Utopias e das Quimeras.
Carlos Russo Jr, Colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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